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Opinião é de Andrea
Riccardi, fundador da organização católica Comunidade de Santo Egídio e um dos
mediadores do Acordo Geral de Paz de 1992. Riccardi falou com exclusividade à
DW: "Não existem ameaças como no passado".
No próximo dia 4 de
outubro, feriado nacional em Moçambique, serão comemorados os 20 anos da
assinatura do Acordo de Paz entre os antigos rebeldes da RENAMO e o governo da
FRELIMO, que se opuseram numa guerra civil que durou 16 anos.
Revendo o Boletim
oficial da República de Moçambique publicado no dia 14 de outubro de 1992 -
documento que oficializou a paz no país - o hoje ministro italiano da
Cooperação Internacional, professor Andrea Riccardi, que junto com a equipe de
mediadores da Comunidade de Santo Egídio ajudou a criar o Acordo Geral de Paz
de Moçambique 20 anos atrás, conta que jamais deixou de acreditar que o fim do
conflito civil fosse possível: "Eu sempre acreditei. Penso que, junto com
Dom Matteo Zuppi, fomos os arquitetos da aproximação entre as partes que não se
falavam", disse o fundador da Santo Egídio, em entrevista exclusiva à DW
África.
De um lado, estava
o governo da Frente de Libertação de Moçambique, FRELIMO, do então presidente
Joaquim Alberto Chissano. De outro, a Resistência Nacional Moçambicana, RENAMO,
de Afonso Dhlakama.
O ex-mediador
Andrea Riccardi levanta hipóteses sobre o que poderiam ter pensado ambas as
partes antes da primeira ronda de negociações: "Grande era o risco de que
um [FRELIMO] dissesse ao outro: 'Senhores bandidos armados' e os outros
[RENAMO] dissessem: 'governo ilegítimo'".
Na época das
negociações de paz, que duraram cerca de dois anos, um personagem fundamental
conseguiu superar a resistência de aproximação da RENAMO: Dom Jaime Gonçalves,
Bispo da Beira, como lembra Riccardi: "Foi um discurso importante para
explicar à RENAMO que eles não tinham outra saída a não ser negociar. Depois,
houve também um amadurecimento por parte do governo de Chissano", disse o
atual ministro italiano da Cooperação Internacional.
Diplomacia italiana
Uma decisão chave
dos mediadores da Santo Egídio, uma comunidade de leigos católicos com sede na
Itália, que durante dois anos e três meses negociou a paz em Moçambique, foi
envolver a diplomacia italiana. "Solicitamos ao governo italiano – que na
época tinha um grande prestígio em Moçambique – a nomear um representante, que
foi Mario Raffaelli".
Mas se a comunidade
internacional já começava a olhar com atenção as tentativas para terminar a
guerra civil, que desde 1976 tinha devastado o país, internamente Moçambique
tinha alguns conflitos que impediam o país avançar à tão sonhada estabilidade. "As
relações entre o governo moçambicano e a Igreja Católica eram péssimas e só
melhoraram quando eu, junto com a Comunidade de Santo Egídio, tomei a decisão
de promover um encontro entre Dom [Jaime] Gonçalves e o secretário do Partido
Comunista Italiano, Enrico Berlinguer, que interveio pessoalmente junto à
FRELIMO para que esta promovesse uma mudança na sua política religiosa",
explicou Riccardi à DW África.
Apesar de todos os
esforços, em Moçambique quase ninguém acreditava que uma organização não
governamental internacional pudesse ajudar a estabelecer os rumos de um futuro
sem guerra.
"Foi a
necessidade das duas partes, do governo e da RENAMO, que levou a Comunidade de
Santo Egídio a desempenhar este papel para criar um acordo. A opinião pública
ironizou, exerciam pressões. Mas, depois de longas tentativas, longos silêncios
e dificuldades chegamos a um acordo", relata Andrea Riccardi.
Porém, segundo ele,
"as duas partes deveriam, ainda, amadurecer. Em particular a RENAMO, que
deveria passar da luta armada à luta política. Havia um grande salto a ser
feito".
Perguntado se,
passados 20 anos do Acordo Geral de Paz de Moçambique, Andrea Riccardi mudaria
alguma coisa em Moçambique, o professor respondeu: "Acredito que um dos
grandes problemas seja que a RENAMO deveria se transformar em [verdadeiro]
partido de oposição para um [efetivo] funcionamento bipartidário da democracia
em Moçambique. Entretanto, acredito que todos tenham respeitado os acordos: o
governo e a RENAMO que jamais voltou às armas".
Ainda olhando para
o futuro, Riccardi fez uma crítica construtiva de quem ajudou a levar a paz a
Moçambique: "Acredito que a democracia em Moçambique deva crescer. Mas não
existem ameaças no sentido daquilo que houve no passado. Contudo, quando eu
estive no Parlamento, em Maputo, e vi os guerrilheiros sentados nas cadeiras da
oposição, não posso esconder que aquilo me comoveu".
Crimes a punir?
Evocando os
protocolos do Acordo Geral de Paz de 1992, Riccardi respondeu à questão sobre
se os crimes da guerra civil deveriam ou não ser investigados e tornados
públicos numa Comissão da Verdade e Acolhimento.
"Moçambique
fez outra escolha: a anistia. Esta foi a escolha de Moçambique porque os crimes
e as violências foram praticados por ambos os lados. Temos que esperar os
moçambicanos do futuro", avalia.
Interesses
económicos
Para este futuro,
Riccardi acha que a democracia em Moçambique ainda precisa crescer, mas que
"um grande bem estar está a aproximar-se. A presença da empresa
petrolífera italiana [ENI, que estuda descobertas de gás natural na bacia do Rovuma,
em Cabo Delgado, no nordeste do país] é algo a ser considerado. Há um grande
crescimento de interesses económicos e a sociedade deve harmonizar-se com
isso".
Interrogado sobre
se esta é uma visão do ministro italiano da Cooperação Internacional, Riccardi
disse não saber: "É uma visão de um grande amigo de Moçambique, que
conheceu o país quando a fome o assolava, quando no mercado central de Maputo
tinha somente peixe seco. Hoje, em vinte anos, a história realmente
mudou", acredita.
Por outro lado,
segundo Riccardi, "existe muita pobreza em Moçambique. Existe um problema
de distribuição do bem-estar, mas para criar algo diferente é preciso que uma
nova sociedade crie raízes".
Autor: Rafael
Belincanta (Roma) - Edição: Renate Krieger/António Rocha
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