terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A PRIMAVERA ÁRABE

 

Mário Soares – Diário de Notícias, opinião
 
1. Para os europeus, a chamada Primavera Árabe representou uma grande alegria, uma vez que parecia trazer, para vários Estados muçulmanos, o triunfo da democracia.
 
Os anos que passaram (de 2010 aos finais de 2012) trouxeram-nos crescentes dissabores: conflitos religiosos, assassínios a frio, mortandades imperdoáveis...
 
A Primavera começou na Tunísia, com a fuga do ditador Ben Ali, e, a seguir, passou ao Egito, onde manifestações colossais derrubaram facilmente um ditador que parecia eterno: Hosni Mubarak, protegido pelo Exército, que, durante tantos anos, conduziu com mão de ferro e que, então, parecia estar muito doente.
 
Seguiu-se a Líbia, que sofreu a intervenção da NATO e dos Estados Unidos, embora prudente, e conduziu ao assassínio do todo-poderoso ditador Kadafi, escondido numa sarjeta... A Líbia tornou-se então um Estado em desagregação, com lutas entre as diferentes tribos.
 
No Magrebe, o Presidente Bouteflika, apoiado nas Forças Armadas, conseguiu manter o equilíbrio político, sem que as manifestações que percorreram Argel e outras cidades produzissem estragos de maior. Em Marrocos, as manifestações políticas foram pacíficas e conduziram a algumas reformas importantes. O mesmo sucedeu com a Jordânia, o Koweit e o Iémen, com mais dificuldades.
 
Israel, isolado num mundo hostil árabe, com um Governo conservador presidido por Benjamin Netanyahu, o que complica ainda mais a sua situação, tem ameaçado o Irão, que o novo mandato de Barack Obama pretende acalmar.
 
A Síria, em plena guerra civil, graças à intransigência do ditador Bachar al-Assad, filho do ditador do mesmo nome, só tem subsistido graças ao veto (na ONU) imposto pela China e pela Rússia. Tem sido uma verdadeira mortandade diária, com o agravamento último da intervenção da Turquia, com mísseis cruzados, atirados das duas fronteiras rivais, criando uma situação extremamente perigosa. Note-se que a Turquia é um grande país, membro da NATO, que há muito devia ter (como sempre defendi) um lugar de pleno direito na União Europeia.
 
Para acabar a mortandade da Síria, cuja guerra civil já chegou a Damasco, a América e a Rússia parecem ter iniciado conversações para impor a paz. Oxalá consigam.
 
A ONU, paralisada pelo veto, continua impotente, enquanto as populações da Síria morrem todos os dias, às dezenas, dada a teimosia inaceitável de um ditador cruel, que só pensa nele e ignora o Estado que ainda julga dirigir...
 
Veremos o que sucederá. Mas a Primavera Árabe está a viver um inverno amargo que não augura nada de bom... E que para a Europa se está a tornar uma grande preocupação.
 
2. Acabar com esta crise, já ! Este grito de alma foi dado pelo economista, prémio Nobel da Economia nascido em Nova Iorque, Paul Krugman, que tem tido a coragem de, em livros e artigos sucessivos, no New York Times, ter chamado a atenção para a necessidade urgente de combater a crise financeira e económica, e agora também política, social, ambiental e civilizacional, que nos veio da América e, desde há dois anos, está a afetar perigosamente a estabilidade da União Europeia e do euro, como a moeda comum da Europa da Zona Euro.
 
Foi a Grécia, como é sabido, o primeiro Estado europeu a ser afetado pela crise. A Alemanha - que deve tanto à Grécia - devia ter ajudado logo a Grécia e evitar que a crise pudesse alargar-se. Infelizmente, por razões nacionalistas e pessoais, não o fez. A Irlanda e Portugal foram as sucessivas vítimas, sem reação da Europa da Zona Euro e em particular da chanceler Merkel, que só pensa nas próximas eleições, apesar de ter uma enorme popularidade no eleitorado alemão, mas não na Europa.
 
Surgiram então mais duas vítimas: a Espanha e a Itália, duas das maiores economias europeias. O problema da crise europeia passou a ser extremamente grave, em virtude da paralisia das instâncias europeias. A França e Estados como a Bélgica e a Holanda, sem esquecer os países de Leste, recém--convertidos ao europeísmo, não tardarão a ser as próximas vítimas. E a própria Alemanha, tendo perdido os compradores do Sul, dos seus automóveis e de outras máquinas sofisticadas, está a perder a sua antiga prosperidade e a entrar, paulatinamente, em recessão. É o que os economistas esperam que aconteça no próximo ano de 2013.
 
Como têm dito economistas, prémios Nobel, como Paul Krugman e Joseph Stiglitz, de cujas mensagens eu tenho vindo a fazer eco, há mais de dois anos, é preciso reduzir drasticamente as políticas de austeridade para diminuir a recessão nos Estados vítimas dos mercados usurários e baixar o flagelo do desemprego. Não é fácil, por enquanto. As instâncias europeias ainda estão muito pouco ativas e corajosas.
 
Sei que as medidas propostas são difíceis de tomar. Mas é a única forma de diminuir e vencer a crise, como os inúmeros casos passados com outros Estados da América do Sul - e as experiências que lhes ficaram - têm provado. Recusando-se a pagar as suas dívidas ou, vindo a pagá-las, só a longo prazo. É óbvio que, para tanto, é preciso alguma coragem, não ter medo dos mercados e de os controlar, em vez de sermos dominados por eles...
 
