Em entrevista à Carta Maior, Vera da Silva Telles, professora da Universidade de São Paulo e especialista em Sociologia Urbana, analisa o surto de violência nas periferias de São Paulo e a ação policial nestas áreas. Entre 17 e 28 de junho, segundo dados do Sistema de Informações Criminais, 127 pessoas foram assassinadas na capital paulista. Durante todo o mês de junho, 39 cidades da Grande São Paulo registraram, juntas, 166 mortos.
Rodrigo Giordano - Carta Maior
São Paulo - Na avaliação de Vera da Silva Telles, professora da Universidade de São Paulo e especialista em Sociologia Urbana, o surto de violência nas periferias de São Paulo faz parte de um embaralhamento dos critérios de ordem, no qual as ações dos agentes policiais gera um sentimento de imprevisibilidade nos moradores de tais áreas.
“Tudo pode acontecer, qualquer um pode ser apreendido, preso ou morto se estiver no lugar errado, na hora errada”, diz a professora, em entrevista à Carta Maior.
Entre 17 e 28 de junho, segundo dados do Infocrim (Sistema de Informações Criminais), 127 pessoas foram assassinadas na capital paulista; nesse mesmo período, 39 cidades da Grande São Paulo registraram, juntas, 166 mortos durante todo o mês de junho.
Especula-se que o estopim para essa onda de “violência extralegal”, como diz Vera, seria um suposto confronto entre membros do PCC (Primeiro Comando da Capital) em 28 de maio, na zona leste, com oficiais da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), do qual teria resultado cinco mortes.
Que relação você enxerga entre os assassinatos ocorridos nos bairros periféricos de São Paulo e o Estado?
Certamente detalhes de circunstâncias e números é algo ainda a ser mais bem investigado. Por ora, eu gostaria de enfatizar alguns aspectos do que parece estar acontecendo, e que podem efetivamente dar um registro do modo de atuação das forças da ordem. Pelos relatos e depoimentos que circulam nas reportagens e também pelas redes sociais: toque de recolher (Parque Bristol e outros bairros das periferias paulistas e bairros de municípios da Grande São Paulo), evidências de ação de grupos de extermínio (jovens executados por grupos encapuzados, em motos), execuções em supostos confrontos (a assim chamada “resistência seguida de morte”), invasão da PM nas vielas de favelas do Parque Bristol e Jardim São Savério, ruas cercadas pela polícia.
É importante prestar atenção justamente no modus operandi das forças da ordem nesses casos; aqui, o que se evidencia é, em primeiro lugar, o uso da violência extralegal. Mais ainda: é essencial atentar para o modo como os agentes da ordem fazem uso das prerrogativas que o Estado lhes confere para, na prática, suspender a lei e praticar a violência, em suas várias formas (das execuções ao toque de recolher, passando por varias formas de intimidação e violência). Mas, com isso, é como se ficasse anulada a diferença entre a lei e a transgressão da lei, a lei é como que desativada.
E isso significa que é a própria diferença entra a lei e o crime que fica embaralhada e, no limite, anulada. É isso o que permite acionar essa espécie de autorização para matar, sem que isso seja considerado um crime, e que está exposto nessa expressão que acompanha os registros policiais - “resistência seguida de morte”: uma categoria que não tem existência legal, mas que opera como uma espécie de autorização para matar, invertendo tudo e suspendendo todas as diferenças, de tal modo que toda e qualquer execução vira outra coisa, o crime é atribuído à vitima em suposta “troca de tiros” e “resistência à prisão”.
Quando é dito oficialmente que não há ocorrência nessas regiões que exijam reforço policial, é um modo de dizer, às avessas, que as forças policiais estão efetivamente operando ao revés da lei, fazendo uso da violência extralegal, com as consequências que se sabe. E quando se admite que algo ocorre, é no registro da “guerra urbana” supostamente desencadeada pelo assim chamado “crime organizado”.
