quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Portugal: UMA NAVE DE LOUCOS

 


Manuel Maria Carrilho – Diário de notícias, opinião
 
Basta um grama de lucidez para se perceber que viajamos numa nave de loucos em que o espetáculo de demências diversas se impôs como matriz de um quotidiano de que vai desaparecendo qualquer sentido. Mas esse grama é precioso para podermos avaliar a dimensão dos fracassos que se pretendem maquilhar ou ocultar: o fracasso do Governo, o fracasso do memorando e o fracasso da União Europeia.
 
São, reconheçamos, fiascos a mais. Comecemos pelo do Governo, que é talvez o mais óbvio, ainda que possa não ser o mais importante. O susto e a herança tinham concedido ao Governo PSD/PP não propriamente um estado de graça, mas um parêntesis de benevolente confiança, que durante um ano o protegeram das consequências de todos os erros de conceção e de organização, de todas as insipiências e incompetências políticas, de todas as falhas e incapacidades no plano da ação e da concretização.
 
Tudo foi relativizado e desvalorizado com o argumento da urgência e das dificuldades do combate ao monstro do défice, erigido em meta central, quando não única, da ação do Governo. E foi aqui que, para muitos, subitamente, no verão passado, se percebeu que o Governo estava a falhar estrondosamente. Foi este o acontecimento da rentrée deste ano, que Passos Coelho geriu de um modo insólito e calamitoso com o discurso da TSU de 7 de setembro, atirando o País para um pathos de indignação sem saída nem esperança. E, desde então, às evidências do fracasso juntou-se uma espiral de desorientação, a revelar uma perigosíssima convergência de incompetência, de descoordenação e de dogmatismo.
 
Em vez de se corrigirem com abertura de espírito as estratégias que não resultaram, em vez de se repensarem com prudência as medidas que conduziram a resultados tão distantes do prometido, o que se fez foi deduzir do seu fracasso a sua virtude e a sua inalterabilidade. Pior: apostou-se, como a proposta de Orçamento para 2013 inequivocamente o prova, numa reincidência agravada do que anteriormente se fez, num exercício de fanatismo de que a história já mostrou muitas vezes as funestas consequências. Creio porque é absurdo, credo quia absurdum, como dizia Tertuliano - eis a máxima da nave de loucos em que o Governo se tornou, e está a tornar o País.
 
Tudo isto vem, contudo, na linha de um outro fracasso de que se fala menos, mas que era bem óbvio desde o princípio: o do famoso memorando, que na altura designei como milagreiro, tais foram as fantásticas qualidades e virtualidades que quase toda a gente lhe atribuiu. É que o memorando nunca foi a estratégia de que o País precisava, mas tão-só o pacote de cortes e o plano de garantia que viabilizava o empréstimo externo, feito nas condições limite a que o País chegou então e de que todos nos devemos lembrar ainda - o que é algo muito, muito diferente. O que então faltava ao País não era mais do mesmo, como o infeliz "além do memorando" de Passos Coelho imprudentemente assumiu. O que faltava era o outro lado desse plano, e foi isso, a visão política complementar desse esforço que tragicamente faltou desde o início, reduzindo tudo à natural cegueira de contabilistas em desespero de liquidez.
 
O terceiro fracasso é o da União Europeia. E aqui, o que é preciso dizer com clareza é que a União Europeia falhou a sua aposta da moeda única, e que esse falhanço do euro nos arrasta hoje a todos num inconfessável turbilhão em que se perdeu completamente a noção de qualquer sentido europeu comum, e se afirmam cada vez mais os sentimentos, as urgências e os dramas dos imperativos nacionais.
 
Fracasso inconfessável mas já pressentido por todos, como se vê, por um lado, pela retirada dos bancos franceses e alemães dos países do Sul da Europa, e, por outro lado, pela torrencial saída de capitais dos países do Sul para os do Norte, que só em Espanha atingiu no primeiro semestre deste ano os 220 mil milhões de euros, um quinto do PIB espanhol. Fenómenos que só podem agravar-se com a cacofonia com que se continua a responder à crise, sobretudo sempre que se aproxima mais uma das famosas cimeiras "decisivas", desta vez a ter lugar, justamente hoje e amanhã, em Bruxelas.
 
As declarações feitas pelos mais diversos responsáveis no fim de semana passado, em Tóquio, durante a reunião anual do FMI, são a melhor ilustração da fase de excitação terminal em que se entrou, com uns a dizerem tudo e o seu contrário sobre o sumiço do crescimento, outros a defenderem o oposto de tudo aquilo que têm feito, outros ainda a tentarem transformar retrospetivamente o vício em virtude... e vice-versa...
 
O fracasso do euro é hoje insofismável. Ele devia ter trazido à Europa mais convergência e agravou a divergência entre os países do Norte e do Sul. Ele deveria ter estimulado o crescimento e conduziu-nos globalmente à estagnação, com a recessão bem à vista. E foi ainda ele que permitiu, com o seu folclore de ilusões, uma aceleração suicida do endividamento privado e pública.
 
Por muito que custe, só o reconhecimento destes factos o pode ainda salvar. Mas não será tarde demais? Esta é, na verdade, a única questão que os líderes europeus têm hoje e amanhã sobre a mesa.
 

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