Manuel Maria
Carrilho – Diário de notícias, opinião
Basta um grama de
lucidez para se perceber que viajamos numa nave de loucos em que o espetáculo
de demências diversas se impôs como matriz de um quotidiano de que vai
desaparecendo qualquer sentido. Mas esse grama é precioso para podermos avaliar
a dimensão dos fracassos que se pretendem maquilhar ou ocultar: o fracasso do
Governo, o fracasso do memorando e o fracasso da União Europeia.
São, reconheçamos,
fiascos a mais. Comecemos pelo do Governo, que é talvez o mais óbvio, ainda que
possa não ser o mais importante. O susto e a herança tinham concedido ao
Governo PSD/PP não propriamente um estado de graça, mas um parêntesis de
benevolente confiança, que durante um ano o protegeram das consequências de
todos os erros de conceção e de organização, de todas as insipiências e
incompetências políticas, de todas as falhas e incapacidades no plano da ação e
da concretização.
Tudo foi
relativizado e desvalorizado com o argumento da urgência e das dificuldades do
combate ao monstro do défice, erigido em meta central, quando não única, da
ação do Governo. E foi aqui que, para muitos, subitamente, no verão passado, se
percebeu que o Governo estava a falhar estrondosamente. Foi este o
acontecimento da rentrée deste ano, que Passos Coelho geriu de um modo insólito
e calamitoso com o discurso da TSU de 7 de setembro, atirando o País para um
pathos de indignação sem saída nem esperança. E, desde então, às evidências do
fracasso juntou-se uma espiral de desorientação, a revelar uma perigosíssima
convergência de incompetência, de descoordenação e de dogmatismo.
Em vez de se
corrigirem com abertura de espírito as estratégias que não resultaram, em vez
de se repensarem com prudência as medidas que conduziram a resultados tão
distantes do prometido, o que se fez foi deduzir do seu fracasso a sua virtude
e a sua inalterabilidade. Pior: apostou-se, como a proposta de Orçamento para
2013 inequivocamente o prova, numa reincidência agravada do que anteriormente
se fez, num exercício de fanatismo de que a história já mostrou muitas vezes as
funestas consequências. Creio porque é absurdo, credo quia absurdum, como dizia
Tertuliano - eis a máxima da nave de loucos em que o Governo se tornou, e está
a tornar o País.
Tudo isto vem,
contudo, na linha de um outro fracasso de que se fala menos, mas que era bem
óbvio desde o princípio: o do famoso memorando, que na altura designei como
milagreiro, tais foram as fantásticas qualidades e virtualidades que quase toda
a gente lhe atribuiu. É que o memorando nunca foi a estratégia de que o País
precisava, mas tão-só o pacote de cortes e o plano de garantia que viabilizava
o empréstimo externo, feito nas condições limite a que o País chegou então e de
que todos nos devemos lembrar ainda - o que é algo muito, muito diferente. O
que então faltava ao País não era mais do mesmo, como o infeliz "além do
memorando" de Passos Coelho imprudentemente assumiu. O que faltava era o
outro lado desse plano, e foi isso, a visão política complementar desse esforço
que tragicamente faltou desde o início, reduzindo tudo à natural cegueira de
contabilistas em desespero de liquidez.
O terceiro fracasso
é o da União Europeia. E aqui, o que é preciso dizer com clareza é que a União
Europeia falhou a sua aposta da moeda única, e que esse falhanço do euro nos
arrasta hoje a todos num inconfessável turbilhão em que se perdeu completamente
a noção de qualquer sentido europeu comum, e se afirmam cada vez mais os
sentimentos, as urgências e os dramas dos imperativos nacionais.
Fracasso
inconfessável mas já pressentido por todos, como se vê, por um lado, pela
retirada dos bancos franceses e alemães dos países do Sul da Europa, e, por outro
lado, pela torrencial saída de capitais dos países do Sul para os do Norte, que
só em Espanha atingiu no primeiro semestre deste ano os 220 mil milhões de
euros, um quinto do PIB espanhol. Fenómenos que só podem agravar-se com a
cacofonia com que se continua a responder à crise, sobretudo sempre que se
aproxima mais uma das famosas cimeiras "decisivas", desta vez a ter
lugar, justamente hoje e amanhã, em Bruxelas.
As declarações
feitas pelos mais diversos responsáveis no fim de semana passado, em Tóquio,
durante a reunião anual do FMI, são a melhor ilustração da fase de excitação
terminal em que se entrou, com uns a dizerem tudo e o seu contrário sobre o
sumiço do crescimento, outros a defenderem o oposto de tudo aquilo que têm
feito, outros ainda a tentarem transformar retrospetivamente o vício em
virtude... e vice-versa...
O fracasso do euro
é hoje insofismável. Ele devia ter trazido à Europa mais convergência e agravou
a divergência entre os países do Norte e do Sul. Ele deveria ter estimulado o
crescimento e conduziu-nos globalmente à estagnação, com a recessão bem à
vista. E foi ainda ele que permitiu, com o seu folclore de ilusões, uma
aceleração suicida do endividamento privado e pública.
Por muito que
custe, só o reconhecimento destes factos o pode ainda salvar. Mas não será
tarde demais? Esta é, na verdade, a única questão que os líderes europeus têm
hoje e amanhã sobre a mesa.
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