Nas filigranas do que dizem autoridades políticas e policias, a senha para a matança, em nome do combate ao crime e exigência do endurecimento repressivo é uma gramática que aciona o argumento da urgência e emergência inscrito em dispositivos de exceção. Concretamente, é o reconhecimento de que vigora nas periferias paulistas (não só, também nas regiões centrais da cidade) situações de exceção. E é essa “exceção que virou a regra” que marca, atravessa, constitui e afeta a vida nessas regiões da cidade.
Quais as causas, tensões e engendramentos do atual conflito urbano na periferia?
Assim como aconteceu em 2006 (em outra escala), esses fatos operam algo como uma grande ocular do que é recorrente nas micro-situações da vida nessas regiões da cidade, sejam as periferias, sejam as regiões do centro (vide repressão ao comércio dito informal e combate aos camelôs): sempre, e em cada qual, um modus operandi que opera esse embaralhamento da lei e da transgressão da lei, dos critérios de ordem e “desordem” e, ainda, entre segurança e ameaça. Isso é importante para aquilatar o que pode estar em jogo em fricções ou conflitos abertos com as forças policiais, tão frequentes na historia urbana de nossas cidades, e que vem se repetindo nos últimos anos.
A isso se deve ainda acrescentar a mesma lógica e o mesmo embaralhamento da lei e não-lei, ordem-desordem, segurança-ameaça, que ocorrem nos conflitos, por vezes acirrados, em torno das igualmente recorrentes ações de “reintegração de posse”, como Pinheirinho. Esses fatos e circunstâncias devem ser colocados lado a lado, para se entender algo do conflito urbano de hoje, mas que tem um lastro na historia urbana (e política) de nossas cidades.
Baseado em suas pesquisas sobre cidade, trabalho e o ilegal no espaço urbano, qual o significado do toque de recolher?
Para isso, efetivamente, valeria a pena uma reflexão mais detida, até porque evoca dispositivos de segurança que começam a ser praticados por todos os lados, é uma forma de instituir algo como “zonas de exclusão” no interior e em torno da qual “tudo pode acontecer” e qualquer arbitrariedade pode se efetivar sem que seja reconhecida como tal: zonas de suspensão da lei e das garantias legais, e isso por conta da ação daqueles que são, em princípio, representantes da ordem e portadores das prerrogativas legais.
Qual o nível de semelhança dos assassinatos ocorridos nas últimas semanas com o que aconteceu em 2006? O que isso quer dizer?
É tudo muito parecido, por mais que as circunstâncias possam ser outras e a escala também. A lógica e a gramática das coisas são as mesmas. O complicador do que acontece agora está numa certa desproporção que precisaria ainda ser bem entendida. Em 2006, houve o “salve geral” e os chamados ataques do PCC; não é isso o que aconteceu agora, por mais que se possa aventar a hipótese de que houve ações e reações de revide dos ditos grupos criminosos (mas ao que se sabe, até agora isso não foi confirmado e resta tudo muito nebuloso). Sequer foi confirmado de que isso tenha algo a ver com o PCC, apenas suposições, rumores e referências vagas a isso.
No entanto, o modo como as execuções e assassinatos ocorreram agora, assim como os locais e algo como uma cartografia dos eventos, também ecoam o que aconteceu em 2006: evidências que dão razões de sobra para acreditar que em tudo isso deve haver acertos de conta entre forças policiais e grupos criminosos (como em 2006, como se sabe, o estopim dos acontecimentos foram justamente desacertos em torno dos acordos entre PCC e policia, achaques em demasia, vinganças, disputas).
Como você interpreta a cobertura da mídia sobre o assunto?
Na mídia, impera o clima de “guerra urbana”; isso é grave, pois é justamente o que aciona a razão legitimadora dos dispositivos de exceção e, mais concretamente, do processo de militarização da gestão urbana, que vem se acentuando nos últimos anos. E o gatilho que aciona isso e a lógica da “guerra urbana” é sempre o mesmo: a “guerra à droga”, as figuras da guerra urbana etc. Por outro lado, essas “miudezas” – o modo de operação das forças da ordem, nada disso entra em pauta, e quando entra, tudo aparece como acidentes de percurso aqui e ali. Não por acaso, esses “detalhes” circulam em forma de depoimentos, relatos e mini-reportagens, pelas redes sociais e por obra de múltiplos coletivos militantes que são, por isso mesmo, da maior importância no cenário atual.
