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Desinformação e
reassentamento em locais piores são apenas alguns dos problemas apontados por
especialistas. Segundo relatora da ONU para moradia adequada, pequenos avanços
foram alcançados graças à mobilização popular.
Falta de
transparência, indenizações insuficientes, reassentamentos inadequados: é assim
que especialistas descrevem o processo de remoção de famílias para obras da
Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Brasil. Segundo estimativa
dos Comitês Populares da Copa, cerca de 170 mil pessoas serão desalojadas para
a realização de grandes projetos urbanos no contexto dos megaeventos
esportivos.
Formados por
movimentos sociais organizados, universidades e entidades da sociedade civil
nas cidades-sede dos jogos, os Comitês Populares da Copa reuniram grande número
de dados com o objetivo de denunciar abusos. A segunda e última edição do
dossiê Megaeventos e violações de direitos humanos no Brasil, publicada em
junho deste ano, afirma que "o direito à moradia vem sendo
sistematicamente violado".
"A insegurança
e o temor são o lote comum das populações ameaçadas, em virtude da falta de
informação, difusão de informações falsas e contraditórias, ameaças,
propagandas enganosas, boatos vindos do próprio governo e da mídia", diz o
documento.
De acordo com
Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a
Moradia Adequada e urbanista da Universidade de São Paulo (USP), a primeira
violação está no direito à informação. Além da falta de comunicação com as
comunidades, os comitês também têm dificuldade no acesso à informação.
As indenizações e
realojamentos propostos também podem ser vistos como violações. "O
reassentamento em locais com menor disponibilidade de serviços e emprego viola
o direito de moradia adequada, que inclui o acesso aos demais direitos humanos
– educação, saúde, trabalho", diz Rolnik.
Além disso é
frequente a falta de reconhecimento ao direito de posse, assegurado pela
legislação brasileira e por acordos internacionais firmados pelo Brasil,
denuncia o dossiê dos Comitês Populares. "Considera-se que é melhor
implementar um projeto de infraestrutura sobre assentamentos informais porque
sai mais barato, não tem que pagar indenização, algo completamente equivocado
do ponto de vista dos direitos humanos e da legislação brasileira",
critica a urbanista.
Rolnik afirma que o
padrão geral de intervenção não mudou mesmo após a Relatoria da ONU divulgar um
boletim alertando para casos de violação de direitos humanos na remoção de
comunidades em função dos megaeventos esportivos no Brasil, em abril deste ano.
"Não houve,
por parte das autoridades, iniciativas para estabelecer um padrão nacional. As
remoções dependem das municipalidades e, em alguns casos, dos governos
estaduais." De acordo com a urbanista, houve apenas alguns avanços
específicos nas 12 cidades que sediarão os jogos, principalmente graças à
mobilização popular e ao trabalho dos comitês.
O caso da Vila
Autódromo
Uma das lutas mais
significativas é o da Vila Autódromo, no Rio de Janeiro. De acordo com o dossiê
dos Comitês Populares, a ameaça de remoção chegou à comunidade através do
jornal O Globo. A reportagem A bola da vez: Vila Autódromo, de outubro de 2011,
anunciava o desalojamento de cerca de 500 famílias para dar lugar ao Parque
Olímpico.
"A vila não
está no local de nenhuma obra prevista, só está estragando a paisagem da frente
de expansão imobiliária que está se estruturando em torno do Parque",
critica Rolnik. Com o apoio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
da Universidade Federal Fluminense, a Vila Autódromo elaborou um projeto
alternativo para o local, que evita a remoção. A proposta de urbanização
aguarda agora aprovação da prefeitura.
Para Christopher
Gaffney, geógrafo norte-americano e professor visitante da UFF, a projeção de
uma imagem positiva está fortemente ligada às obras dos megaeventos. Porém, da
maneira como age, o poder público acaba muitas vezes transmitindo o inverso do
desejado. "No caso da Vila Autódromo, por exemplo, a imagem mais bonita
que poderia ser passada para a comunidade internacional é a da urbanização",
considera o geógrafo, que pesquisa os impactos dos megaeventos esportivos no
Brasil desde 2009.
