domingo, 24 de junho de 2012

O BOSQUE EM FLOR



Rui Peralta

O império dos drones (2)

As operações especiais

Com cada vez maior frequência as intervenções globais dos USA são executadas pelos grupos de operações especiais sob o comando do Almirante William McRaven. Em torno destes grupos cresce uma indústria florescente e uma mística patrioticamente comercial, bem visível na Conferência das Industrias para as Forças de Operações Especiais, anualmente realizada em Tampa, mas nunca tão frequentada como nos últimos dois anos, tendo na sua última realização a afluência de 8 mil visitantes, incluindo McRaven e Hillary Clinton (que visitou e discursou). É uma indústria muito lucrativa, que atravessa de forma incólume a crise mundial, produzindo armas, acessórios e equipamento para as forças especiais. É um mercado próspero e um excelente investimento. Basta ver que as operações especiais norte-americanas têm um budget de 2 mil milhões de USD por ano para compras de armas, munições, acessórios e equipamentos.

Interessante o breve discurso da dama Clinton nesta Conferência que, no meio dos sorridentes rapazes das operações especiais e sob o olhar atento de McRaven, falou sobre o importante papel destas forças na “diplomacia” (?) norte-americana (será que os diplomatas ianques deixarão de vir de Harvard e passarão a vir do curso de sargentos dos Navy Seal?).

A diplomacia drone

Na sua campanha para a reeleição do mandato presidencial, Obama relembra constantemente às audiências o seu êxito em retirar as forças norte-americanas do Iraque e promete fazer o mesmo no Afeganistão. Mas esta é apenas a ponta visível do icebergue. Por debaixo das águas ficam as guerras secretas realizadas pelas operações especiais.

O presidente Roosevelt durante a II Guerra Mundial transformou os bombardeiros no emblema do american way of war. O presidente Eisenhower desenvolveu a estratégia de Represália Massiva e converteu as bombas nucleares na peça central da política de segurança dos USA. O mesmo passa-se com a administração Obama e o uso das forças de operações especiais. O Comando de Operações Especiais dos USA (USSOCOM) com as suas forças operativas – Boinas Verdes, Rangers, Navy Seals, etc. – chegou ao pináculo da hierarquia militar norte-americana pela mão do prémio Nobel da Paz de 2009, Barack Obama.

O malogrado presidente Kennedy ofereceu aos Boinas Verdes os seus gorros característicos. Foi um gesto simbólico e decorativo. Mas Obama não se ficou por actos simbólicos. Proveu á comunidade das operações especiais um status privilegiado que lhes outorga a máxima autonomia e um enorme orçamento. É possível que o Congresso exija ao Pentágono que faça alguns modestos cortes orçamentais, mas está impossibilitado de o fazer ao USSOCOM, que obtém o que necessitar e sem muitas perguntas.

O orçamento do USSOCOM quadruplicou desde o 11 de Setembro de 2001, assim como o número de operações. Desde a mesma data duplicaram os quadros e os operacionais, tendo ao seu dispor actualmente 66 mil funcionários. Esta expansão teve início na administração Bush filho, que não teve, no entanto, a habilidade de criar os mecanismos legislativos que permitissem que estas forças assumissem o papel que desempenham actualmente. As operações especiais norte-americanas encontram-se, actualmente, em 120 países, realizando actividades que vão desde o reconhecimento, o contra terrorismo, a ajuda humanitária e a acçäo directa.

A substituição de forças convencionais por forças especiais como instrumento militar do imperialismo denota uma alteração cultura e politica nos USA de profundo alcance. Representa um fosso intransponível entre os militares e a sociedade, que será cada vez mais alargado, quanto mais especializadas forem as forças e secretas as operações. O povo norte-americano perdeu os mecanismos de controlo sobre as suas forças armadas, o que representa um golpe sem precedentes na democracia. Se até aqui as barreiras eram burocráticas e a informação permitia que as barricadas democráticas fossem erguidas sempre que as coisas saiam fora do controlo da soberania popular (caso das guerras do Vietnam e do Iraque), agora o controlo foi completamente abolido.

