Rosa Ramos – i online - Entrevista
Polémico e sem papas na língua, o bispo das Forças Armadas defende que a Igreja, mais do que nunca, “deveria falar”
É o único bispo português a viver num andar e ainda não perdeu o hábito de fechar os convidados à chave dentro de casa. Em 2010, quando recebeu o i pela primeira vez, D. Januário Torgal apressou-se a justificar o estranho hábito com o facto de ter sido assaltado há pouco tempo. Levaram-lhe uma máquina fotográfica. Agora, assim que voltamos a ver a chave rodar na fechadura, equacionamos a hipótese de ter havido outro assalto. Afinal não: trancar o apartamento a sete chaves tornou-se apenas uma questão de hábito. Na verdade, as novidades no prédio do bispo das Forças Armadas são outras e bem sedutoras para as más-línguas: D. Januário tem como novos vizinhos dois travestis. Um morador mais antigo até já foi falar com ele para lhe pedir que resolvesse “o problema”. “Mas eu cá não me meto nessas coisas”, garante o bispo. Depois da polémica recente em torno dos seus rendimentos, D. Januário Torgal continua a dar entrevistas, apesar de se confessar incomodado com a hipótese de os portugueses poderem pensar que é “um grande aldrabão”. Diz que não sente repulsa pelos ricos, mas sim pelo enorme abismo que existe entre ricos e pobres. E deixa um aviso: quando Portugal acabar de pagar a dívida, o que vai restar é uma “multidão de pobres”.
Houve, recentemente, uma polémica em torno da sua reforma. Associou-a ao facto de ter criticado, pouco tempo antes, o primeiro-ministro. Acredita mesmo que existiu uma relação?
Não tenho a menor dúvida. Foi a propósito. E não tenho a mania da perseguição. Defendo a liberdade de expressão. O que eu achei altamente desagradável foi ter-se atirado para a opinião pública a ideia de que um trabalhador com tantos anos de serviço – eu trabalhei mais de 40 anos, primeiro como professor e só depois ao serviço das Forças Armadas – e que até mostra uma grande sensibilidade por quem vive mal é, afinal de contas, um grande aldrabão. Porque ganha muito. Ou seja, ganha muito dinheiro ao fim do mês e depois anda para aí a fazer-se de santinho. O grande problema que se gerou com isto tudo tem a ver com o exemplo que a pessoa dá. No caso, um bispo.
Está zangado com os jornais?
Não, de maneira alguma. Terei sempre para com os jornalistas a mesma atitude de respeito.
É legítimo que os padres e bispos aufiram grandes rendimentos? Isso choca com a doutrina da Igreja?
Na Universidade Católica, os professores sacerdotes ganham menos do que os leigos. Eu devo dizer que não sei se concordarei com isso.
Acha, então, que um padre deve ganhar o mesmo que um leigo?
Não é bem isso. Penso que um sacerdote deve ganhar o suficiente para levar, com dignidade, a sua vida. Não acho que deva ter um salário muito elevado. E acima de tudo deve, na sua vida pessoal, dar testemunho de amor aos pobres e de desprendimento. É uma regra fundamental. Eu posso ter um fato bom, não muito caro, mas bom e digno. Isso não tem mal nenhum. Mas não vou ter dez fatos. Pode ser, de facto, questionável que um bispo tenha automóvel, casa de campo, passe a vida em turismo, tenha um andar principesco numa das melhores zonas da cidade, frequente os restaurantes mais caros de Lisboa. Isso sim, pode ser questionável.
É legítimo que as pessoas queiram saber o que um bispo faz com o seu dinheiro?
O que eu acho é que quem assume campos públicos deveria publicitar os bens que possui...
Mas eu perguntava-lhe em relação aos membros da Igreja.
A mim não me repugna absolutamente nada dizer o que a Igreja tem. Da última vez que vi, o Ordinariato Castrense tinha no banco, e posso-lhe dizer sem qualquer problema, cerca de quatro mil contos (20 mil euros). Dinheiro que vamos poupando e vamos lá pondo.
E onde é que gasta o seu dinheiro? Tem exuberâncias?
Não.
É o único bispo português que vive num andar. Paga a renda...
