Dagens
Nyheter, Estocolmo – Presseurop – imagem Kazanevski
Criada para dar uma
forma política aos valores comuns dos europeus, a União Europeia, com a
cumplicidade dos seus Estados-membros, acumulou poder e competências em
detrimento dos interesses dos povos que devia defender, denuncia o escritor
irlandês Colm Tóibín.
A União Europeia
parece um sonho esquisito; serviu para dar forma e criar um conjunto de valores
políticos num complexo sistema que poria os valores humanos, uma cultura rica e
a noção de igualdade mesmo no centro das suas preocupações. Acontece que, como sistema,
a União Europeia seria capaz de aguentar tudo, menos uma crise.
Neste momento, sob
a pressão de uma crise financeira, os países só conseguem que as suas
fronteiras e os seus interesses próprios se sobreponham a qualquer bem comum.
Embora as velhas moedas tenham desaparecido quase todas, as
velhas mentalidades persistem. Segundo o nosso sentido de lealdade, assim
que a pressão se faz sentir, vivemos em Estados-nação, apesar de os nossos
bancos funcionarem de acordo com uma nova ordem mundial.
O dinheiro circula
como o ar, completamente livre, sendo soprado de um lado para o outro pelo
vento, desregulado, instável, incerto. São ideias que estiveram privadas de
liberdade. E com as ideias as identidades. Neste momento, sabemos quem é alemão
e quem é grego; sabemos que somos irlandeses e que vocês são suecos.
O direito a rir do
Rei
É importante
recordarmos o
significado do sonho. É importante, neste momento, na periferia da Europa
onde vivo, recomeçarmos a utilizar a linguagem do idealismo político e
cultural, pegarmos na língua que foi degradada pelos nossos políticos e vermos
que determinadas (ou indeterminadas) palavras ou conceitos podem significar
alguma coisa, mesmo que seja apenas para ficarmos com o consolo que a poesia
nos dá, uma língua cheia de sonoridades e responsabilidade, numa época de privações
privadas.
Um dos aspetos da
nossa herança europeia é a
maneira de rir. No nosso dia-a-dia, na literatura e nos contos
tradicionais, aquilo que é ridículo e depreciativo está no âmago da
sensibilidade europeia. Temos o direito de nos rirmos do Rei que passa por nós
com toda a pompa e circunstância. O Rei vai nu. Passámos a vida a rirmo-nos dos
nossos dirigentes.
O general sabe que
o cabo, assim que chega a casa ou bebe uns copos, perde todo o respeito pela
farda e pelas medalhas do general. Em Shakespeare, o parvo ou o coveiro dizem
coisas mais acertadas do que o Rei ou o príncipe. Em Cervantes, Dom Quixote é
um herói só por ser obviamente pateta. E na Europa, quando nos apetece,
rimo-nos de Deus e pensamos que ele, se calhar, é um pouco parvo. Isto é o que
nos distingue dos cidadãos norte-americanos, chineses, ou do Médio Oriente.
Na Europa, existe a
noção de uma cultura humanista comum a todos nós, qualquer coisa que resulta da
liberdade de escrevermos e de lermos o que nos apetece e de termos pensamentos
arejados e de criarmos imagens frescas. Houve tempos em que a União Europeia
deu mostras de personificar isto mesmo, de exercer uma influência secularizante
na Europa ao colocar as ideias humanistas, e a tolerância e a igualdade de
oportunidades e a possibilidade de progresso mesmo no seu centro.
A Europa
significava progresso, especialmente em países como a Grécia, Portugal, Espanha
e Irlanda, países com estradas más e políticas ultrapassadas. Significou
paz nos países que tinham passado pela guerra. Melhorámos a infraestrutura
de cortesia da Europa e, aos poucos, a nossa cultura política também se
alterou. Mas houve épocas em que a Europa significou dinheiro e poder. Demos
conta de que, por exemplo, quando juízes, funcionários públicos, ou políticos
irlandeses iam trabalhar para a Europa, recebiam uns salários que pareciam ser
muito generosos.
