The
Irish Times, Dublin – Presseurop – imagem "Fausto e
Mefistófeles", de Eugène Delacroix (1826-27), Coleção Wallace (Londres)
Na conhecida
tragédia de Goethe, "Fausto", este autor alemão expressa a opinião de
que o papel-moeda é uma extensão da alquimia por outros meios. Esse ponto de
vista é claramente evidente na posição atual da Alemanha relativamente à crise
da zona euro, defende o correspondente do jornal "The Irish Times" em
Berlim.
Para quem tentar
compreender a atitude alemã em relação ao dinheiro e à dívida, na crise da zona
euro, todos os caminhos vão dar a Frankfurt.
A capital
financeira da Alemanha abriga não apenas dois bancos centrais, o Bundesbank e o
Banco Central Europeu, mas também um edifício barroco amarelo, por trás da
torre do BCE. Foi ali que, em 1749, nasceu o génio literário da Alemanha,
Johann Wolfgang Goethe.
Agora um museu, a
Goethe Haus tem em exibição uma exposição fascinante, Goethe e o Dinheiro (Goethe
und das Geld), que explora o modo como as atitudes da sociedade influenciaram a
escrita de Goethe, que, por seu turno, modelou a atitude alemã perante o
dinheiro.
Goethe nasceu em
berço de ouro, graças ao próspero negócio da família e a alguns casamentos
vantajosos. Embora mantivesse relações sociais com várias famílias de
banqueiros –Goethe quase casou com uma mulher de uma delas – as perdas sofridas
por essas instituições depois das guerras napoleónicas deixaram no escritor uma
desconfiança nos bancos que durou a vida inteira. .
Trabalho sequioso
As contas da
família do escritor mostram que este estava longe de corresponder ao
estereótipo do alemão poupado, gastando por vezes 15% dos seus rendimentos
anuais em vinho. Os
resgates da sua mãe e dos seus empregadores foram recorrentes. Como salientam
os curadores da exposição, Goethe argumentava que o seu comportamento de
gastador era “essencial para o desenvolvimento da sua personalidade”.
Tornou-se mais
rigoroso quando, depois de 1782, foi ministro das Finanças do ducado de
Saxónia-Weimar, onde hoje se situa o Estado da Turíngia. Essa experiência
modelou o seu pensamento e contribuiu para a criação da sua obra-prima
literária, Fausto, de leitura obrigatória em todas as
escolas alemãs, que se centra no célebre "pacto de Fausto" do erudito
homónimo com o demónio Mefistófeles.
O demónio promete
fazer tudo o que Fausto quiser na Terra, mas, se Fausto alguma vez desejar que
um determinado momento dure para sempre, Mefistófeles fica com a sua alma. A
parte II de Fausto, publicada postumamente, tem início na corte falida de um
imperador hedonista. O tesoureiro real informa que os "os cofres continuam
vazios", tal como as adegas, devido às festas frequentes.
O persuasivo
Mefistófeles aparece com a proposta de transformar papel em dinheiro. O imperador
endividado fica curioso: "Estou cheio do eterno Como e Quando / Falta
dinheiro: pois bem, arranje-o." As notas assinadas pelo imperador fazem
disparar o consumo e, assim, "metade das gentes só querem comer bem / a
outra metade só quer ostentar novos trajes". Só depois de Mefistófeles e o
seu parceiro Fausto desaparecerem alguém repara que o valor das notas não
corresponde a qualquer equivalente real –ouro num cofre, por exemplo –e, sim, à
promessa de ouro que ainda é preciso extrair da mina.
Os paralelos não
passaram despercebidos aos leitores contemporâneos de Goethe: entre a história
de Fausto e o capital necessário para impulsionar a revolução industrial. As
suas advertências voltam a ser relevantes para as inúmeras figuras públicas
alemãs que se aproveitam de Fausto para formular as suas preocupações
relativamente à crise
da Zona Euro.
O pacto faustiano
do BCE
O papel moderno do
tesoureiro do imperador em Fausto, que alerta para o sistema do papel-moeda,
foi assumido pelo presidente do Bundesbank, Jens Weidmann. “Se um banco central
puder cunhar dinheiro sem limites, a partir do nada, como pode esse banco
garantir que o dinheiro é suficientemente reduzido para manter o seu valor?”,
perguntou Weidmann numa reunião, em setembro. “A tentação existe sem dúvida e
boa parte da história monetária cedeu à tentação.” Weidmann adverte que o
programa do BCE de compra ilimitada de obrigações, para estabilizar a zona
euro, é potencialmente um pacto de Fausto, se oferecer aos políticos uma
alternativa de financiamento mais agradável que as dolorosas reformas
económicas.
