Nada de realmente novo acontecerá na economia mundial antes das eleições nos EUA em novembro e das eleições alemãs de meados de 2013. Até lá, continuaremos a ver a Grécia e a Irlanda dançarem à beira do precipício e Espanha e Itália flertarem com o desastre, mas cada um desses países será mantido por instrumentos de respiração automática que não lhes garantem o regresso à vida normal mas, por outro lado, evitam o colapso total com potencial de arrastar o resto da Europa e boa parte do mundo. O artigo é de J. Carlos de Assis.
J. Carlos de Assis (*) – Carta Maior
Nada de realmente novo acontecerá na economia mundial antes das eleições americanas de novembro e das eleições alemãs de meados do próximo ano. Até lá, continuaremos a ver a Grécia e a Irlanda dançarem à beira do precipício e Espanha e Itália flertarem com o desastre, mas cada um desses países será mantido por instrumentos de respiração automática que não lhes garantem o regresso à vida normal mas, por outro lado, evitam o colapso total com potencial de arrastar o resto da Europa e boa parte do mundo.
A melhor ilustração gráfica desse período não é o V, o W ou o U dos primeiros analistas da crise de 2008. No início de 2009, num grande seminário sobre a crise promovido pelo então governador Requião em Foz do Iguaçu, observei que ela teria a forma de um eletrocardiograma. É justamente o que está acontecendo. Embora haja forças poderosas que, empurradas pelo que ainda sobrevive do ideário neoliberal pretendem jogar as economias dos países ricos no fundo do poço, subsiste uma capacidade de reação modesta para contrariá-las.
Obama, pessoalmente progressista mas cercado por uma equipe neoliberal herdada de Clinton, e além disso iludido pela ideia de atrair os republicanos para uma política bipartidária, fracassou na tentativa de recuperar a economia, e sobretudo o emprego nos EUA, tendo sido bloqueado em 2010 ao tentar fazer aprovar no Congresso um segundo programa de estímulo fiscal. Isso emitiu um sinal fortemente negativo para o resto do mundo, em especial para a Europa. Na reunião de 2010 em Toronto, no Canadá, o trio Merkel-Sarcozy-Cameron tomou as rédeas, saiu do marco cooperativo das políticas fiscais de estímulo e impôs um programa de austeridade fiscal insano na área do euro.
Considerando que a economia mundial não vai ser reordenada por forças naturais, e que as forças políticas atualmente dominantes na Europa – exceto, parcialmente, na França – são filiadas ao pensamento neoliberal, é pura ilusão esperar que haja uma mudança a curto e médio prazos para melhor na economia. Alguma coisa diferente poderia ocorrer se Obama fosse reeleito com maioria no Congresso. A probabilidade é que ocorra justamente o contrário. Nessa hipótese, será revivido Hoover, o presidente americano da Grande Depressão.
Uma alternativa favorável para o mundo poderia ser a vitória de Obama, com maioria congressual, e a derrota de Merkel para os sociais-democratas. Isso abriria caminho para um novo consenso do G20, similar que aconteceu nas três reuniões realizadas logo em seguida à eclosão da crise, em Washington, Londres e Pittsburg. Nesses encontros, predominou o compromisso da cooperação entre os países e da realização de políticas de estímulo fiscal. A regressão posterior das economias ricas se deveu ao espúrio semi-consenso de Toronto, reforçado nas reuniões seguintes de Seul e México.
É que, qualquer que seja a evolução da economia mundial, será indispensável alguma forma de governança para ordenar a cooperação internacional, sem a qual, num mundo globalizado, não será possível o reordenamento das economias. Dado que não há um país hoje que, por mais poderoso que seja, exerça o papel de um hegemon com capacidade de ordenar o mundo – como fizeram os EUA, no Ocidente, no pós-guerra -, a única alternativa possível é um hegemon coletivo, que está se institucionalizando na forma do G20 – um ente que combina uma representatividade global com capacidade de interação por ter número limitado de players. Este foro determinará a evolução ou involução da crise nos próximos meses.
