Mário Soares – Diário de Notícias, opinião
1. Para os europeus, a chamada Primavera Árabe
representou uma grande alegria, uma vez que parecia trazer, para vários Estados
muçulmanos, o triunfo da democracia.
Os anos que passaram (de 2010 aos finais de 2012)
trouxeram-nos crescentes dissabores: conflitos religiosos, assassínios a frio,
mortandades imperdoáveis...
A Primavera começou na Tunísia, com a fuga do ditador
Ben Ali, e, a seguir, passou ao Egito, onde manifestações colossais derrubaram
facilmente um ditador que parecia eterno: Hosni Mubarak, protegido pelo
Exército, que, durante tantos anos, conduziu com mão de ferro e que, então,
parecia estar muito doente.
Seguiu-se a Líbia, que sofreu a intervenção da NATO e
dos Estados Unidos, embora prudente, e conduziu ao assassínio do todo-poderoso
ditador Kadafi, escondido numa sarjeta... A Líbia tornou-se então um Estado em
desagregação, com lutas entre as diferentes tribos.
No Magrebe, o Presidente Bouteflika, apoiado nas
Forças Armadas, conseguiu manter o equilíbrio político, sem que as
manifestações que percorreram Argel e outras cidades produzissem estragos de
maior. Em Marrocos, as manifestações políticas foram pacíficas e conduziram a
algumas reformas importantes. O mesmo sucedeu com a Jordânia, o Koweit e o
Iémen, com mais dificuldades.
Israel, isolado num mundo hostil árabe, com um
Governo conservador presidido por Benjamin Netanyahu, o que complica ainda mais
a sua situação, tem ameaçado o Irão, que o novo mandato de Barack Obama
pretende acalmar.
A Síria, em plena guerra civil, graças à
intransigência do ditador Bachar al-Assad, filho do ditador do mesmo nome, só
tem subsistido graças ao veto (na ONU) imposto pela China e pela Rússia. Tem
sido uma verdadeira mortandade diária, com o agravamento último da intervenção
da Turquia, com mísseis cruzados, atirados das duas fronteiras rivais, criando
uma situação extremamente perigosa. Note-se que a Turquia é um grande país,
membro da NATO, que há muito devia ter (como sempre defendi) um lugar de pleno
direito na União Europeia.
Para acabar a mortandade da Síria, cuja guerra civil
já chegou a Damasco, a América e a Rússia parecem ter iniciado conversações
para impor a paz. Oxalá consigam.
A ONU, paralisada pelo veto, continua impotente,
enquanto as populações da Síria morrem todos os dias, às dezenas, dada a
teimosia inaceitável de um ditador cruel, que só pensa nele e ignora o Estado
que ainda julga dirigir...
Veremos o que sucederá. Mas a Primavera Árabe está a
viver um inverno amargo que não augura nada de bom... E que para a Europa se
está a tornar uma grande preocupação.
2. Acabar com esta crise, já ! Este grito de alma foi
dado pelo economista, prémio Nobel da Economia nascido em Nova Iorque , Paul
Krugman, que tem tido a coragem de, em livros e artigos sucessivos, no New York
Times, ter chamado a atenção para a necessidade urgente de combater a crise
financeira e económica, e agora também política, social, ambiental e
civilizacional, que nos veio da América e, desde há dois anos, está a afetar
perigosamente a estabilidade da União Europeia e do euro, como a moeda comum da
Europa da Zona Euro.
Foi a Grécia, como é sabido, o primeiro Estado
europeu a ser afetado pela crise. A Alemanha - que deve tanto à Grécia - devia
ter ajudado logo a Grécia e evitar que a crise pudesse alargar-se.
Infelizmente, por razões nacionalistas e pessoais, não o fez. A Irlanda e
Portugal foram as sucessivas vítimas, sem reação da Europa da Zona Euro e em
particular da chanceler Merkel, que só pensa nas próximas eleições, apesar de
ter uma enorme popularidade no eleitorado alemão, mas não na Europa.
Surgiram então mais duas vítimas: a Espanha e a
Itália, duas das maiores economias europeias. O problema da crise europeia
passou a ser extremamente grave, em virtude da paralisia das instâncias
europeias. A França e Estados como a Bélgica e a Holanda, sem esquecer os
países de Leste, recém--convertidos ao europeísmo, não tardarão a ser as
próximas vítimas. E a própria Alemanha, tendo perdido os compradores do Sul,
dos seus automóveis e de outras máquinas sofisticadas, está a perder a sua
antiga prosperidade e a entrar, paulatinamente, em recessão. É o que os
economistas esperam que aconteça no próximo ano de 2013.
Como têm dito economistas, prémios Nobel, como Paul
Krugman e Joseph Stiglitz, de cujas mensagens eu tenho vindo a fazer eco, há
mais de dois anos, é preciso reduzir drasticamente as políticas de austeridade
para diminuir a recessão nos Estados vítimas dos mercados usurários e baixar o
flagelo do desemprego. Não é fácil, por enquanto. As instâncias europeias ainda
estão muito pouco ativas e corajosas.
Sei que as medidas propostas são difíceis de tomar.
Mas é a única forma de diminuir e vencer a crise, como os inúmeros casos
passados com outros Estados da América do Sul - e as experiências que lhes ficaram
- têm provado. Recusando-se a pagar as suas dívidas ou, vindo a pagá-las, só a
longo prazo. É óbvio que, para tanto, é preciso alguma coragem, não ter medo
dos mercados e de os controlar, em vez de sermos dominados por eles...