Pago a minha renda, claro. Onde às vezes gasto algum dinheiro é em livros. Eu adoro livros, pronto. Mas não faço colecções luxuosas de livros ou de obras antigas. O livro é um objecto de estudo. Gosto de o riscar, de o marcar, respeitando-o, claro. Mas não sou pessoa de acumular coisas. Às vezes recebo presentes e depois distribuo por amigos, família. A única exuberância, se lhe posso chamar assim, são mesmo os livros. Temo o homem de um só livro, como no ditado clássico. Temos de nos abrir ao pluralismo da ciência, do progresso. Por isso, devemos cultivar o gosto da leitura e aprender com os livros no silêncio da nossa casa e no silêncio do próprio livro e também com as pessoas que nos ensinam. E com os acontecimentos.
Ganha-se bem dentro da Igreja, actualmente?
Francamente, acho o salário dos padres relativamente baixo para as responsabilidades que assumem. Mas também posso dizer – há algumas excepções, claro – que, felizmente, o clero não vive uma situação incómoda.
Dizia há pouco que se pode questionar se um bispo tem determinados bens ou determinados hábitos. A questão está no uso que se dá ao dinheiro?
E no uso que se dá aos bens. No caso da minha reforma, volto a dizer: são cerca de 2500 euros. Na década de 1970, fui chamado para dar aulas na faculdade. Não como padre, mas graças ao meu desempenho enquanto aluno. E, mais tarde, no caso das Forças Armadas, foi a prestação de um serviço espiritual. Uma vez que aos padres e aos bispos é atribuída uma graduação militar para se inserirem numa cultura muito específica, com certeza que esses padres e bispos devem ganhar o salário normal e justo desses escalões. O problema, como dizia, não é o dinheiro que se ganha. Digo muitas vezes isto: eu tenho alguma culpa de ser filho de pais ricos? Ou de os meus pais, proporcionalmente à população portuguesa, serem considerados mais ricos do que os pobres? Os meus pais foram pessoas da classe média, mas o meu pai era um velho industrial e a minha mãe – que foi uma das primeiras mulheres licenciadas em Portugal – deixou de trabalhar a dada altura, mas foi professora de liceu. Isso faz ou fez de mim uma pessoa pior?
Considera que há cargos que devem ser bem remunerados?
Claro. É justo que as pessoas aufiram o ordenado que merecem e de acordo com as suas responsabilidades. Não é justo é que existam, no país, tantas disparidades salariais. Tem de haver maior equidade. No entanto, considero que há funções que devem ser muitíssimo bem pagas: um grande operador, um grande cirurgião, um grande professor universitário. Eu acho, por exemplo, que os professores universitários são muito mal pagos. E é uma das carreiras mais nobilitantes, mais sérias e mais importantes. Todo o sector da educação deveria, aliás, ser melhor pago. A mim não me repugna que existam ricos. O que me repugna é que haja um abismo tão grande, na sociedade, entre ricos e pobres. É preciso igualdade de oportunidades. Foi essa a doutrina de um dos meus maiores amigos e a minha sensibilidade política vem daí: de Francisco Sá Carneiro. O que repugnava o Chico era a ideia de que a sociedade portuguesa fosse insensível aos problemas sociais.
Como conheceu Sá Carneiro?
Ele pertencia ao movimento de casais “Equipas de Nossa Senhora” e depois vim a encontrá-lo num outro movimento, o Cursos de Cristandade. Conhecemo-nos em 1962. Eu era professor no Colégio da Formiga, em Ermesinde, e ele pediu-me se era possível arranjar lá quartos para os vários casais do movimento se encontrarem e levarem os filhos, aos domingos. Depois foi-se formando um conjunto de amigos. Tínhamos muitas conversas e o que sempre me tocou nele foi a enorme sensibilidade para com as injustiças sociais, os pobres, os maus salários, as condições degradantes de trabalho. Eu gostava de ver, em Portugal, uma nova classe política.
Porquê uma nova classe política?