O BCE argumenta que
não é disso que se trata e as diferenças de pontos de vista fizeram ressurgir a
ambivalência cultural em relação ao dinheiro e a dívidas, na Alemanha. Afinal,
neste país, a palavra Schuld significa tanto dívida monetária como culpa moral.
As intervenções do BCE no mercado de obrigações foram criticadas pelos mesmos
economistas moralistas que atacaram os países endividados da zona euro,
chamando-lhes Schuldensünder, ou “pecadores da dívida”.
Há, portanto, uma
ligação entre atitudes de hoje e o Fausto de Goethe, que o teórico literário
alemão Werner Hamacher considera como uma crítica da “estética do crédito e
economia da persuasão”.
Ottmar Issing,
antigo membro da Comissão Executiva do BCE, sugere que os alemães não têm
dúvidas quanto ao dinheiro em si, mas são pessimistas
quanto a este ser ou não utilizado de forma sensata. Num texto para o
catálogo da Goethe e o Dinheiro, intitulado “Inflação –a obra do diabo?”,
Issing defende que “a escolha entre bênção e maldição” oferecida pelo
papel-moeda “está nas mãos da humanidade”. O antigo presidente do BCE,
Jean-Claude Trichet, concorda. Noutro texto, aplaude o debate de Goethe ao
longo de toda a sua vida sobre o caráter dual do papel-moeda, que “produz o
melhor e o pior na esfera económica”.
Viver dentro das
possibilidades
Para o professor
Hans Christoph Binswanger, autor de Dinheiro e Magia – Uma crítica da economia
moderna à luz de Fausto, Goethe encarou o papel-moeda como “a extensão da
alquimia por outros meios”. Para transformar papel-moeda em riqueza real,
defende o professor Binswanger, Goethe receou que tudo viesse a ser “arrastado
para o processo de combustão lenta da produção mundial”. “A aparentemente
mágica alquimia moderna suporta um preço profano, transforma o mundo num
vazio”, acrescenta.
Os receios de
Goethe ressurgiram no ponto de vista alemão predominante de que a crise da zona
euro é o resultado destrutivo de empréstimos descontrolados e imprudentes,
contraídos por sociedades que se recusam a aceitar os limites naturais das suas
finanças. O colapso económico é, por conseguinte, um fio condutor que perpassa
pelo trauma nacional da Alemanha e pelo seu drama nacional.
Fausto e
Mefistófeles estão escondidos, à espreita da crise da zona euro, colorindo as
exigências de Berlim de disciplina orçamental pan-europeia e lançando o debate,
na Alemanha, sobre os limites do crescimento económico.
“Goethe viu que,
quando utilizado adequadamente, o dinheiro traz consigo oportunidades
positivas, como a ascensão da sua própria família”, disse Vera Hierholzer, uma
das curadoras da mostra Goethe e o dinheiro. “Ao mesmo tempo, como muitos
outros da sua classe, Goethe tinha medo das consequências do excesso e da
exorbitância, de se querer sempre mais. É um ponto de vista muito alemão, mesmo
hoje, ter em conta os limites e tentar controlar as coisas dentro desses
limites.”
O debate sobre o
autocontrolo monetário tem relevância para além da Alemanha de Goethe, em
especial entre os países em crise, impacientes por se libertarem do jugo da
troika e "regressarem aos mercados".
Curiosamente,
alguns dos últimos leilões de dívida soberana da Irlanda foram presididos pelo
defunto Brian Lenihan, no enorme Frankfurter Hof hotel, localizado a meio
caminho entre a torre do BCE e a Goethe Haus.
Depois de recuperar
a soberania económica, cabe à Irlanda decidir qual o passo seguinte. Na direção
da Goethe Haus, sem pôr em perigo os limites dos seus meios financeiros, ou de
volta ao hotel de cinco estrelas Frankfurter Hof, para ser a anfitriã das
dispendiosas reuniões ao pequeno-almoço com bancos dispostos a emprestar-nos
mais dinheiro de Mefistófeles.
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