Algo parecido
acontece com a Aldeia Maracanã, comunidade indígena que, desde 2006, ocupa o
espaço de um antigo museu do índio ao lado do estádio do Maracanã e que está
ameaçada de remoção. "A imagem mais bonita que poderia ser passada é da
articulação com os índios e restauração do museu", diz Gaffney. "Em
vez de melhorar, querem esconder a realidade."
Mobilização e
resistência
No Rio de Janeiro,
desde as primeiras remoções, em 2010, houve avanço no relacionamento da
prefeitura com as comunidades atingidas graças à pressão popular, afirma
Rolnik. "Há casos documentados em vídeo de casas derrubadas com as coisas
das pessoas dentro, sem ter sido equacionado o destino delas", lamenta.
Cenas de demolições
e protestos reprimidos pelo batalhão de choque da polícia e depoimentos de
moradores foram registradas no documentário A Caminho da Copa, por exemplo. Uma
versão curta do filme, produzido pelo Instituto Polis e em fase de finalização,
está disponível na internet.
Os casos cariocas
atraem atenção especial porque, além da Copa, a cidade sediará as Olimpíadas.
Mas a violação dos direitos humanos em remoções está presente nas demais cidades-sede
da Copa. O dossiê dos Comitês Populares cita casos em Curitiba, Belo Horizonte,
Porto Alegre, Recife, Manaus, São Paulo e Fortaleza.
Na capital
cearense, por exemplo, as obras da Via Expressa atingirão 3.500 casas, segundo
o dossiê. "As famílias não foram consultadas. Por meio de uma mobilização,
conseguiram suspender as obras até a apresentação de um projeto alternativo,
que atenda ao direito à moradia", diz o documento.
Fortaleza também
foi uma das cidades visitadas pela relatora da ONU, que cita o caso da
comunidade Aldaci Barbosa, onde inicialmente havia sido planejada a remoção
total. "Em função da pressão dos moradores e do Comitê Popular, serão
removidos de 15 a 20 domicílios em vez dos mais de 300 previstos no
início", relata Rolnik.
Necessidades
inventadas
As remoções ligadas
aos jogos estão associadas às obras de infraestrutura urbana, cujos benefícios
para a população são questionáveis. "Há obras que vão atender apenas às
necessidades dos jogos. Outras também vão melhorar a mobilidade, mas entre
todas as demandas de transporte coletivo, seriam essas as linhas
prioritárias?", questiona Rolnik. Para Gaffney, as linhas BRT (Bus Rapid
Transit), projetadas principalmente para facilitar o transporte durante os
jogos, não são de primeira necessidade.
"Qualquer
intervenção urbana que atenda às 'demandas' da Copa e das Olimpíadas é uma
invenção", critica o geógrafo. "Cuiabá, por exemplo, sediará quatro
jogos, e a cidade inteira está sendo reconstruída."
"Muitas vezes
os projetos contrariam planos urbanísticos anteriores. É uma coisa inventada
que se sobrepõe ao planejamento das cidades, porque em nome dos megaeventos
vale tudo", completa Rolnik. A urbanista e Gaffney chamam a manobra de
estratégia de marketing.
Gaffney reitera que
qualquer grande obra urbana implica remoções, o problema é a maneira como elas
são feitas. Na medida em que os eventos megaesportivos migram dos países
desenvolvidos para os emergentes, maior é a quantidade de moradores de
assentamentos informais atingidos. "A experiência dos Jogos Olímpicos de
Pequim e da Copa do Mundo da África do Sul mostraram isso", diz Rolnik.
Em 2010, a
Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada apresentou um
relatório sobre violações em megaeventos esportivos que resultou numa resolução
do Conselho de Direitos Humanos exigindo o respeito a tal direito na preparação
para os eventos.
Para Rolnik, com
obras em andamento, ainda dá tempo de o Brasil mudar o padrão das remoções,
adequando-se não somente às normas internacionais. "O país tem que respeitar
a ordem jurídica nacional, que prevê a proteção à moradia e parece estar sendo
rasgada neste momento."
Autora: Luisa Frey
- Revisão: Francis França
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