Primeiro que tudo, eu não entro em políticas partidárias. Entro em política no sentido da defesa do cidadão e do bem comum. Mas o que eu vejo, hoje, é que a classe política usa eufemismos para falar nos pobres: são apelidados de “os mais vulneráveis”, “os mais débeis”. E o que eu gostava de ver era uma nova classe que não tenha dificuldade em pegar nos problemas dos mais pequeninos. E repare que o mundo pobre é muito vasto: a pedofilia, a violência doméstica – no ano passado, 50 mulheres foram assassinadas pelo velho machismo português. Tudo isto faz parte do conceito de pobreza. Tal como também faz parte do conceito de pobreza o desaparecimento de tribunais e pessoas que têm de andar dez quilómetros a pé para ir a um tribunal. Eu pergunto-me: onde está a sensibilidade?
Diz que não lhe repugnam os ricos, mas não é o Evangelho que diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino do céu?
Sim, mas depois os discípulos perguntaram a Jesus: mas então os ricos perdem-se? E Jesus explicou que não, porque o que é impossível aos homens é possível a Deus. E oxalá Deus toque nos ricos de Portugal. Temos ricos magníficos, mas também temos outros que só vêem o dinheiro. Talvez sejam tocados para que despertem para as suas responsabilidades sociais e comecem a partilhar os seus bens.
Há pouco falou em sensibilidade. Tem faltado sensibilidade a este governo?
Os políticos merecem respeito. Mas os políticos encartados não, porque fizeram disso a sua carreira. Porque não conseguiram outra. Aquilo que me repugna a mim e a muitos portugueses é a insensibilidade. E não venham cá com cumprimentos e saudações. As pessoas têm vivido oprimidas, estão revoltadas.
Mas são precisas reformas?
Eu sempre defendi a necessidade de reformas. Mas o que eu não vejo, ou não vejo de forma proporcional, é o abate das gorduras do Estado – como aliás foi prometido. Ainda há bocado esteve aqui em casa um casal jovem, que está à espera do segundo filho e que me disse que está no limite das suas capacidades. Gostaria que este casal tão jovem, tão digno, tivesse uma vida um pouco mais desafogada para criar os seus filhos. Andamos aí a chorar porque não há crianças em Portugal e qualquer dia somos um jardim de velhos. Precisamos de povoar o país, mas isso não vai acontecer porque a maioria da população está no limite. Repare que os cortes têm chegado de todas as frentes. Choca-me que parte da sociedade portuguesa não tenha sequer dinheiro para pagar uma casa. Sim senhor, que se faça uma reforma. E com certeza que temos de pagar o que devemos. Mas fico muito admirado quando vejo, no Estado, determinados funcionários com determinadas regalias – como por exemplo um motorista de um determinado ministério de que tanto se falou. Ou o menu da Assembleia da República que é altamente afidalgado. Custa-me a acreditar que possa ser verdade. As gorduras do Estado não têm sido abatidas e continuo a pôr o problema de existirem instituições a quem não é aplicado o ditame da troika. Tem havido filhos bastardos e filhos legítimos. E se não houver equidade não há coesão social.
A que instituições se está a referir?
A várias... A Caixa Geral de Depósitos, o Banco de Portugal, a TAP. Outras. E às tantas até pode haver muita gente a pensar que o Ordinariato Castrense também é um privilegiado.
E não é verdade que a Igreja é uma privilegiada?
Há realmente muita gente que continua convencida que os padres e os bispos não pagam impostos. Mas pagamos. E é bom que paguemos. Eu entendo que no cumprimento de direitos e de deveres devemos ser iguais.
Seria de esperar, por parte da Igreja, uma posição mais forte relativamente à situação que o país atravessa?
Acho que a Igreja, mais do que nunca, deveria falar, embora haja aí uns senhores que têm medo. O que não faz sentido: a Igreja deveria sentir-se perfeitamente à vontade para o fazer, porque isso vai ao encontro das directrizes que nos foram dadas. Quando somos ordenados bispos é-nos feita uma pergunta: “Queres ser bondoso e compassivo com os pobres?” E compaixão significa solidariedade. Não deve ser um sentimento romântico, irreal e beato. Mais: quando o Papa esteve cá há dois anos pediu, no encontro com os bispos, para sermos defensores dos direitos inalienáveis da pessoa. Para juntarmos a nossa voz à dos mais débeis, aos que não têm voz própria. E disse-nos para não termos medo de levantar a voz em favor dos oprimidos e dos humilhados.
Mas poucos bispos têm levantado publicamente a voz.
