quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Portugal: A GRANDE MISTIFICAÇÃO

 


Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião
 
A gelada placidez com que o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, apresentou as suas novas medidas de austeridade, que fizeram estremecer todos os portugueses, surpreendeu muita gente. Mas não devia: mais do que, como alguns disseram, a outra face de um escondido cinismo, ou de uma lamentável impreparação, ela é na verdade a pura expressão de um conjunto de convicções nucleares, tão erradas como dogmáticas, que dominam hoje boa parte da política, da economia e dos "media".
 
A questão é de fundo, não é de forma. Trata-se da placidez de quem vive numa campânula, isolado do mundo, e age com base em alguns dogmas, imune à realidade. O problema é, de resto, muito geral, ele apenas toma entre nós uma forma mais aguda, dadas as circunstâncias do momento.
 
A placidez do primeiro-ministro, a campânula em que vive e os dogmas que o inspiram, tudo isto decorre de uma teoria que data já dos anos 70 do século passado, que é a teoria da eficiência dos mercados: ela postula o dogma que só os mercados contam, tudo o mais é irrelevante. E que eles se autorregulam automaticamente, dispensando qualquer intervenção do Estado, que só vem sempre, claro, complicar.
 
Esta teoria foi o passo decisivo na divinização dos mercados que se disseminou por todo o mundo contemporâneo como um vírus incontornável de uma nova servidão voluntária. Sobretudo quando se passou a aplicar a mesma cegueira também aos mercados financeiros, num movimento de intensidade tal que, apesar de se reconhecer a sua "exuberância irracional" - as palavras foram de Alan Greenspan -, foi muito aplaudido nos anos 90 e no começo do século XXI.
 
Não se prestou então a devida atenção a muitos fatores, e nomeadamente ao facto, simples mas determinante, de a finança não ter propriamente por objeto a relação dos indivíduos com as mercadorias, mas antes a relação dos indivíduos com o tempo, no preciso sentido em que um título financeiro é um direito sobre rendimentos futuros, por natureza bem incertos... Pelo contrário, pretendeu-se com a teoria da eficiência financeira justificar a própria "financeirização" da economia, o que se fez com os resul- tados que hoje todos conhecemos.
 
O que é absolutamente extraordinário - e exige hoje um novo tipo de lucidez política, que terá de se distanciar tanto da histérica apologia como da cega diabolização dos mercados -, é que esta grande mistificação, que tem sido sistematicamente desmentida pelos factos desde a eclosão da crise dos subprime, em 2007, continua a dominar imperialmente a economia, a pretender impor-se a todos os sectores (saúde, educação, televisão, segurança, etc.) e a condicionar completamente o discurso político-mediático, essa miscelânea ininteligível que cada vez mais parece uma conversa de papagaios amestrados em economês/financês.
 
Em rigor, a situação só é comparável com a do fanatismo religioso mais ortodoxo, em que é a própria implausibilidade dos dogmas que reforça a cegueira dos seus crentes. Assim se tem atribuído à economia um estatuto à parte, que a protege do confronto com a realidade e com os seus desmentidos. Estatuto que ninguém imagina que noutros saberes - pense-se, por exemplo, na medicina ou na aeronáutica - pudesse ser tolerado um minuto que fosse...
 
Repetidamente incapaz de qualquer previsão segura e útil, alimentada por cálculos matemáticos falaciosamente usados e manipulados (veja-se, a propósito, o esclarecedor livro O Vírus B - A Crise Financeira e as Matemáticas, de C. Walter e M. Pracontal), apoiando-se em conivências e cumplicidades de todo o género, nomeadamente na universidade e na política, esta economia revela-se uma disciplina de natureza astrológica, que - como ouvimos terça-feira nas redondas e intermináveis declarações do ministro das Finanças, Vítor Gaspar - tudo justifica sem na verdade nada explicar.
 
E foi a esta economia que se entregou o projeto europeu, como se todas as outras dimensões fundamentais - sociais, culturais, etc. - daí decorressem naturalmente. Viu-se! E o problema é que, também aqui, se persiste no erro, como ainda agora ocorreu com a generalidade dos dirigentes políticos, a demitirem-se das suas responsabilidades e a pendurarem- -se nas decisões do BCE, numa nova "fuga para a frente" cheia de armadilhas, como rapidamente iremos verificar.
 
O economês/financês tornou-se a mais resistente forma de ignorância contemporânea sobre as pessoas, a sociedade e o mundo. Devia, por isso, era ser estudado pela "agnotologia", essa recente disciplina criada por Robert N. Proctor, da Universidade de Stanford, para estudar a ignorância, entendida esta não como algo destinado a ser superado, mas como algo de intencionalmente fabricado, produzido com a devotada colaboração de diversas formas de informação e de conhecimento.
 
É por isso urgente questionar seriamente, e em todas as dimensões, esta disciplina e os seus dogmas, com o objetivo de quebrar a arrogante ortodoxia que a estrutura, e de introduzir um verdadeiro pluralismo no seu interior, nas suas abordagens e nas suas propostas.
 
E não haja ilusões: tudo o que se possa procurar como alternativa política à situação atual, seja em termos de análise e de ideias seja de linguagem e de propostas, passa necessariamente por aqui. Só assim se conseguirá sair da campânula que já asfixia o País.
 
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