Acabou a responsabilização. A opinião pública só ficará a saber o que o estado decidir. Foi instaurado aquele que era um dos pesadelos dos pais fundadores dos USA. Este é o início de uma nova fase do imperialismo: A presidência imperial. A partir de agora qualquer presidente dos USA não necessita de prestar contas ao povo sobre a sua política externa, de segurança nacional e de defesa. Quando o presidente Clinton ordenou a intervenção na Bósnia e no Kosovo, ou quando Bush invadiu o Afeganistão e o Iraque, foram ao meios de comunicação social informar o povo e essas guerras foram seguidas pelos media. Tiveram de apresentar os seus planos ao Congresso, que decidiu da sua aprovação e serem supervisionados pelo Senado. Com Obama nada disso é necessário. Nem notificação, nem aprovação, nem supervisão, nem informar o povo. O presidente e seus acólitos ficam com as mãos livres.

A entrega da guerra a operadores especiais, a “especialistas”, rompe um vinculo – sempre ténue – entre a guerra e politica e converte esta em guerra. Recordam-se da guerra global contra o terror que Bush e Blair tentaram vender ao resto do mundo? Pois aqui está ela na versão aperfeiçoada pronta a servir. E Obama nem precisou de a vender…

A contagem das vitimas

Nos primeiros dias da “guerra contra o terrorismo” o general norte-americano Tommy Franks declarou que as suas tropas não faziam contagem de vitimas. O facto dos nomes das vitimas do 11 de Setembro de 2001 terem sido gravados numa pedra, faz com que seja surpreendente que a guerra empreendida em seu nome demonstre pouco interesse pelos mortos. Mais surpreendente é o facto de uma guerra que já fez uma década e que é uma guerra de invasão e ocupação, ainda não tenha produzido qualquer estudo sobre as vitimas directas e indirectas. Os mortos, feridos, desaparecidos e mutilados que não são norte-americanos nem da OTAN não fazem parte da equação imperialista e não entram nos custos da guerra.

Eis que a ONU e algumas ONG começaram, finalmente, a fazer este estudo, apesar de todos os obstáculos e dificuldades. E os números que já foram compilados são demonstrativos dos elevados níveis de destruição das actuais estratégias. Começando pelo Afeganistão, os estudos reunidos sobre a invasão de 2001 concluem que entre 4 a 8 mil civis afegãos morreram em consequência directa das operações militares. Não há dados para 2003 e 2005, mas em 2006 a Human Rights Watch (HRW) registou cerca de mil civis mortos em combates. Por sua vez no período entendido entre 2007 e Julho de 2011 a Missão de Assistência da ONU no Afeganistão (UNAMA) contabilizou cerca de 10 mil não combatentes mortos, directa ou indirectamente e já incluída o numero de feridos que morreram em consequência dos ferimentos.

O The Guardian, numa excelente reportagem sobre a guerra no Afeganistão, calcula que pelo menos 20 mil pessoas morreram no primeiro ano de guerra, englobando aqui os mortos devido aos combates, as mortes indirectas, os feridos mortos posteriormente em consequência dos ferimentos, os que morreram pela fome e pelas doenças causadas pela destruição das infraestruturas sanitárias. Por sua vez a Amnistia Internacional (AI), refere que 250 mil pessoas refugiaram-se em países vizinhos, em 2001 e que pelo menos 500 mil estão desalojadas, deambulando pelo país, desde o inicio dos combates.

No Iraque, o projecto Iraq Body Count (IBC) calcula 115 mil civis mortos entre 2003 e Agosto de 2011, mortes provocadas pelos combates. A OMS fala numa cifra de 150 mil civis mortos nos três primeiros anos da ocupação. A revista The Lancet adicionou a estes números da OMS e da IBC os mortos indirectos e calcula 600 mil mortos civis nos primeiros 3 anos. Enquanto isso a Opinion Research Business (ORB) calculava que desde 2007 existiram cerca de 1 milhão de mortes violentas e o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados refere 2 milhões de iraquianos refugiados noutros países e outros 2 milhões de desalojados internos, desde 2007.

Para além destes dois Estados, que se encontram ocupados, após serem invadidos, a “guerra contra o terrorismo” estende-se a vários países, como o Paquistão, Iémen e Somália. É uma guerra em que se emprega drones e forças especiais, CIA e as forças armadas governamentais dos países em causa. Aqui a contagem das vitimas é dificultada pelo segredo das operações e pela sua natureza extrajudicial. A Oficina de Jornalismo de Investigação informa que entre 2004 e 2012 realizaram-se 357 ataques ao Paquistão (sendo mais de 300 os efectuados durante a administração Obama), o que originou a morte de cerca de duas mil e quinhentas pessoas. O Washington Post refere 38 ataques no Iémen, que mataram 241 pessoas. Não há cifras na Somália mas o New York Times confirma a existência de operações desde 2007.

