Baptista-Bastos –
Diário de Notícias, opinião
Maria do Céu
Guerra, a grande actriz Maria do Céu Guerra, uma das duas ou três nossas
maiores, esteve, na segunda-feira, no programa da SIC Querida Júlia com mais
três convidados.
Depuseram acerca do
triste tempo português, onde o infortúnio cauteriza feridas e os desgostos
sobrepõem-se aos desgostos. O programa de Júlia Pinheiro, sobre ser de
entretenimento, não sustenta, apenas, uma futilidade imbecil. Ali se fala de
crime sem castigo, das dores do viver português, e, até, numa rubrica de
economia, comentada por uma mulher jovem, indignada e fervorosa, das mentiras e
fraudes dos diversos poderes. Esses "espaços" colocam em evidência um
certo modo de interrogação do presente, habitado pela suspeita, pela dúvida e
pelo desespero.
Ao usar da palavra,
Céu Guerra, sob a clara definição de uma figura unívoca, disse, da
"dívida", ser uma "dívida infame", da qual não somos
responsáveis. Explicou que a contraconduta em que sobrevivemos é-nos aplicada
como um castigo insuportável, por uma gente que está "do outro lado";
quer dizer: uma gente inacabada e irresolvida. Céu Guerra não cultiva a
neutralidade de espírito, e o fervor com que diz o que tem a dizer empolga-nos
e avisa-nos de que está "do nosso lado." Sempre esteve.
Os efeitos do
domínio que "eles" exercem em nós, e do medo inculcado, levaram a
actriz a afirmar que esta autoridade arbitrária acentuou nos portugueses a
chaga da culpa. Somos "culpados" de querer ser felizes, de ambicionar
viver melhor, de existir com dignidade e decência, de ter possibilidades de
escolhas afirmativas. Esta nossa educação para o remorso é um dos graus da
servidão exercida pelos dominantes e associa-se ao conceito religioso do
pecado, que nos persegue e manieta.
Foi um momento de
luz oferecido por uma mulher intrinsecamente ligada ao nosso tempo. A recusa da
obediência pertence ao próprio desejo de liberdade que o homem acalenta. Há
anos, em Santiago de Compostela, assisti, num teatro apinhado, a uma plateia
que, de pé, e durante muitos minutos, aplaudiu a figura franzina da portuguesa,
terminada a interpretação genial de uma peça cerzida por Hélder Costa de textos
de Gil Vicente. Nessa mesma noite, durante uma homenagem a Manuel Maria, na
presença, entre outros, de Mendez-Ferrín, o poderoso autor de Bretanha
Esmeraldina, Céu Guerra recitou o poema dedicado a Camões por Sophia.
"Vais ao Paço pedir a tença/ E pedem-te paciência [...] Este país te mata
lentamente." Inesquecível.
Ao vê-la e ao
ouvi-la, como tantas e tantas vezes a vi e ouvi em palco e nos grupos das
afinidades electivas, dando asas à esperança sequestrada, ora uma face sombria
ora iluminada, ora terna ora colérica, recordei tudo isto, para vos lembrar de
que a força da razão impõe-se sempre à brutalidade do capricho e às veleidades
da prepotência.
1 comentário:
OPORTUNIDADE CONTRA A CRISE DE IDENTIDADE!
Portugal tem agora uma oportunidade em termos que antes foi muito difícil de alcançar: a oportunidade de se começar a libertar dos complexos que têm na Santa Inquidição a sua origem!
Martinho Júnior.
Luanda.
Enviar um comentário