quinta-feira, 17 de maio de 2012

A AMPLA CIDADE



Rui Peralta

Os novos rebanhos e os velhos lobos

Todos temos medos e também sonhos. Encobrimos ambos, com véus diversos e aí tornam-se segredos. Encobrimos os medos e os sonhos assumindo muitas vezes atitudes de incredulidade ou de falsa surpresa. Algumas vezes deixamos cair os véus com que os encobrimos, geralmente, quando somos realmente surpreendidos pelas ocorrências aleatórias da vida. Quando isso acontece, quando os véus caem e deixam de tapar os nossos segredos, ficamos perplexos. A perplexidade é o único estádio de consciência em que nós somos porque somos mesmo. Nunca ficamos muito tempo em perplexidade. Os automatismos do subconsciente procuram de imediato véus para o tapar. E isto passa-se com os indivíduos, com os grupos humanos, sociedades e estados. Mas já voltamos a este assunto. Primeiro vou continuar com história contada por Chris Two no seu restaurante de Veneza. Contou ele:

“Aqui é a entrada do Paraíso” o anjo explicou na relva fresca sentado. “E onde fica este local?” Questionou Chris Two deslumbrado. “O Paraíso situa-se numa região celestial, acessível pelo Jerusalém sagrado, sendo o Templo seu portal” o Anjo esclareceu. “Fala-me do Paraíso, Anjo doutoral” Chris Two, pediu fascinado, encantado, abismado quando viu a beleza que o rodeava: a beleza do anjo, a beleza das cores, a beleza das formas, a beleza daquele lugar…

Aos seus ensejos o Anjo correspondeu (sempre satisfazia os seus desejos). “É o Inferno um local de sofrimento e é o Paraíso um centro de ilusão. No Inferno o mal nasceu mas no Paraíso foi a concepçäo. Aqui as almas aprendem. Primeiro a adaptação. Aqui no quarto Céu onde os teólogos iludem e as almas acreditam que realizam o que em vida nunca fazem, até perderem o discernimento. Na alucinação vêem-se entre amigos e familiares. De ilusões sobre ilusões constroem-se os paraísos…Sobre os falsos sorrisos dos que mais amares.

A crença no Paraíso é alimentada pela busca permanente de uma recompensa. O Homem gosta de ser recompensado, como os cães que agradam ao dono para sentirem o prazer de uma festa ou a satisfação de uma brincadeira, o sabor de um biscoito…Nas relações entre o Homem e Deus, o Homem é o cão. Se os Homens comportarem-se bem, não fugirem ao cumprimento das leis e forem bons elementos do rebanho, então Deus oferece-lhes um doce: a entrada no Paraíso, onde a alma descansará eternamente. O Paraíso é um dogma dos teólogos onde o objeto da criação é o céu e não o Homem criador e criativo.

No céu habitam a Santíssima Trindade e os anjos, exceto os anjos que caíram para o Inferno ou para a Terra, onde vivem entre os Homens. Mais tarde os teólogos provocaram uma explosão demográfica, no céu teológico, ao povoarem-no com os Homens que experimentaram a Redenção, os antigos Patriarcas, os Profetas e os Santos. Depois entraram os que passavam primeiro pelo Purgatório, o fogo purificador, como se fossem apurados num concurso. Mesmo assim insatisfeitos os teólogos decidiram: As almas dos batizados que não cometeram pecados durante a vida entrariam, de imediato, no céu.”

O Anjo interrompeu a explanação e olhou para Chris Two aguardando por alguma questão. “Qual a extensão do Paraíso?” Questionou Chris e o Anjo respondeu: “O Paraíso tem a dimensão da Terra, é um mundo paralelo, onde só existe o lado considerado bom do Homem, dos animais, das plantas, dos minerais e das coisas”. “Pensava que o Paraíso era apenas para os Homens”, interrompeu Chris, intrigado. “O Paraíso não é um exclusivo do Homem. Prolonga-se, vai além, percorre todo o reino animal e vegetal, chega mesmo ao reino mineral. Entram no Paraíso, não como meros objetos funcionais, como acontece com o Inferno, mas num plano de igualdade com o Homem, partilhando a felicidade” explicou o Anjo, e continuou: “Todos os Paraísos são imagináveis, mas todos são uma apoteose do que temos em vida.” “Todos os Paraísos, dizes… há então diversos Paraísos?”A pergunta de Chris revelava a sua crescente curiosidade. A resposta do Anjo foi paciente e elaborada. “Como irás observar, em breve, existem vários níveis de Paraísos. O nível mais elevado é reservado aos que se preocuparam com o conhecimento e fizeram dele a principal riqueza. Aqui as almas são puro êxtase. Nos outros níveis o grau de felicidade é tanto maior quanto mais elevado for o nível a que se encontra o Paraíso. Gosto de associar a imagem do Paraíso aos prazeres eróticos. Fica mais simples de compreender. S. Tomás de Aquino conhecia 3 Paraísos: O terreal, o celestial e o espiritual.