Juntando todas estes dados dispersos a cifra mínima de civis não norte-americanos ou da OTAN supera as 140 mil mortes e a máxima chega facilmente a um milhão de pessoas, o que significa entre 14 mil a 100 mil mortes por ano. Para podermos ter uma dimensão mais exacta destes dados, o numero de civis mortos pelo Blitz nazi sobre a Grã-Bretanha, durante a II Guerra Mundial, foram de 40 mil.

Talvez agora se compreenda porque é que o general Franks não queria contabilizar as vitimas. É que se começarmos a contar perdemos noção de quem é terrorista…

Quando a História torna-se no inimigo

Ao longo do rio Mekong o espectáculo é de desolação. As florestas foram petrificadas, o silencio da morte perdura e a presença humana é constituída por pequenas mutações. No hospital pediátrico Tu Du em Saigão existem filas de garrafas com fetos grotescos. São os efeitos do Agente Laranja, um herbicida desfolhante que as tropas norte-americanas lançaram nas florestas e aldeias do Vietnam.

Em finais de Maio o presidente Obama nega tudo isto – o agente laranja, os massacres, as consequências nocivas da guerra para os combatentes norte-americanos, etc. – pela voz de Hopey Changey e considera que a “participação dos USA na guerra do Vietnam foi (…) um acto de bravura (…) nos anais da história militar (…).” Fica limpa a História. Quando não interessa altera-se e transformam-se derrotas em vitórias.

Pouco tempo depois o New York Times publicou um artigo onde documentava a forma como são selecionadas as vitimas dos ataques drones. Segundo este jornal, a coisa é feita á terça-feira num ritual de morte, em que são visionadas centenas de fotografias e de registos de identificação. Depois os alvos são escolhidos e as operações executadas. Em Las Vegas os operadores sentados frente aos écrans de computador direcionam os drones que chegados às suas posições disparam os Hellfire, que sugam o ar dos pulmões das vitimas e as explodem aos bocados. Curiosamente este revelador e excelente artigo não foi uma fuga de informação ou trabalho de exaustiva investigação. Foi uma operação de relações públicas, onde a administração Obama demonstrava tão seguros os norte-americanos podem ficar, enquanto Obama estiver no poder. A marca Obama é um dos produtos mais solicitados dos últimos tempos. Protector da riqueza, perseguidor dos que dizem verdades, ameaçador de países, propagador de vírus informáticos e agora assassino às terças-feiras.

Enquanto isso as ameaças contra a Síria, coordenadas entre Washington e Londres, atingem novos picos de hipocrisia. O jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung identifica os responsáveis pelo massacre de Houla como sendo os próprios rebeldes, sendo as suas fontes…os rebeldes. Pois…foi uma operação psicológica (psy-ops como se diz na terminologia da especialidade) considerada brilhante e aperfeiçoada em relação às que foram cometidas na Líbia, Iraque e Afeganistão. Mas existem várias psy-ops (algumas implicam limpezas de memória histórica, como a da negação do agente laranja) e de vários níveis. Por exemplo: a promoção de Alastair Campbell, o colaborador de Tony Blair na invasão do Iraque. Nos seus diários, publicados no Guardian, a figura de Blair e dos media liberais mais respeitáveis são colocadas a salvo (mesmo limpando a memoria histórica) fazendo cair as culpas sobre o “demoníaco” Murdoch (como já está queimado…).

É uma realidade virtual esta que nos querem impor. Composta por amnésia histórica, mentira, omissão, transferência de dados e corrupção dos mesmos. Até os significantes e os significados são alterados…Sistemas políticos que prometiam justiça social foram substituídos pelo terror da austeridade. É uma guerra sem tréguas feita á democracia, onde os governos eleitos e sufragados pela soberania popular são manipulados pelos governos invisíveis das elites financeiras e económicas. É a total virtualização da realidade, um mundo psicopata...ou pelo menos querem dar connosco em doidos.

Fontes
Andrew Bacevich; The Short American Century; Harvard University Press.
Andrew Bacevich; Unleashed: Globalizing the Global War on Terror; http://www.tomdispatch.com
M. Reza Pirbhai; Body counts; http://www.counterpunch.org
John Pilger; History is the enemy as brilliant psy-ops became the news; http://www.johnpilger.com
The New York Times; 2012/02/19; 2012/05/29
The Nation; 2012/04/22
The Washington Post, 2012/05/03

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