Ana Sá Lopes – Jornal i, opinião
A martirização
policial permitiu transformar as manifs em territórios de risco
A carga da polícia
de choque que se seguiu à manifestação do dia da greve geral teve o condão de
provocar um estranho unanimismo na opinião pública, partidária, etc. Avaliar a
violência da polícia de choque ocupou nesse dia um lugar secundaríssimo –
afinal, os polícias que faziam a segurança do parlamento estiveram sujeitos a
uma martirização provocada por “meia dúzia de profissionais da desordem”, para
usar a expressão do ministro da Administração Interna Miguel Macedo. E, feito
inédito, essa circunstância transformou uma carga policial num feito de elogio
unânime dos partidos do governo ao PS – ou de silêncio do quem cala consente do
PCP e do Bloco de Esquerda. Como se uma interrogação sobre a proporção da
intervenção policial pudesse ser automaticamente confundida com o apoio aos
hooligans que atiraram pedras à polícia, o silêncio entupiu muitos daqueles a
quem a actuação das forças da ordem – varrendo tudo à sua volta e detendo
indiscriminadamente cidadãos pacíficos de São Bento até ao Cais do Sodré –
perturbou profundamente.
Afinal, como é que
a polícia não consegue neutralizar a “meia dúzia de profissionais da desordem”
e parte para uma intervenção violenta em larga escala? Aqui ao lado, a
jornalista Rosa Ramos explica que prevaleceu na polícia a teoria de que
detenções cirúrgicas nas manifestações são excessivamente arriscadas e podem
potenciar a violência. Uma fonte policial admite ao i que foi avaliado o risco
de, “com detenções isoladas” se vir a “gerar uma situação de enorme instabilidade”
– admitindo a polícia que os restantes manifestantes poderiam solidarizar-se
com os “profissionais da desordem” – e que o desfecho final poderia ser uma
carga policial “ainda pior”.
Numa manifestação
maioritariamente pacífica, como até agora têm sido as manifestações, este risco
foi sobreavaliado.
A edição do
“Correio da Manhã” de ontem dava conta de um mal-estar instalado dentro da
polícia pela demora em actuar. À pergunta sobre a demora em actuar ainda não
houve uma resposta cabal. Não há uma única razão de segurança aceitável para
manter a polícia e o parlamento sujeitos à martirização transmitida em directo. Mas pode
haver razões políticas: o argumento da martirização conseguiu transformar uma
carga policial num acto aceitável para a maioria dos portugueses; e em imediata
sequência transformou as manifs em territórios de risco. Se isto interessa a
alguém, não é seguramente ao Menino Jesus.
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