O terreal seria o prazer carnal? O celestial, talvez, o êxtase do orgasmo? E o espiritual? Tomás de Aquino considerava-o uma visão beatífica. Vamos respeitar as palavras do filósofo de Deus. Talvez este Paraíso seja o momento pós-orgasmo, quando os corpos se entrelaçam, lânguidos, no leito” “Então os Paraísos podem ter diferentes características?” Questionou Chris Two, depois de ter refletido sobre o exemplo do Anjo. “ Não. Há duas características no Paraíso, que o torna uma identidade una, apesar dos seus níveis e da sua imensa pluralidade e pluridimensionalidade. A primeira característica é a felicidade. Todos os Paraísos são felizes, mas nem todos são livres. Talvez por isso transformem-se em Infernos. O descanso é a segunda característica do Paraíso. Deve ser porque a vida cansa” respondeu o Anjo, aguardando por mais perguntas. “Adão habitava que Paraíso?” A curiosidade de Chris Two aumentava a cada explicação do Anjo. “Adão habitava Eva. Ela era o seu Paraíso” afirmou o Anjo, fazendo um movimento com as suas asas.

Vou parar por aqui (volto a esta história na próxima ampla cidade) para voltar ao tema de hoje. Vivemos numa sociedade cada vez mais perturbada por tiques de irracionalidade. Qualquer que ela seja. É um mundo em que cada vez mais os medos sobrepõem-se aos sonhos. E é nas grandes cidades que as paranóias colectivas mais ressaltam. Pyongyang ou Seul, Havana ou Rio de Janeiro, São Paulo ou Buenos Aires e Caracas, Bogotá ou Lima e Santiago, Moscovo, Praga ou Budapeste, Pequim, Tóquio ou Manila, Telavive, Teerão ou Damasco, Washington, Chicago ou Toronto, Luanda, Maputo ou Capetown, Lisboa, Roma ou Paris, em todas estas cidades e em todas as outras cidades do mundo, o medo é uma constante.

A ordem mundial instituída após a segunda guerra abriu em alguns pontos do mundo um universo de bem-estar. Os manuais de politologia enchiam as páginas com o Estado do mesmo (do bem-estar). Claro que havia pontos do globo em que as pessoas sofriam. Em África, em grande parte da Ásia, na América Latina, existia fome, medo, miséria, ditaduras, mas mesmo nas ditaduras onde o medo reinava e apoderava-se dos espíritos dos Homens, existiam modelos de virtude para vencer o medo ou os medos, existiam os sonhos de um mundo melhor e a possibilidade de o realizar. A esperança não tinha véus. O Norte vivia bem e o Sul almejava lá chegar, fosse pelo Ocidente ou pelo Oriente.

Fumava-se nas ruas e nos cafés, nos aeroportos, andava-se á boleia, fazia-se campismo selvagem, ia-se a todo o lado, os aeroportos eram locais (nas sociedades capitalistas mais avançadas) onde a velha ética comercial era levada em conta (ser cliente de uma companhia aérea era uma honra para as companhias e ser turista era sinal de ser bem vindo), enfim era um mundo que parecia, bem ou mal, caminhar num sentido de prosperidade e os medos estavam identificados: para uns era o comunismo, para outros a vida debaixo de uma ditadura fascizante, para outros o subdesenvolvimento, mas eram batalhas que poderiam ser racionalmente efectuadas. Claro que a guerra fria trouxe consigo toda uma série de paranóias sociais complexas. Por exemplo: Os Estados Unidos da América deram mostras de toda a irracionalidade durante a caça às bruxas e com o problema da segregação nos seus estados do sul, mas a caça às bruxas desapareceu e passado uns anos foi efectuado até um pedido de desculpa e o mesmo aconteceu com as legislações segregacionistas. As lutas tinham um sentido preciso e os medos eram identificados.

É claro que as sociedades sempre criaram os seus medos. Raramente eles eram reais mas sempre davam jeito aos que queriam dominar. O medo sempre foi uma forma dos grupos dominantes prevalecerem sobre os grupos dominados, fosse qual fosse o tipo de sociedade, capitalista ou de socialismo real, republica ou monarquia, totalitária ou liberal, democrática ou aristocrática, o medo sempre foi uma técnica de domínio sobre o outro.

