quinta-feira, 19 de julho de 2012

NOVO “MURO DE BERLIM” DIVIDE OS JUROS NA ZONA EURO




Jorge Nascimento Rodrigues – Expresso, em Economia

O cisma é cada vez mais evidente entre o "clube" das economias com juros mínimos e o "clube" dos candidatos a uma bancarrota e dos que andam lá próximo. Os juros dos Bunds voltaram a fixar hoje mínimos históricos. E as obrigações espanholas no prazo a 10 anos fecharam próximo da linha vermelha dos 7%.

O novo Muro já divide mesmo a meio o grupo das quatro grandes economias da zona euro. De um lado, Alemanha e França no "clube" das economias com juros negativos ou próximos de 0% em alguns prazos mais curtos e, em geral, baixos a médio e longo prazo; e, do outro, a Espanha e Itália com juros acima de 5% nos prazos a 5 e a 10 anos, situação que mantém a primeira no "clube" dos candidatos a uma bancarrota num horizonte a cinco anos e a segunda à beira da porta de entrada. O cisma entre os dois "clubes" é oficial. Mário Draghi, o presidente do Banco Central Europeu (BCE), chamou-lhe "fragmentação" no mercado da dívida e o Fundo Monetário Internacional (FMI) está cada vez mais preocupado com o efeito deste cisma na economia mundial.

Amanhã vão decorrer dois leilões que serão simbólicos desta divisão. O Tesouro Público espanhol vai emitir dívida com maturidades para 2014, 2017 e 2019, e a Agência do Tesouro francesa vai realizar seis leilões de dívida com maturidades em 2015,2016,2017,2019, 2022 e 2040.

Bunds: juros negativos em mínimos históricos

Hoje foi mais um dia em que os contrastes ficaram bem visíveis no mercado secundário da dívida soberana. As yields (juros) dos Bunds, designação dos títulos do Tesouro alemão, fixaram novos mínimos nos prazos a 2, a 3 e a 5 anos, segundo dados da Bloomberg. Nos prazos a 2 e a 3 anos são negativos, tendo hoje fechado em novos mínimos históricos de -0,061% e -0,027% respetivamente. Ou seja, nestes casos, os tomadores de dívida soberana aceitam ter uma rentabilidade negativa para possuírem estes títulos nos seus portefólios de investimentos em produtos de rendimento fixo. Em suma, os investidores pagam para emprestar a esses países. Alguns críticos alcunham estes títulos de "certificados de confiscação", enquanto outros chamam-lhes valores "refúgio". No prazo a 5 anos, os juros dos Bunds fixaram um novo mínimo em 0,263%.

No caso de França, em que os juros dos títulos franceses a 5 e a 10 anos tinham ontem (17 de julho) fixado novos mínimos, assistiu-se hoje a um movimento generalizado de alta, mas os níveis continuam muito baixos: 0,123% a 2 anos; 0,3% a 3 anos; 0,798% a 5 anos; e 2,098% a 10 anos.

O "clube" dos países com juros negativos nestes prazos mais curtos, no seio da zona euro, inclui a Alemanha (que temos regularmente referido) e a Holanda. Esta semana juntou-se a Áustria e a Finlândia. Fora da zona euro, mas dentro da União Europeia (EU), inclui-se a Dinamarca, e, na Europa, fora da UE, a Suíça (que tem juros negativos nos títulos a 3 e a 5 anos). A França já conseguiu, também, emitir dívida soberana no curto prazo no mercado primário com rentabilidades negativas para os investidores.

Obrigações espanholas a 10 anos com juros próximos dos 7%

A pressão sobre a dívida espanhola voltou hoje a aumentar. Os juros das obrigações espanholas (OE) subiram em todas as maturidades e no caso dos juros das OE a 10 anos fechou em 6,962%, de novo, muito próximo da linha vermelha dos 7%. O fosso com os juros dos Bunds alemães é abissal: no prazo a 2 anos o Tesouro espanhol paga 5% aos credores enquanto o Tesouro alemão paga juros negativos (ou seja, cobra aos credores); no prazo a 3 anos, o mesmo tipo de diferencial, com os juros das OE em 5,895% e os juros dos Bunds em valor negativo; na maturidade a 5 anos, os juros das OE estão em 6,33% e os juros dos Bunds em 0,263%. No caso usado como referência para calcular o prémio de risco, a diferença situa-se entre 1,199% para os juros dos Bunds a 10 anos e 6,962% para as OE com o mesmo prazo.

Também os juros dos títulos do Tesouro italiano estiveram hoje sob pressão. Subiram em todas as maturidades. No prazo a 10 anos, fecharam ligeiramente acima de 6%. A situação não é tão grave quanto a espanhola, mas o fosso com os juros dos Bunds alemães ou das obrigações francesas é significativo.

Segunda fase na crise da dívida soberana

Este muro que divide o coração da zona euro - as quatro maiores economias - marca uma segunda fase da crise das dívidas soberanas na Europa. Em uma primeira fase, entre 2009 e 2011, os investidores internacionais começaram por reavaliar o risco das dívidas das economias mais frágeis da "periferia" da zona euro, sobretudo depois da revelação no final de 2009 das vigarices nas estatísticas gregas durante o governo da Nova Democracia e da crise aguda do sistema bancário irlandês. Os especialistas chamam-lhe, em inglês, o re-pricing do risco. Essa reavaliação levou ao disparo das yields dos títulos soberanos dos países do euro mais "periféricos" com problemas de dívida pública elevada em relação ao PIB (Grécia e Portugal) ou mergulhados no estoiro de uma "bolha" financeira sem precedentes (Irlanda).