Os Estados membros da União Europeia e, em especial, da Zona Euro estão divididos e paralisados. Têm intervenções contraditórias, a começar pelas posições diferenciadas da Alemanha e da França. Por seu lado, o Reino Unido ameaça sair da União, o que a mim nunca me impressionou muito, dado que sempre viu o projeto europeu - ao contrário dos Pais Fundadores - como uma simples comunidade de livre câmbio e mais nada do que isso. No entanto, os Estados Unidos parecem preocupados, com essa possibilidade, como escreveu o The Economist, no artigo do seu último número intitulado "Goodbye Europe".
 
É certo que a chanceler Merkel, como havia prometido, "não deixou cair a Grécia". É uma posição que tem um significado importante. Representa um passo em frente que, aliás, talvez tenha surpreendido alguns dirigentes europeus e dos Governos vítimas que, igualmente, necessitam de ajudas. Mas - Merkel dixit - isso ficará para nova cimeira, como é hábito (péssimo) das instâncias europeias...
 
Entretanto, a União Europeia - e os seus dirigentes - continuam bastante confusos sem saber o que dizer e, menos ainda, como agir para vencer a crise. Enquanto mantiverem os seus chorudos lugares, tudo vai bem para eles...
 
3. O Governo e as suas "trapalhadas" Realmente, a semana passada teve o condão de ser o momento em que as "trapalhadas do Governo" - para citar a frase de um dos líderes do PSD, Marques Mendes - se revelaram, aos portugueses, em toda a sua "trapalhice". Um Governo que não tem estratégia, que avança, recua e torna a avançar, que diz o menos possível aos portugueses, enquanto desesperam com o empobrecimento crescente, que comunica pessimamente com as pessoas, caindo em contradições, que silencia o essencial e em que os seus membros - quando falam, o que é raro - parecem não se entender uns com os outros é um Governo que não tem solidez nem sabe, em cada dia, o que fazer.
 
Comecemos pela Grécia, que tem vindo a criar sucessivos engulhos a Passos Coelho. Primeiro, quando afirmou, com altivez, que "Portugal não era a Grécia". Depois, ignorando que a Grécia é o berço da nossa civilização e que lhe devemos muito, desde antes da nossa nacionalidade e depois dela.
 
Mas, na semana passada, a senhora Merkel, como prometera, não deixou cair a Grécia. Passos Coelho resolveu então dizer, publicamente (não na cimeira, à porta fechada, mas depois dela), que Portugal também tinha direito a receber dinheiro como a Grécia. O que mereceu um puxão de orelhas da chanceler, que obrigou o primeiro-ministro a mudar de posição. Em suma, uma completa "trapalhada" que deu a oportunidade ao ministro Paulo Portas de se aproximar do Presidente Cavaco Silva e de escrever uma carta à troika sem consultar o primeiro-ministro, julgo. Tudo vai bem, na maior das harmonias, como diria Pangloss, a personagem de Voltaire...
 
Para o caso da apropriação da oportunidade aberta para Portugal - e negada pela chanceler Merkel - que deu lugar aos ziguezagues do primeiro-ministro, que não quer obviamente desagradar à chanceler, houve outras trapalhadas, com consequências graves, como: o que se passou na RTP, comandada pelo ministro Relvas, que ninguém entendeu, não entende nem vai entender; a abertura, sem que se discuta, da questão da privatização da TAP, sem explicar aos portugueses e particularmente aos interessados que nela trabalham há longos anos, que o Governo, pela mão de Relvas, sempre ele, procura vender a um colombiano, sem que o seu curriculum seja conhecido; a lei das autarquias, a que de novo Relvas não foi estranho, quando não foram ouvidos os autarcas nem as populações, bem como o desaparecimento de algumas freguesias, que tanto irrita os portugueses, de norte a sul, e que vai, seguramente, gerar grandes problemas político-eleitorais, sobretudo no PSD em tempo de eleições; a venda, tão discreta, outra vez promovida por Relvas, que ninguém conhecia, dos jornais, das rádios e das televisões, sem se saber quem são os novos proprietários, não dando qualquer explicação aos jornalistas interessados, etc., etc.
 
Outro governo qualquer, na verdade, dificilmente poderia ter arranjado tantas oposições, tantos ódios e tantas dificuldades. Vamos a ver se irá ou não passar este Orçamento do Estado, de que ninguém gosta, a começar pelos membros do PSD e do próprio Governo. De resto, hoje, há felizmente dois PSD: o que apoia o Governo (muito minoritário) e o que o critica e, em alguns casos, despreza (maioritário), em público mas sobretudo em privado.
 
A coligação governamental está por um triz para desaparecer, como esta semana se tornou claro, para quem teve a oportunidade de seguir os passos - e as palavras - que se ouviram de Paulo Portas. Na verdade, o ministro Portas - humilhado pelo primeiro-ministro - ou quer salvar o seu partido e para isso tem de sair do Governo ou, ficando, escavaca o partido sem salvar o Governo, ou, não fazendo nem uma coisa nem a outra, perde o Governo e o partido. É uma simples questão de tempo.
 
Mas há outros ministros que começam a dar sinais de descontentamento, como não poderia deixar de ser. Não é para ninguém prestigioso participar num tal Governo e aceitar ser vaiado em público sempre que se atreva a sair à rua, apesar dos guarda-costas... As manifestações hostis são quase diárias, e se o Orçamento for levado ao Tribunal Constitucional - e passar - vai ser muito pior. Eu sei - porque o sinto - que há medo na sociedade portuguesa, em todos os sectores. Mas como não há nenhuma esperança relativamente ao futuro, e o desemprego e a miséria crescem, os conflitos sociais vão agravar-se e ser cada vez mais violentos. À direita e à esquerda há essa consciência. E isso pesa. Oxalá me engane... Mas tenho de o escrever, por dever patriótico.
 

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