Dado que, neste momento, não há muito que falar da crise por seu caráter repetitivo, vamos a dois pontos que escandalizaram meus leitores em colunas anteriores, ambos de caráter teórico, e aos quais talvez seja interessante voltar. Um deles refere-se à própria teoria que estou defendendo, segundo a qual a civilização caminha, depois do caos, para a idade da cooperação. Outro se refere ao que denominei de mais-valia social, algo que deriva de uma releitura de Marx e que julgo que ele trataria teoricamente, se houvesse evidências disso na sua época, no quinto volume de O Capital.
O alvorecer de uma idade de cooperação não é um sonho kantiano de paz perpétua. É um imperativo da civilização. Ninguém em sã consciência vai achar que a crise financeira atual vai se resolver por uma revolução popular anti-capitalista de forma a instaurar o socialismo – desta vez, o socialismo “bom”, já que o soviético ficou um tanto desmoralizado. Mas é perfeitamente possível considerar que a crise determinou o colapso do capitalismo neoliberal, cuja superação passa por algum mecanismo cooperativo entre as classes, sem necessidade da eliminação física de uma delas, e enfrentar a sua reação.
É justamente nesse ponto que convém dar atenção ao conceito de mais-valia social. No tempo de Marx, toda mais-valia produzida pelo trabalhador era apropriada pelo capital (direta ou indiretamente) a partir da esfera da produção. Apenas uma fração irrelevante do trabalho excedente era destinada ao governo, sendo gasta sobretudo em segurança e forças armadas. A partir do século XX, esse quadro muda radicalmente. Aos poucos, uma parte cada vez maior da mais valia originária da esfera produtiva passa a ser apropriada pelos governos para financiar projetos e programas sociais de interesse direto do trabalhador. Daí a saúde pública, a educação pública, da previdência social, do salário desemprego etc.
Isso não ocorreu por acaso. Foi resultado da aquisição de direitos de cidadania pelo trabalhador. Os novos detentores de direitos políticos impuseram ao Estado direitos sociais. Em consequência, o trabalhador recupera como cidadão parte da mais valia que ele produziu e que foi apropriada inicialmente pelo patrão. É a relação entre economia e política nessa forma que abre espaço para o avanço da civilização na base da prevalência da democracia e, em última instância, da cooperação. É que mesmo uma grande corporação moderna é, ela própria, internamente, uma entidade cooperativa socialmente regulada, a cujo destino se ligam os destinos de milhares de trabalhadores.
(*) Economista e professor de Economia Internacional da UEPB, autor com o matemático Francisco Antonio Doria do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, pela Civilização Brasileira. Esta coluna sai também nos sites Rumos do Brasil, Brasilianas e no jornal carioca Monitor Mercantil.
A melhor ilustração gráfica desse período não é o V, o W ou o U dos primeiros analistas da crise de 2008. No início de 2009, num grande seminário sobre a crise promovido pelo então governador Requião em Foz do Iguaçu, observei que ela teria a forma de um eletrocardiograma. É justamente o que está acontecendo. Embora haja forças poderosas que, empurradas pelo que ainda sobrevive do ideário neoliberal pretendem jogar as economias dos países ricos no fundo do poço, subsiste uma capacidade de reação modesta para contrariá-las.
Obama, pessoalmente progressista mas cercado por uma equipe neoliberal herdada de Clinton, e além disso iludido pela ideia de atrair os republicanos para uma política bipartidária, fracassou na tentativa de recuperar a economia, e sobretudo o emprego nos EUA, tendo sido bloqueado em 2010 ao tentar fazer aprovar no Congresso um segundo programa de estímulo fiscal. Isso emitiu um sinal fortemente negativo para o resto do mundo, em especial para a Europa. Na reunião de 2010 em Toronto, no Canadá, o trio Merkel-Sarcozy-Cameron tomou as rédeas, saiu do marco cooperativo das políticas fiscais de estímulo e impôs um programa de austeridade fiscal insano na área do euro.
Considerando que a economia mundial não vai ser reordenada por forças naturais, e que as forças políticas atualmente dominantes na Europa – exceto, parcialmente, na França – são filiadas ao pensamento neoliberal, é pura ilusão esperar que haja uma mudança a curto e médio prazos para melhor na economia. Alguma coisa diferente poderia ocorrer se Obama fosse reeleito com maioria no Congresso. A probabilidade é que ocorra justamente o contrário. Nessa hipótese, será revivido Hoover, o presidente americano da Grande Depressão.