“Tudo pode acontecer, qualquer um pode ser apreendido, preso ou morto se estiver no lugar errado, na hora errada”, diz a professora, em entrevista à Carta Maior.
Entre 17 e 28 de junho, segundo dados do Infocrim (Sistema de Informações Criminais), 127 pessoas foram assassinadas na capital paulista; nesse mesmo período, 39 cidades da Grande São Paulo registraram, juntas, 166 mortos durante todo o mês de junho.
Especula-se que o estopim para essa onda de “violência extralegal”, como diz Vera, seria um suposto confronto entre membros do PCC (Primeiro Comando da Capital) em 28 de maio, na zona leste, com oficiais da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), do qual teria resultado cinco mortes.
Que relação você enxerga entre os assassinatos ocorridos nos bairros periféricos de São Paulo e o Estado?
Certamente detalhes de circunstâncias e números é algo ainda a ser mais bem investigado. Por ora, eu gostaria de enfatizar alguns aspectos do que parece estar acontecendo, e que podem efetivamente dar um registro do modo de atuação das forças da ordem. Pelos relatos e depoimentos que circulam nas reportagens e também pelas redes sociais: toque de recolher (Parque Bristol e outros bairros das periferias paulistas e bairros de municípios da Grande São Paulo), evidências de ação de grupos de extermínio (jovens executados por grupos encapuzados, em motos), execuções em supostos confrontos (a assim chamada “resistência seguida de morte”), invasão da PM nas vielas de favelas do Parque Bristol e Jardim São Savério, ruas cercadas pela polícia.
É importante prestar atenção justamente no modus operandi das forças da ordem nesses casos; aqui, o que se evidencia é, em primeiro lugar, o uso da violência extralegal. Mais ainda: é essencial atentar para o modo como os agentes da ordem fazem uso das prerrogativas que o Estado lhes confere para, na prática, suspender a lei e praticar a violência, em suas várias formas (das execuções ao toque de recolher, passando por varias formas de intimidação e violência). Mas, com isso, é como se ficasse anulada a diferença entre a lei e a transgressão da lei, a lei é como que desativada.
E isso significa que é a própria diferença entra a lei e o crime que fica embaralhada e, no limite, anulada. É isso o que permite acionar essa espécie de autorização para matar, sem que isso seja considerado um crime, e que está exposto nessa expressão que acompanha os registros policiais - “resistência seguida de morte”: uma categoria que não tem existência legal, mas que opera como uma espécie de autorização para matar, invertendo tudo e suspendendo todas as diferenças, de tal modo que toda e qualquer execução vira outra coisa, o crime é atribuído à vitima em suposta “troca de tiros” e “resistência à prisão”.
Quando é dito oficialmente que não há ocorrência nessas regiões que exijam reforço policial, é um modo de dizer, às avessas, que as forças policiais estão efetivamente operando ao revés da lei, fazendo uso da violência extralegal, com as consequências que se sabe. E quando se admite que algo ocorre, é no registro da “guerra urbana” supostamente desencadeada pelo assim chamado “crime organizado”.
Nas filigranas do que dizem autoridades políticas e policias, a senha para a matança, em nome do combate ao crime e exigência do endurecimento repressivo é uma gramática que aciona o argumento da urgência e emergência inscrito em dispositivos de exceção. Concretamente, é o reconhecimento de que vigora nas periferias paulistas (não só, também nas regiões centrais da cidade) situações de exceção. E é essa “exceção que virou a regra” que marca, atravessa, constitui e afeta a vida nessas regiões da cidade.
Quais as causas, tensões e engendramentos do atual conflito urbano na periferia?