Há gente que pensa que levantar a voz é fazer política partidária. Mas não é. Acho que a Igreja deve falar de forma concertada. E tem responsabilidade na matéria, porque toma o partido dos pobres – distribuindo bens através de instituições sociais e centros paroquiais. Por isso, deve estar perfeitamente à vontade para o fazer.
Esse papel concertado cabe a quem? À Conferência Episcopal, ao cardeal- -patriarca?
A Conferência Episcopal já publicou vários documentos sobre esta questão, neste e em outros períodos conturbados. E o cardeal-patriarca é um bispo igual a qualquer outro, só que foi votado para presidente da Conferência...
... por isso deveria ter maiores responsabilidades.
Quanto a isso, não devo julgar. Só respondo pelas minhas posições e o que eu quero é que me ajudem sempre para eu poder assumir as minhas responsabilidades. Eu falo por mim e só por mim. Pelo meu pensamento, pela minha consciência. Haverá bispos que concordam comigo, outros que não. Eu digo o que penso quando a minha consciência o dita. Se agora há guerra na Síria, eu acho horroroso que se deixe morrer um povo. Como acho horrorosa a política do Irão. Como acho horroroso que certos partidos em Portugal – e é uma pergunta que coloco à minha consciência – tenham a pouca sorte de ter lá um conjunto de cidadãos que são hoje conhecidos em todo o país pela sua corrupção, pelos roubos e por outras coisas que operaram. É que não são um, nem dois, nem três.
Está a falar de quem?
Dos casos que vêm a público. Não vou particularizar.
E de onde vem essa corrupção?
Como diz S. Paulo, a raiz de todos os vícios é o dinheiro. Mas o dinheiro em si, ou mesmo o lucro, não são um problema. O problema é o lucro gigantesco enquanto sanguessuga daqueles que nem sequer podem ter acesso àquilo que dá lucro, a uma moedazinha que seja... isso sim é o problema. E tudo isto em que nos encontramos é fruto do dinheiro, da ânsia de prestígio social e de poder. Quem tem dinheiro tem poder e quem tem poder raramente vive sem dinheiro. Eu conheço empresários magníficos, que são os primeiros a dizer-me que são uma excepção. Há um certo número de empresários portugueses que são perfeitamente inaptos, não tiveram formação nem cultura, e que querem ganhar dinheiro de qualquer forma. E isto, hoje, acontece em qualquer profissão. Dou um pontapé no outro, passei à frente do outro, utilizei a mentira, acusei o outro? Isso não interessa. E isso repugna-me. Precisamos hoje de um Padre António Vieira, porque há índios que estão a ser maltratados. Precisamos de um Ximenes Belo, que pôs de pé a autonomia de Timor ou de um João Paulo II, que teve a coragem de dizer que há ideologias mortíferas. Eu tenho a impressão que o primeiro golpe contra o muro de Berlim veio do Papa. E esta ditadura da austeridade... não haverá hoje uma outra nova ditadura?
Há uma dívida que é preciso pagar.
E eu estou de acordo com isso: pagar aquilo que pedimos. Mas como gente honesta que somos – e temo-lo demonstrado – poderíamos pagar mais devagar para que a cauda da procissão não seja calcada pela dívida. Porque no termo de todo este pagamento, lá para 2020 – e eu amo o meu país, as pessoas do meu país e bato-me pela paz social –, nessa altura vamos ter uma multidão desenfreada de pobres. Pagámos a dívida dos ricos, mas nasceu uma multidão de pobres e revoltados em Portugal. Não tenho dúvidas de que é isso que vai acontecer no futuro. E foi por isso que eu há tempos disse que era preciso ir para a rua fazer democracia.
Mas aconselha e incentiva os portugueses a irem para a rua?
Nesta altura não resolvemos nada indo para a rua no sentido de destruir. Mas a CGTP, por exemplo, é um modelo de cidadania – e há muita gente que vai ficar zangada por eu dizer isto. As manifestações a que tenho assistido, o primeiro de Maio... Eu no ano passado fui ver o protesto dos professores. Estive lá, fui ver. E o que é que aquilo significava? Significava o desacordo relativamente à condução de um sistema pedagógico. Estamos numa democracia! E ninguém virou carros ou partiu montras. Uns fazem guerra, outros fazem amor. Mas a missão de qualquer cidadão é fazer democracia.
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