José Manuel Pureza –
Diário de Notícias, opinião
O País aguenta mais
austeridade? Ai aguenta, aguenta!" Que o banqueiro Fernando Ulrich se
tenha sentido na obrigação de vir a terreiro para, do alto da recapitalização
garantida do seu banco, ameaçar o País nestes termos é revelador. Ao dizer o
que disse e como disse, ele foi o porta-voz do misto de desespero e cinismo de uma
elite económica e política que vê chegado o tempo da queda das máscaras.
Primeiro caiu a máscara da salvação do País da bancarrota, disfarce de uma
estratégia que não tem feito outra coisa senão levar o País justamente para a
insolvência sem remissão. Depois caiu a máscara dos "efeitos
inesperados", com a qual o Governo quis camuflar a sua aposta deliberada
no desemprego como chantagem sobre o emprego e os salários e na espiral recessiva
como desígnio para uma suposta periferização virtuosa da nossa economia. Nem
salvação nem desvios imprevistos - apenas estratégia, fria e implacável, de
aplicação do dogma liberal.
O Orçamento esta
semana aprovado é incumprível e foi precisamente para o ser que o Governo o fez
como fez. Na lógica animada pela obsessão ideológica do Executivo, a operação
de reengenharia da sociedade portuguesa ainda vai a meio. Vítor Gaspar exprimiu-o
com clareza na imagem da maratona e da não desistência aos 27 quilómetros .
Ulrich, com menos paciência para metáforas do que Gaspar, foi direito ao
assunto: "Ai aguenta, aguenta!" O patamar de austeridade e
empobrecimento já atingido não chega para os propósitos da direita económica e
social que tem em Passos e na sua equipa os seus políticos de serviço. É tempo
de passar à segunda fase do plano. Não é outro o sentido da proclamação da
enigmática "refundação" do memorando de entendimento com a troika
pelo primeiro-ministro. Flagelado e deixado exausto o tecido social, é agora o
tempo de passar ao desmantelamento completo dos serviços públicos e dos
direitos sociais. Agora cairá uma última máscara: "Cumprir as metas"
em 2013 vai significar 3,5 mil milhões de euros a menos em saúde, educação e
segurança social. Tão simples e cruel como isso.
Agradeçamos a
Fernando Ulrich a clarificação inequívoca do horizonte pretendido por esta
operação. Diz ele: o desemprego na Grécia "já está em 23,8% e chegará aos
25,4% no próximo ano. Apesar disso, os gregos estão vivos, protestam com um
bocadinho mais de veemência do que nós, partem umas montras, mas eles estão lá,
estão vivos." O recado não podia ser mais cristalino: os gregos estarem
vivos é a prova de que, austeridade em cima de austeridade, um povo pode viver
sem direitos, sem proteções, sem mecanismos de equilíbrio, sem nada. Apenas com
a vida nua. "Estão vivos" - diz Ulrich - apesar de tudo lhes ter sido
tirado (ou, em linguagem mais cara ao banqueiro, de os seus custos terem sido
eficientemente minimizados), estão vivos apesar de não terem emprego, de não
terem como pagar os cuidados básicos de saúde, de não poderem pagar o crédito à
habitação - e se eles estão vivos apesar de tudo isso, não nos venham com
lamechices de que o povo português já não aguenta mais austeridade. Ai aguenta,
aguenta!
O programa desta
segunda fase do ajustamento estrutural é, pois, o de uma refundação não do
memorando mas do regime político em Portugal. Pela mão do Governo e da troika, a democracia
portuguesa corre o risco de ser grosseiramente desfigurada em poucos meses. O
que está em causa é uma gigantesca operação de privatização de tudo aquilo em
que se joga um desempenho social do Estado e, portanto, de tudo aquilo em que a
democracia é social e não apenas política ou cerimonial. O plano B da troika é
afinal o plano A de sempre de uma elite que não perdoa ao 25 de Abril ter
aberto a porta à transformação das relações sociais em Portugal.
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