O dispendioso álibi
da transparência
O que também
aconteceu foi o secretismo de que gozam aqueles
que gostam de poder. A União Europeia assentou num sistema diplomático em
vez de assentar, digamos assim, num sistema parlamentar. Desse modo, aquilo que
acontecia à porta fechada e aparecia em memorandos secretos afetava mais a
nossa vida do que aquilo que se passava nos nossos próprios parlamentos
nacionais. Quando os membros do Conselho de Ministros se encontravam, faziam
afirmações insípidas e pousavam para a fotografia. Ninguém sabia o que tinham
realmente decidido, nem como. O Parlamento Europeu continua a ser um enorme e
dispendioso álibi da transparência.
A União Europeia
parecia preparada para assumir cada vez mais poder. Também mostrava não ter
interesse em se reformar, ou em analisar os seus próprios procedimentos. Ao
recorrer aos sistemas dos diplomatas, criou um estranho inimigo chamado
povo. Deste modo apareceram dois poderosos blocos – os cidadãos da Europa,
cada vez com menos poder, e os dirigentes da Europa, com mais poder a cada ano
que passa. Os dirigentes enganavam muitas vezes o povo; os dirigentes mostravam
saber o que era melhor para o povo.
Presos ao euro
No entanto, algumas
alterações que fizeram foram maravilhosas. Podíamos atravessar as fronteiras da
Europa sem precisarmos de um carimbo no passaporte, ou, quando íamos de carro,
sem nos termos de submeter a qualquer tipo de controlo. Podíamos fazer circular
mercadorias, na sua maior parte sem pagar direitos aduaneiros. Podíamos viver e
trabalhar onde nos apetecesse na Europa. Adorei a maneira como a Europa
ocidental abraçou os países do Leste a partir de 1989. Adorei a ideia de que a
Europa passaria a ser um espaço de cidades em vez de Estados, porque as nossas
cidades e as ideias e as imagens que se espalhavam por toda a parte eram a
nossa grande criação europeia.
Adorei a ideia de
que o conceito de nacionalidade e nacionalismo passaria a pertencer ao século
XIX e o pesadelo do século XX terminava agora. Adorei inclusivamente o euro
assim que apareceu e tive orgulho de que a Irlanda tivesse aderido a ele logo
desde o início. Adorei os novos éditos que chegavam da Europa sobre ambiente;
adorei a liberalização das viagens de avião. Acreditei inclusivamente que
chegaria uma altura em que a Europa teria alguma importância no mundo, em que o
nosso conceito de direitos humanos seria tão forte como o euro e faria a
diferença em relação à realidade da China e do Médio Oriente.
Na Irlanda, nos
anos de crescimento, toda a gente tinha trabalho. Não precisávamos de emigrar
como sempre tínhamos feito. Trabalhámos imenso. Numa conjuntura de recessão,
normalmente seríamos capazes de desvalorizar a nossa moeda e teríamos em conta
a inflação. Agora já não podemos fazer isto. O euro serve a Alemanha e outros
países ricos e torna competitivas as suas exportações e deixou de nos servir a
nós. Mas estamos presos a ele.
Entretanto, a
Alemanha e outros países europeus ricos falam como se fossem a fonte de toda a
sabedoria na Europa e, talvez mais importante, a fonte de toda a autoridade.
Sob pressão, a ideia de União Europeia falhou. Agora, há apenas Estados-nação a
cuidar dos seus próprios interesses. Acordámos do grande sonho. É de dia na
Europa. Tudo aquilo que temos para nos confortar é a capacidade de rir da nossa
loucura e da loucura deles; tudo aquilo que temos é a recordação daquilo que um
dia foi possível.
E a seguir a
recordação dos quadros, dos livros, da música e das sinfonias, das belíssimas
galerias e museus e bibliotecas e edifícios públicos que dão corpo à nossa
cultura. Podemos passear à noite solitariamente pelas ruas de Lisboa e de Riga,
de Atenas e de Dublin, de Constança e de Estocolmo e ter a noção de que o
impulso para a solidariedade social e o idealismo político poderão voltar outra
vez, até mesmo mais intensamente agora que conhecemos a sua fragilidade. Mas
não tão cedo.
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