Atualmente, emergiu uma segunda fase, em que os investidores dissociam claramente o risco das dívidas espanhola e italiana do de outras grandes economias da zona euro. O FMI considera no relatório sobre as "Políticas da Zona Euro", agora divulgado, que "a crise da zona euro atingiu uma fase nova e crítica", em que "as conexões adversas entre as dívidas soberanas, os bancos e a economia real são mais fortes do que nunca".

Face ao "clube" das economias que pagam juros mínimos (ou mesmo negativos, em certos prazos e casos) foi engordando o "clube" dos candidatos a uma bancarrota num horizonte de cinco anos. Este "clube" mundial já teve seis membros da zona euro - Grécia, Chipre, Portugal, Espanha, Irlanda e Itália -, mas ultimamente a Itália tem-se conseguido manter apenas à porta. Hoje, a probabilidade de entrada em incumprimento, num horizonte de cinco anos, de Portugal, Espanha, Irlanda e Itália subiu, segundo dados da CMA DataVision.

Apelo do FMI ao BCE

Vários analistas apontaram hoje o impacto negativo de declarações da chanceler Ângela Merkel numa entrevista publicada no seu site. A líder alemã admitiu que "não estamos seguros que [o projeto europeu] funcionará, que funcione bem". Foi o suficiente para um vendaval, apesar de Merkel contextualizar que se referia ao défice de organização europeia que ainda falta e que há que resolver. Esta incerteza sobre o futuro da zona euro tem-se acentuado. As próprias medidas consideradas urgentes, e já decididas na última cimeira europeia de 28 de junho, continuam a marcar passo. Na reunião do Eurogrupo de sexta-feira próxima deverá, finalmente, aprovar-se o plano de resgate sectorial à banca espanhola, mas a renegociação do Memorando de Entendimento grego só será discutida em setembro, e o próprio Mecanismo Europeu de Estabilização (que já deveria ter entrado em vigor a 9 de julho) continua pendurado pela decisão do Tribunal Constitucional federal alemão que, também, só deverá divulgar o seu acórdão em setembro.

Todo este arrastamento já levou o FMI a apelar publicamente no relatório sobre as "Políticas da Zona Euro" para que o BCE se substitua aos políticos neste período de espera. "A política monetária pode desempenhar um papel de facilitador da transição até que as reformas estruturais se revelem operacionais. Dado que a inflação está baixa e em queda, o BCE tem espaço para reduzir taxas de juro e avançar com medidas adicionais não convencionais, o que aliviaria o stresse severo em alguns mercados", refere o FMI.

Entre as medidas adicionais, a organização chefiada por Christine Lagarde já recomendou a reativação do programa de compra de títulos soberanos no mercado secundário (conhecido pela sigla SMP), novas operações de liquidez do tipo das LTRO a 3 anos lançadas por Mário Draghi, e a "introdução de alguma forma de alívio quantitativo" (como tem sido o timbre do Banco de Inglaterra e da Reserva Federal norte-americana). A expressão em inglês quantitative easing é conhecida pelo acrónimo QE. O FMI pede ao BCE que avance com "um programa de QE transparente" comprando um portefólio representativo de títulos soberanos de longo prazo de acordo com o peso de cada país na economia da zona euro. Recomenda, ainda, que o BCE aceite um estatuto idêntico aos credores privados, abandonando o estatuto de senioridade, transformando em regra geral a "exceção" feita para o caso do resgate da banca espanhola. Diz o FMI: "Um compromisso de aceitação [por parte do BCE] de um estatuto idêntico com o sector privado, tal como no caso de Espanha, fortaleceria a eficácia da gestão de crise por parte do sector oficial".

Fim de ano de alto risco

Como há um enorme grau de incerteza sobre a implementação política na zona euro e sobre os efeitos duradouros das medidas do BCE quer no mercado secundário da dívida como nos canais de transmissão da política monetária para a economia real, o FMI apontou a zona euro como o "risco mais imediato" para a economia mundial. Uma tal classificação não é, naturalmente, nada tranquilizadora para os investidores.

O FMI quer evitar, a todo o custo, que esta nova fase da crise da dívida soberana na zona euro se agrave no último trimestre do ano quando outro risco importante poderá concretizar-se nos Estados Unidos com o "penhasco orçamental" (fiscal cliff) e o regresso da turbulência política em torno do aumento do teto de endividamento federal no quadro de uma eleição presidencial cuja votação decorrerá em novembro.

Nas previsões do FMI para a zona euro, a economia estará em recessão em 2012 (com uma quebra ligeira de 0,3%) e verá uma retoma muito modesta de 0,7% no ano seguinte. Num horizonte de médio prazo, o FMI não prevê um crescimento médio superior a 0,75%.

Apesar de todos estes alertas vermelhos, na matriz de avaliação de risco da zona euro, o FMI considera, por ora, de nível médio a probabilidade de a crise do euro se intensificar e das reformas nos países envolvidos "deslizarem". A probabilidade de uma situação deflacionária na zona euro em 2014 é apenas de 25% no conjunto da zona euro, mas significativa nas economias "periféricas".

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