Uma alternativa favorável para o mundo poderia ser a vitória de Obama, com maioria congressual, e a derrota de Merkel para os sociais-democratas. Isso abriria caminho para um novo consenso do G20, similar que aconteceu nas três reuniões realizadas logo em seguida à eclosão da crise, em Washington, Londres e Pittsburg. Nesses encontros, predominou o compromisso da cooperação entre os países e da realização de políticas de estímulo fiscal. A regressão posterior das economias ricas se deveu ao espúrio semi-consenso de Toronto, reforçado nas reuniões seguintes de Seul e México.
É que, qualquer que seja a evolução da economia mundial, será indispensável alguma forma de governança para ordenar a cooperação internacional, sem a qual, num mundo globalizado, não será possível o reordenamento das economias. Dado que não há um país hoje que, por mais poderoso que seja, exerça o papel de um hegemon com capacidade de ordenar o mundo – como fizeram os EUA, no Ocidente, no pós-guerra -, a única alternativa possível é um hegemon coletivo, que está se institucionalizando na forma do G20 – um ente que combina uma representatividade global com capacidade de interação por ter número limitado de players. Este foro determinará a evolução ou involução da crise nos próximos meses.
Dado que, neste momento, não há muito que falar da crise por seu caráter repetitivo, vamos a dois pontos que escandalizaram meus leitores em colunas anteriores, ambos de caráter teórico, e aos quais talvez seja interessante voltar. Um deles refere-se à própria teoria que estou defendendo, segundo a qual a civilização caminha, depois do caos, para a idade da cooperação. Outro se refere ao que denominei de mais-valia social, algo que deriva de uma releitura de Marx e que julgo que ele trataria teoricamente, se houvesse evidências disso na sua época, no quinto volume de O Capital.
O alvorecer de uma idade de cooperação não é um sonho kantiano de paz perpétua. É um imperativo da civilização. Ninguém em sã consciência vai achar que a crise financeira atual vai se resolver por uma revolução popular anti-capitalista de forma a instaurar o socialismo – desta vez, o socialismo “bom”, já que o soviético ficou um tanto desmoralizado. Mas é perfeitamente possível considerar que a crise determinou o colapso do capitalismo neoliberal, cuja superação passa por algum mecanismo cooperativo entre as classes, sem necessidade da eliminação física de uma delas, e enfrentar a sua reação.
É justamente nesse ponto que convém dar atenção ao conceito de mais-valia social. No tempo de Marx, toda mais-valia produzida pelo trabalhador era apropriada pelo capital (direta ou indiretamente) a partir da esfera da produção. Apenas uma fração irrelevante do trabalho excedente era destinada ao governo, sendo gasta sobretudo em segurança e forças armadas. A partir do século XX, esse quadro muda radicalmente. Aos poucos, uma parte cada vez maior da mais valia originária da esfera produtiva passa a ser apropriada pelos governos para financiar projetos e programas sociais de interesse direto do trabalhador. Daí a saúde pública, a educação pública, da previdência social, do salário desemprego etc.
Isso não ocorreu por acaso. Foi resultado da aquisição de direitos de cidadania pelo trabalhador. Os novos detentores de direitos políticos impuseram ao Estado direitos sociais. Em consequência, o trabalhador recupera como cidadão parte da mais valia que ele produziu e que foi apropriada inicialmente pelo patrão. É a relação entre economia e política nessa forma que abre espaço para o avanço da civilização na base da prevalência da democracia e, em última instância, da cooperação. É que mesmo uma grande corporação moderna é, ela própria, internamente, uma entidade cooperativa socialmente regulada, a cujo destino se ligam os destinos de milhares de trabalhadores.
(*) Economista e professor de Economia Internacional da UEPB, autor com o matemático Francisco Antonio Doria do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, pela Civilização Brasileira. Esta coluna sai também nos sites Rumos do Brasil, Brasilianas e no jornal carioca Monitor Mercantil.
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