Assim como aconteceu em 2006 (em outra escala), esses fatos operam algo como uma grande ocular do que é recorrente nas micro-situações da vida nessas regiões da cidade, sejam as periferias, sejam as regiões do centro (vide repressão ao comércio dito informal e combate aos camelôs): sempre, e em cada qual, um modus operandi que opera esse embaralhamento da lei e da transgressão da lei, dos critérios de ordem e “desordem” e, ainda, entre segurança e ameaça. Isso é importante para aquilatar o que pode estar em jogo em fricções ou conflitos abertos com as forças policiais, tão frequentes na historia urbana de nossas cidades, e que vem se repetindo nos últimos anos.
A isso se deve ainda acrescentar a mesma lógica e o mesmo embaralhamento da lei e não-lei, ordem-desordem, segurança-ameaça, que ocorrem nos conflitos, por vezes acirrados, em torno das igualmente recorrentes ações de “reintegração de posse”, como Pinheirinho. Esses fatos e circunstâncias devem ser colocados lado a lado, para se entender algo do conflito urbano de hoje, mas que tem um lastro na historia urbana (e política) de nossas cidades.
Baseado em suas pesquisas sobre cidade, trabalho e o ilegal no espaço urbano, qual o significado do toque de recolher?
Para isso, efetivamente, valeria a pena uma reflexão mais detida, até porque evoca dispositivos de segurança que começam a ser praticados por todos os lados, é uma forma de instituir algo como “zonas de exclusão” no interior e em torno da qual “tudo pode acontecer” e qualquer arbitrariedade pode se efetivar sem que seja reconhecida como tal: zonas de suspensão da lei e das garantias legais, e isso por conta da ação daqueles que são, em princípio, representantes da ordem e portadores das prerrogativas legais.
Qual o nível de semelhança dos assassinatos ocorridos nas últimas semanas com o que aconteceu em 2006? O que isso quer dizer?
É tudo muito parecido, por mais que as circunstâncias possam ser outras e a escala também. A lógica e a gramática das coisas são as mesmas. O complicador do que acontece agora está numa certa desproporção que precisaria ainda ser bem entendida. Em 2006, houve o “salve geral” e os chamados ataques do PCC; não é isso o que aconteceu agora, por mais que se possa aventar a hipótese de que houve ações e reações de revide dos ditos grupos criminosos (mas ao que se sabe, até agora isso não foi confirmado e resta tudo muito nebuloso). Sequer foi confirmado de que isso tenha algo a ver com o PCC, apenas suposições, rumores e referências vagas a isso.
No entanto, o modo como as execuções e assassinatos ocorreram agora, assim como os locais e algo como uma cartografia dos eventos, também ecoam o que aconteceu em 2006: evidências que dão razões de sobra para acreditar que em tudo isso deve haver acertos de conta entre forças policiais e grupos criminosos (como em 2006, como se sabe, o estopim dos acontecimentos foram justamente desacertos em torno dos acordos entre PCC e policia, achaques em demasia, vinganças, disputas).
Como você interpreta a cobertura da mídia sobre o assunto?
Na mídia, impera o clima de “guerra urbana”; isso é grave, pois é justamente o que aciona a razão legitimadora dos dispositivos de exceção e, mais concretamente, do processo de militarização da gestão urbana, que vem se acentuando nos últimos anos. E o gatilho que aciona isso e a lógica da “guerra urbana” é sempre o mesmo: a “guerra à droga”, as figuras da guerra urbana etc. Por outro lado, essas “miudezas” – o modo de operação das forças da ordem, nada disso entra em pauta, e quando entra, tudo aparece como acidentes de percurso aqui e ali. Não por acaso, esses “detalhes” circulam em forma de depoimentos, relatos e mini-reportagens, pelas redes sociais e por obra de múltiplos coletivos militantes que são, por isso mesmo, da maior importância no cenário atual.
1 comentário:
Toma vergonha na cara, dona Vera.
Fala agora das favelas militarizadas PELOS TRAFICANTES DE DROGAS, áreas em que a polícia só pode entrar com blindados.
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