quinta-feira, 19 de julho de 2012

O OLHO DO PIRATA



Rui Peralta

Muito texto é escrito sobre a “crise do capitalismo”, “os movimentos sociais”, “os protestos estudantis”, “Primaveras Árabes”. “Occupy”, o folclórico, festivo e palavroso “Fórum Social Mundial”, etc. No entanto existem algumas questões que a actual situação levanta e sobre as quais poucos têm escrito e falado. A Universidade é um desses temas.

A era keineisiana criou um tipo de politica educativa massiva, publicamente financiada, que foi colocada em duvida e inviabilizada pela dominante lógica neoliberal do actual momento. Num passado recente as universidades actuavam sem ânimo de lucro e tinham o fim de servir a sociedade, desde que isso fosse de utilidade para as classes dominantes. É ainda possível exigir o retorno ao financiamento público e aos objectivos públicos, já sem a condição prévia “imposta” pelos grupos de domínio? Será que as classes dominantes ainda têm necessidade desse modelo? E que aconteceria se os universitários e a “intelectualidade” – no sentido gramsciano do termo – resistissem á racionalidade vigente (e á anterior racionalidade keineisiana) e criassem um modelo publico alternativo? Que acontecerá com o crescimento exponencial dos “licenciados sem futuro”, os “nativos da era digital”? Qual a contribuição para um novo modelo que pode ser prestada pelas comunidades auto-organizadas de aprendizagem autónoma? Como terminar com o “negócio das universidades” e da conversão destas em centros empresariais? Em que medida esta luta contra a “privatização das universidades” implica novos modelos de produção e publicação do conhecimento e uma transformação radical das relações sociais e da praxis do trabalho académico? As respostas a estas questões implicam a transformação das prácticas e identidades profissionais académicas.

Em Março de 2011 o Institute of Contemporary Arts, de Londres, realizou uma série de conferencias sob o título “Radical Publishing: What are we strunggling for?” O tema parecia ser prometedor, no sentido de explorar algumas destas questões, mas acabou mergulhado na temática das transformações políticas do passado, do futuro, do Egipto…e falou muito pouco ou quase nada sobre o que afecta o trabalho e as prácticas dos próprios conferencistas, como por exemplo: o acto de publicar, como influenciou, influencia e influenciará as transformações na forma de produzir e reproduzir conhecimento.

O modo de produção de conhecimento e investigação permanece vinculado á ideia do autor, indivisível, individual e liberal. Esta forma, em que as ideias, as teorias e os conceitos criam-se e desenvolvem-se, em como se publicam e difundem, aplica-se de modo universal. Quer se utilize um computador, uma maquina de dactilografar, uma caneta ou uma pluma, a forma de criar, desenvolver e divulgar conhecimento é a mesma. Há que reconhecer, no entanto, que estes métodos estão a ser questionados pelos métodos digitais. Estas tornaram o conhecimento e a teoria critica, por um lado, provisórias e efémeras, por outro lado, muito mais abertas á interrupção, á interpolação e á refutação, logo, intereactivas e comunitárias. Portanto se a divulgação, a publicação do conhecimento e da teoria crítica transformou-se no sentido da maior velocidade e dos espaços mais amplos e mais distantes, também a forma como o conhecimento é concebido sofre alterações profundas no mesmo sentido. O mito do autor solitário, que nunca passou disso mesmo, de um mito, deixa de fazer sentido nas humanidades digitais, embora a componente individual seja reforçada. Só que a ideia, o conceito, torna-se discutível na sua formação, comunitariza-se na sua génese.

Nas humanidades digitais, ao nível da criação, a individualização socializa-se e democratiza-se. De forma alguma desaparecem as noções de autor, texto e originalidade. Transformam-se da mesma maneira que se transforma a comunidade interpelativa dos académicos. Isto porque existem ferramentas que permitem esta transformação, ou porque surgiram antes e permitiram pensar nela, ou porque surgiram depois e estão adaptadas á sua função transformativa. Hoje podemos criar um blog e permitir que os nossos colegas façam a revisão livre dos nossos textos. Por exemplo a WordPress, com uma aplicação desenvolvida pelo Instituto para o Futuro do Livro, a CommentPress, permite que os comentários apareçam junto ao corpo principal do texto, parágrafo a paragrafo, por página e ao documento completo. Supera-se assim o problema que existe com a maioria dos blogs, que não permitem escrever em cooperação e passar do individuo aos indivíduos. Estas ferramentas alteram, assim, o trabalho do autor e permitem uma maior abrangência a priori da teórica crítica, tornando-a pluridimensional. Ficam patentes o autor e os autores, nas mais diversas funções e papeis: o autor, o (s) autor (es) secundário (s), o revisor, o comentarista, o replicante, o leitor participante, etc., na sua singularidade e pluralidade.