Reparem na vida dos cidadãos de Pyongyang e de Seul. Em Pyongyang têm medo que o capitalismo que prevalece em Seul rompa por ali dentro e traga a exploração desenfreada e o desemprego e outras coisas que o regime local diz existirem na outra capital e em Seul têm medo do regime do norte e de serem obrigados a chorar cada vez que morrer um grande líder. Tal como em Havana os cubanos têm medo de voltarem a ser uma república de putas e vinho verde, como eram nos tempos anteriores á revolução, um depósito de lixo dos yankees e em Miami têm medo da ameaça cubana e de serem obrigados a trabalhar.

Mas existem agora, em todo o mundo outros medos. O medo de fumar, por exemplo. Os fumadores, hoje, são tratados como os negros na África do Sul no tempo do apartheid, ou nos estados do sul do império do norte. Compramos um bilhete para viajar e não temos direito a fumar. Sentamo-nos num bar a beber uns copos ou numa pastelaria a comer um bolinho e a tomar um cafezito e towers! Proibido fumar. Faz mal á saúde, diz a propaganda dos novos estados defensores da saúde. Pois…mas não sei se estão a ver…somos maiores e vacinados. Que não possamos perturbar os não-fumadores é uma coisa, mas que sejamos enjaulados para fumar um cigarrito, que pagamos bué de taxas para comprar o maço de cigarros e que ainda por cima somos vistos como anómalos…Nã…Aí - oh virtuosos da saúde mundial! - anda história mal contada. Vamos lá a abrir o jogo e mostrar as cartas todas! É preciso ser muito naïf para engolir essa da vossa preocupação com a saúde. Cheira-me a fundamentalismo.

E a propósito de fundamentalismo. Aqueles que têm de viajar de avião e que são obrigados a passar as passinhas do algarve nos aeroportos, ou melhor, na Tirania aeroportuária, que reina neste mundo de policiomaníacos e ditadorezitos de baixo potencial, deviam começar a ocupar os aeroportos. Compramos bilhetes, não os roubamos, compramos e como qualquer compra é um acto contratual. Não temos de estar a ser revisados, despidos, mal tratados, vistos como terroristas suspeitos, só porque temos dinheiro para comprar um bilhete de avião e viajar. Então não andaram a apregoar as benesses da livre circulação, que é de facto um direito de todos nós e agora querem mal tratar os que fazem uso desse direito?

Mas o mais irritante é que isto é tudo feito em nome do bom senso e da nossa segurança. Ou seja, o Estado, qualquer que ele seja, a instituição pública Estado, acha-se no direito de assumir o papel de padrasto bondoso (só podem ser padrastos, porque ter papás assim é demasiado infame para qualquer um) e proteger-nos dos malefícios que provocamos á nossa saúde. Existem ainda uns mentecaptos amorais que carregam um argumento mais economicista que é o facto de o tabaco provocar quebras de produtividade e de obrigar os contribuintes a gastos excessivos com a saúde, principalmente com as doenças pulmonares e o cancro! Então e o efeito contrário oh sublimes almas despenadas! Não será que provoca aumento de custos o desemprego gerado pelas vossas medidas de anjos da guarda? Já pesaram na balança os números? Já repararam quantos famílias dependentes directa e indirectamente dependentes do sector do tabaco, perdem a sua fonte de rendimento a nível mundial? São mesmo umas andorinhas estes moralistas de trazer por casa. E quanto á segurança aeroportuária? Pois é os terroristas criados por eles serviram bem o propósito de ensaiar as mais sofisticadas técnicas de controlo da vida das pessoas. E da indústria da segurança que andava muito por baixo nos contractos comerciais e nas cotações bolsistas.

Mas o problema principal destes novos medos e destes anjos protectores que infestam as nossas vidas é o que eles representam. São símbolos do futuro que nos preparam. É a novíssima ordem mundial, baseada na velhíssima ordem mundial do funil. O largo para eles o estreito para nós. Porque nós somos os irresponsáveis, que gastamos muito, qua não sabemos preservar a nossa saúde, que só queremos salários altos, que não gostamos de migrar, que não queremos trabalhar mais horas, que não sabemos aproveitar as benesses do desemprego, que não somos empreendedores, enfim somos umas bestas que andamos para aqui e se não forem eles, os senhores iluminados pela lanterna dos bons princípios, matamo-nos todos uns aos outros.

Faz-me lembrar a história dos pobrezinhos mas honestos e respeitosos, impostas a países onde os cidadãos eram analfabetos, alcoólicos, sifilíticos e tuberculosos… O que chateia é a figura que nos querem pôr a fazer: Ovelhinhas a pastar para os lobos alimentar…

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