Os Estados membros da União Europeia e, em especial,
da Zona Euro estão divididos e paralisados. Têm intervenções contraditórias, a
começar pelas posições diferenciadas da Alemanha e da França. Por seu lado, o
Reino Unido ameaça sair da União, o que a mim nunca me impressionou muito, dado
que sempre viu o projeto europeu - ao contrário dos Pais Fundadores - como uma
simples comunidade de livre câmbio e mais nada do que isso. No entanto, os
Estados Unidos parecem preocupados, com essa possibilidade, como escreveu o The
Economist, no artigo do seu último número intitulado "Goodbye
Europe".
É certo que a chanceler Merkel, como havia prometido,
"não deixou cair a Grécia". É uma posição que tem um significado
importante. Representa um passo em frente que, aliás, talvez tenha surpreendido
alguns dirigentes europeus e dos Governos vítimas que, igualmente, necessitam
de ajudas. Mas - Merkel dixit - isso ficará para nova cimeira, como é hábito
(péssimo) das instâncias europeias...
Entretanto, a União Europeia - e os seus dirigentes -
continuam bastante confusos sem saber o que dizer e, menos ainda, como agir
para vencer a crise. Enquanto mantiverem os seus chorudos lugares, tudo vai bem
para eles...
3. O Governo e as suas "trapalhadas"
Realmente, a semana passada teve o condão de ser o momento em que as
"trapalhadas do Governo" - para citar a frase de um dos líderes do
PSD, Marques Mendes - se revelaram, aos portugueses, em toda a sua
"trapalhice". Um Governo que não tem estratégia, que avança, recua e
torna a avançar, que diz o menos possível aos portugueses, enquanto desesperam
com o empobrecimento crescente, que comunica pessimamente com as pessoas,
caindo em contradições, que silencia o essencial e em que os seus membros -
quando falam, o que é raro - parecem não se entender uns com os outros é um
Governo que não tem solidez nem sabe, em cada dia, o que fazer.
Comecemos pela Grécia, que tem vindo a criar
sucessivos engulhos a Passos Coelho. Primeiro, quando afirmou, com altivez, que
"Portugal não era a Grécia". Depois, ignorando que a Grécia é o berço
da nossa civilização e que lhe devemos muito, desde antes da nossa
nacionalidade e depois dela.
Mas, na semana passada, a senhora Merkel, como
prometera, não deixou cair a Grécia. Passos Coelho resolveu então dizer,
publicamente (não na cimeira, à porta fechada, mas depois dela), que Portugal
também tinha direito a receber dinheiro como a Grécia. O que mereceu um puxão
de orelhas da chanceler, que obrigou o primeiro-ministro a mudar de posição. Em
suma, uma completa "trapalhada" que deu a oportunidade ao ministro
Paulo Portas de se aproximar do Presidente Cavaco Silva e de escrever uma carta
à troika sem consultar o primeiro-ministro, julgo. Tudo vai bem, na maior das
harmonias, como diria Pangloss, a personagem de Voltaire...
Para o caso da apropriação da oportunidade aberta
para Portugal - e negada pela chanceler Merkel - que deu lugar aos ziguezagues
do primeiro-ministro, que não quer obviamente desagradar à chanceler, houve
outras trapalhadas, com consequências graves, como: o que se passou na RTP,
comandada pelo ministro Relvas, que ninguém entendeu, não entende nem vai
entender; a abertura, sem que se discuta, da questão da privatização da TAP,
sem explicar aos portugueses e particularmente aos interessados que nela
trabalham há longos anos, que o Governo, pela mão de Relvas, sempre ele,
procura vender a um colombiano, sem que o seu curriculum seja conhecido; a lei
das autarquias, a que de novo Relvas não foi estranho, quando não foram ouvidos
os autarcas nem as populações, bem como o desaparecimento de algumas
freguesias, que tanto irrita os portugueses, de norte a sul, e que vai,
seguramente, gerar grandes problemas político-eleitorais, sobretudo no PSD em
tempo de eleições; a venda, tão discreta, outra vez promovida por Relvas, que
ninguém conhecia, dos jornais, das rádios e das televisões, sem se saber quem
são os novos proprietários, não dando qualquer explicação aos jornalistas
interessados, etc., etc.
Outro governo qualquer, na verdade, dificilmente
poderia ter arranjado tantas oposições, tantos ódios e tantas dificuldades.
Vamos a ver se irá ou não passar este Orçamento do Estado, de que ninguém
gosta, a começar pelos membros do PSD e do próprio Governo. De resto, hoje, há
felizmente dois PSD: o que apoia o Governo (muito minoritário) e o que o
critica e, em alguns casos, despreza (maioritário), em público mas sobretudo em
privado.
A coligação governamental está por um triz para
desaparecer, como esta semana se tornou claro, para quem teve a oportunidade de
seguir os passos - e as palavras - que se ouviram de Paulo Portas. Na verdade,
o ministro Portas - humilhado pelo primeiro-ministro - ou quer salvar o seu
partido e para isso tem de sair do Governo ou, ficando, escavaca o partido sem
salvar o Governo, ou, não fazendo nem uma coisa nem a outra, perde o Governo e
o partido. É uma simples questão de tempo.
Mas há outros ministros que começam a dar sinais de
descontentamento, como não poderia deixar de ser. Não é para ninguém
prestigioso participar num tal Governo e aceitar ser vaiado em público sempre
que se atreva a sair à rua, apesar dos guarda-costas... As manifestações hostis
são quase diárias, e se o Orçamento for levado ao Tribunal Constitucional - e
passar - vai ser muito pior. Eu sei - porque o sinto - que há medo na sociedade
portuguesa, em todos os sectores. Mas como não há nenhuma esperança
relativamente ao futuro, e o desemprego e a miséria crescem, os conflitos
sociais vão agravar-se e ser cada vez mais violentos. À direita e à esquerda há
essa consciência. E isso pesa. Oxalá me engane... Mas tenho de o escrever, por
dever patriótico.
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