A forma como a maioria dos académicos interactua com os blogs e redes sociais, continua a promover e a sustentar os conceitos de autor, tal como eles eram e são transmitidos pelos meios tradicionais de publicação e divulgação. As redes sociais digitais implicam a necessidade de apresentar-se em público, como individuo, para poder usar e unir-se á rede e nela operar. É uma varação da individualidade, a sua forma compulsiva, de que grande parte dos académicos se serve como mecanismo de promoção e autocomercializaçäo, reunindo os sues “amigos” e “círculos” onde se apresentam como “personalidades” comprometidas e carismáticas, sempre “conectadas”. Nada disto é uma transformação. Representam apenas pequenas alterações de fachada no modo de criação, de composição, de legitimação e acreditação, de publicação e difusão, mas em que mantem-se inalterável o modo de produção. O autodenominado “movimento antiglobalização” (?) criou um tipo de “activismo” muito influente, que limita esta transformação e incentiva os pedantismos intelectuais tão ao gosto do peculiar académico burguês. E um dos aspectos mais curiosos deste “activismo” é que nem sempre é de livre acesso, o que demonstra bem o camuflado comércio criado em torno da questão.

Sou um partidário do livre aceder na literatura de investigação. Há quem considere que este é um movimento, para outros constitui uma diversidade de modelos económicos e há aqueles para o qual é mais um meio de distribuição, comercialização e promoção. Não me identifico com nenhuma destas posições. A política do livre aceder não tem nada de radical, ou de emancipador, de contestatário ou de politicamente progressista. Depende das decisões que se tomam, das tácticas e das estratégias que se adoptam, das conjunturas concretas de cada momento, da situação e do contexto, das redes, relações e fluxos entre cultura, comunidade, sociedade e economia, que a fomentam e tornam possível. Publicar neste regime de livre acesso não é, de forma alguma, um acto de resistência, nem á esquerda, nem á direita. O que para mim é interessante neste sistema é o modo como cria aberturas que permitem aos universitários desestabilizar e repensar a publicação académica e com ela a universidade. Pode-se mesmo afirmar que possui mais potencial para fazê-lo que alguns “movimentos” políticos mais “subversivos”.

O livre acesso é uma questão que estabelece cadeias de equivalência, aglutinando universitários, pessoas vinculadas ao software livre, movimentos de cultura livre, estudantes, antigos estudantes, estudantes-trabalhadores, etc. Vou um pouco mais longe e encontro nele pistas para o que Derrida chamava a “universidade incondicional”, apesar de todos os condicionalismos que já referi. E como? Levá-lo aos limites do conceito, ao ponto de ruptura, para ir mais além do livre acesso e questionar as ortodoxias que afectam a restrição do acesso ao conhecimento, á investigação e ao pensamento, às “humanidades e ao cerne do modo de produção, precisamente á autoria e propriedade intelectual. Se de facto desejamos lutar contra o negócio em que se converteram as universidades, então temos de aceitar que isso vai implicar uma luta contra o sistema de propriedade intelectual, pois esse é um dos mecanismos principais da mercantilização e privatização do conhecimento.

Os defensores do copyright assentam o seu conceito em duas justificações associadas aos direitos económicos e vinculadas aos direitos de autor e aos direitos morais. Na tradição anglo-americana do copyright o enfase recai sobre a protecçäo dos interesses comerciais do autor, produtor ou distribuidor de uma obra e o seu direito a explorá-la economicamente realizando e vendendo cópias. Assim é também com as empresas editoriais académicas. Os livros que lançam são mercadorias, cujos direitos de exploração comercial são-lhes cedidos. São poucos os autores académicos de monografias de investigação que obtêm rendimentos substanciais directamente proporcionados pelos seus escritos. A grande maioria cede os seus direitos comerciais a troco de ver os seus escritos editados, publicados, distribuídos, comercializados, porque com um pouco de sorte e alguma promoção poderão ser lidos e assumidos por outros. Desta forma asseguram, pelo menos, aumento do prestígio e nível de influência, ao mesmo tempo que obtêm maiores oportunidades na carreira, incrementos salariais, posições de chefia, etc.

A consequência disto é que acabam por ser os editores os que maior risco económico correm com a infracçäo do copyright. O facto de muitas destas editoras estarem em situação económica precária, se compararmos com as suas concorrentes que são propriedade dos conglomerados transnacionais, faz com que muitos autores universitários os apoiem, principalmente às editoras independentes. Estas para poderem permanecer no mercado dependem das receitas geradas pelas vendas de livros dos que têm os direitos. É uma bola de neve que arrasta o moribundo para a morgue.

O sistema de copyright é um dos principais mecanismos com que se privatizam e mercantilizam o conhecimento, a investigação e o pensamento. Não faz qualquer sentido defender o copyright para as pequenas editoras e combater as grandes. As pequenas editoras fazem parte da cadeia, assim como os autores. Se estamos interessados e empenhados em ensaiar sistemas diferentes do actual, capitalista (e não apenas do neoliberalismo), ninguém deve ficar surpreendido por essas estruturas serem, também elas, desmanteladas.

