domingo, 12 de agosto de 2012

A ESCOLA EM MARCHA-ATRÁS




Carvalho da Silva – Jornal de Notícias, opinião

Nestes tempos conturbados que estamos vivendo, tempos de imensa malvadez à solta e de tantas carências para o povo, o reformismo retrógrado que Nuno Crato e o Governo estão a tentar impor aos objetivos, papéis e funcionamento da Escola é um desastre.

As medidas adotadas pelo Governo têm três objetivos: primeiro, a redução cega de custos, obtida a partir do despedimento obsessivo de professores e de outros profissionais do sistema, da concentração de alunos em agrupamentos de dimensão cada vez maior, da transferência de encargos da responsabilidade do Estado para as famílias; segundo, obter dados estatísticos favoráveis às políticas do Governo, através da desvalorização e menorização de aprendizagens - desde as atividades físicas e desportivas às artes, à cultura e à formação para a cidadania - invocando a necessidade de priorizar "saberes essenciais" e "disciplinas fundamentais", de adaptar a Escola às "condições da sociedade", às "exigências do trabalho" ou do "mercado"; terceiro, colocar a Escola totalmente integrada e ao serviço das ideologias neoliberais e retrógradas que sempre se hão de opor à equidade e a direitos universais e solidários garantidos a todos os seres humanos.

O Governo PSD/PP está a retroceder para conceções e práticas anteriores ao "marcelismo". Um dos exemplos concretos que confirmam tal retrocesso civilizacional, até há pouco tempo absolutamente impensável, é o dualismo de aprendizagens introduzido na regulamentação da escolaridade obrigatória até aos 18 anos, desde logo, a possibilidade de se adotarem percursos diferenciados para as nossas crianças logo após o 1.oº ciclo do Ensino Básico, ou após 6 anos de escolaridade.

É inadmissível que o tronco comum do sistema de ensino seja apenas de 4 ou 6 anos, e já com esse período cheio de truques discriminatórios.

Quando em 1959 (com 10 anos) terminei a 4.ª classe, já tinha observado como eram tratados os alunos "burros" que, em regra, eram pobres e filhos de pais sem qualquer escolaridade. Depois de passar um ano no duro trabalho agrícola, o meu pai lá me deixou fazer exame de admissão à Escola Industrial. O acesso ao liceu era um luxo impensável para o meu estrato social.

Devo referir que muitos dos que em pequeninos foram carimbados de "burros" demonstraram durante a sua vida ser tão inteligentes como os "melhores" alunos do seu tempo.

O acesso à Escola Industrial significava, sem dúvida, um privilégio para mim e para mais uma meia dúzia de companheiros(as), perante as condições da esmagadora maioria das crianças que começava a trabalhar logo no fim da 4.ª classe, ou mesmo antes se entretanto tivessem reprovado.

Enquanto estudante constatei a distinção clara entre alunos da "Escola" e alunos do "liceu" e senti o que significavam essas duas vias praticamente estanques.

Hoje tenho uma filha criança que vai iniciar o 4.oº ano de escolaridade, frequentando a Escola Pública. Observo que se evoluiu muito desde o meu tempo de criança ou desde que os outros meus filhos, hoje acima dos 30 anos, frequentaram aquele nível de ensino. Mas as situações de dificuldades e carências com que bastantes crianças se deparam continuam a ser relatados pela minha filha e não só.

Este retrocesso, as dificuldades do sistema de ensino face às incertezas do futuro que constato p.e. quando participo no Conselho Consultivo (de que sou membro) do Instituto da Educação e Psicologia da Universidade do Minho, os bloqueios de vida com que se deparam tantos jovens que se empenharam no Ensino Secundário ou Universitário perante um atrofiado modelo de desenvolvimento do país, os dramas de alunos de licenciatura, de mestrado e de doutoramento que me abordam como a outros professores, a ver se os ajudamos a encontrar meios para pagarem propinas, são problemas sérios que precisam da mobilização das sociedade portuguesa.

Qualquer cidadão com formação democrática, dos mais diversos quadrantes ideológicos, sabe que o futuro de um país retrocederá inexoravelmente se a sua Escola entrar em processo de marcha-atrás.

Há pois que dar combate a estes caminhos tortuosos.

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