No que respeita aos direitos morais, a justificação do copyright tem o seu fundamento no facto de ser considerado um direito inalienável do autor, do seu trabalho. Este direito – que em muitos contextos nacionais é fundador da cultura da europeia ocidental e mantem uma relação suplementar, secundária, mesmo marginal, com os direitos económicos – aplica-se á obra considerada como uma expressão da mentalidade / personalidade singular do autor. Contráriamente aos direitos económicos, os direitos morais do autor são irrenunciáveis, intransferíveis a outra entidade como o editor, por exemplo. Alguns, assustados com o desenrolar e a radicalização – no ir á raiz – desta ideia de livre conhecimento para todos, falam na “morte do autor” e tentam desesperadamente agarrar-se a uma terceira via, entre o livre conhecimento e a expansão da indústria globalizada do copyright neoliberal, esquecendo-se que os primeiros a cair são os que se sentam no muro (morrem devido ao fogo cruzado).

No fundo a pergunta que deve ser formulada é: até que ponto actuar de acordo com os direitos morais de atribuição, integridade e revelação, leva os filósofos e teóricos críticos a actuar como se fossem um reflexo perdido no tempo (e dai o que detestam no capitalismo, que para obter baixos custos e para vender a todos torna-se nivelador) do génio criador individual, tal como na tradição cultural do romantismo, quando a indagação crítica das humanidades abarcou os conceitos de sujeito, de ser humano e de autor. É precisamente esta crença romântica que sustenta a ideia de que a obra é uma expressão original da personalidade ou consciência singular do autor e sobre a qual baseiam-se os direitos morais do mesmo. Com isto não pressuponho que defendo o desaparecimento do conceito de autor. Nada disso. O que defendo é a alteração do modo de produção e como tal do papel e função do autor. Passemos a um pouco de História.

O primeiro relato existente sobre os direitos de cópia de uma obra, remonta ao seculo VI, na Irlanda. O monge Columbkille realizou, às escondidas, uma cópia de um dos livros da biblioteca do abade Finnian. Este, quando tomou conhecimento, reclamou a posse da cópia e Diarmait, rei da Irlanda, concedeu-lhe razão. Conta-se que Columbkille, cujo clã tinha dominado a Irlanda, provocou uma sublevação no Ulster contra o rei Diarmait para conseguir o livro. A sublevação terminou na batalha de Cul Dreimhne, no ano de 561, com mais de 3 mil mortos e com o exilio do monge Columbkille na Escócia. O livro em questão é o Cathach, actualmente em exposição no Museu Nacional em Dublin.

Independentemente da veracidade deste relato, nele podemos compreender o direito de cópia na Idade Media. O direito de cópia era ostentado pelo possuidor do livro, não pelo copista nem pelo autor. Na realidade a cópia de livros era rara naquela época, devido á escassez de papiro e pergaminho. Foi a aparição do papel (consequência dos desperdícios do algodão utilizado na recém-criada industria têxtil no final da Idade Média) e mais tarde a invenção de Gutenberg (no Renascimento) que possibilitaram a industrialização da cópia de livros. Quando isso aconteceu surgiram os privilégios que outorgavam o exclusivo da publicação ao impressor, não ao autor, durante um período limitado, até que em inícios do seculo XVIII surgem estatutos que concedem o exclusivo ao autor, durante limitados períodos de tempo, mas prorrogáveis. Desde então as sucessivas leis sobre direitos de autor, em todo o mundo, ampliaram o período de vigência gerando: Restrição á consulta pública do conhecimento, limitando-o aos que tinham dinheiro para pagar; Restrições a obras que não são rentáveis, exactamente porque não o são e porque os direitos de autor continuam vigentes embora não sejam exercidos; A práctica de espólio encoberto ao domínio público, publicando versões – e como tal com direitos vigentes – de obras antigas, em vez de manter as originais que já deveriam estar gratuitamente disponíveis e serem de domínio publico; A privatização das obras e a criminalização de toda a pessoa ou instituição que publique ou divulgue conteúdos das obras.

Tornam-se necessárias novas formas de cultura, de economia e de educação, ou seja, um novo modo de produção, onde o trabalho seja abolido, onde a criatividade seja a norma, a proteção do copyright não seja possível, as instituições da industria cultural – editoras, periódicos, etc. – sejam radicalmente remodeladas, em acordo com as possibilidades tecnológicas e não utilizando-as para manutenção do cadáver em que essas instituições tornaram-se, onde o conhecimento possa ser livremente compartido, onde as comunidades possam difundir monografias académicas através de redes de iguais e de plataformas para compartir textos e onde a figura do autor individualista, humanista e proprietário seja transformada, garantindo o individuo e a humanidade mas anulando a apropriação.

Um novo tipo de universidade, geradora e receptora de conhecimento, uma nova economia e um novo modo de organização da sociedade, industrial e pós-industrial. Grande parte do “corpo académico” vai sentir que um processo desta natureza é um ataque, não apenas ao copyright e á comercialização da universidade, como á sua própria identidade profissional e ao seu papel social. E os seus temores estão justificados, quer a via seja esta, quer continuem nos parâmetros actuais. A diferença é que num lado está um processo de ruptura que os irá conduzir a um novo posicionamento e ao usufruto por todos das suas competência e conhecimentos. No outro está a proletarização inevitável, transformando-se as suas “ilustres carreiras” em funcionários assalariados de baixo custo. A escolha é de cada um.

Fontes
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