Beijing multiplica
presença econômica na região e seria alternativa a EUA e Europa. Mas velhos
desequilíbrios marcam as novas parcerias
Christophe Ventura -
Tradução: Inês Castilho – Outras Palavras
A América Latina
poderia converter-se, nos próximos anos, numa “plataforma extraterritorial” da
China, cuja função seria permitir a esta última assegurar e ampliar suas
exportações – notadamente nos setores de eletrônica, indústria automobilística
e têxtil – para os mercados norte-americanos, europeus e latino-americanos?
Este risco seria ainda mais claro num cenário em que há tendência irreversível
ao aumento dos salários chineses, ao encarecimento de seus produtos? As
hipóteses acima foram suscitadas pela Comissão Econômica da ONU para a América
Latina e o Caribe (Cepal), em um relatório
recente, dedicado ao estudo das relações entre a China e a América Latina e
Caribe1.
Um estudo da
evolução quantitativa e qualitativa dos investimentos diretos externos (IDE)
feitos pela segunda potência econômica mundial na América Latina, entre 2003 e
2009, reforça essa análise. As economias latino-americanas recebem agora 13% do
total dos IDE da China no mundo2. Isso representa um montante
estimado em 31 bilhões de dólares. Ainda que 90% desses IDE dirijam-se aos
setores bancários de dois paraísos fiscais notórios – as Ilhas Cayman e os
Ilhas Virgens Britânicas – a Cepal indica que, durante esses seis anos, 24
bilhões de dólares teriam sido diretamente investidos pelas empresas chinesas
nos setores de recursos naturais, da indústria e dos serviços na América
Latina.
Participação em
companhias latino-americanas e acordos de cooperação entre regiões chinesas e
países latino-americanos asseguram às empresas chinesas uma penetração
crescente nas economias latino-americanas. O México e os países do Mercosul
(Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai) constituem a principal base para
atividade produtiva de empresas chinesas na América Latina. Destacam-se os
setores de produtos manufaturados, da eletrônica, automobilístico e de
telecomunicações. “A porta de entrada na Argentina, Brasil, México e Uruguai
deve ser vista como primeira etapa para organizar um avanço futuro em direção
aos mercados dinâmicos constituídos pela Área de Livre Comércio da América do
Norte (Nafta) e o Mercosul, informa o relatório. Desde já, 50 mil empregos
dependeriam diretamente dos investimentos chineses na economia real
latino-americana.
Por que escolher a
América Latina como potencial “plataforma extraterritorial”? O setor de
eletrônica oferece uma imagem emblemática dessa estratégia. Segundo a Cepal,
três fatores explicam a atração exercida pela América Latina sobre os
investidores chineses: “1. A demanda interna (chinesa) é fragilizada pela
concorrência no próprio território nacional; os lucros diminuíram, levando os
empreendedores do setor a buscar novos mercados na América Latina, onde uma
classe média emergente está em expansão. 2. Diversos países da América Latina
passaram a adotar medidas antidumping contra produtos fabricadas na China.
Estabelecer uma unidade de produção na região pode ajudar os empresários
chineses a atenuar os conflitos comerciais. 3. Os empresários chineses não são
atualmente capazes de estabelecer unidades de produção nos países
desenvolvidos; esta é a razão por que a América Latina e a África tornaram-se
zonas de destino importantes para seus IDE.”
Por sua vez, os IDE
latino-americanos na China – e portanto a inserção das empresa da região na
economia produtiva no país – continuam muito marginais. Os sete países que mais
investem na China (Argentina, Brasil, Chile, México, e em menor medida,
Colômia, Peru e Venezuela) contribuem com menos de 0,1% do total de IDE naquele
país. Isso representa um montante acumulado de apenas 70 a 80 milhões de
dólares…
Qual o retrato da
relação comercial entre entre a América Latina e a Ásia? Em 2009, o volume do
comércio bilateral entre as duas regiões elevou-se a 120 bilhões de dólares. As
exportações latino-americanas (largamente constituídas por matérias-primas e
produtos primários) para a Ásia representavam um total de 103 bilhões de
dólares, ou 15% do total de exportações da região. Por sua vez, o mercado
norte-americano recebia 42% das exportações latino-americanas e a União
Europeia, 14%.
Vale notar que a
China absorve quase a metade das exportações latino-americanas para a Ásia.
Segundo a Cepal, o Império do Meio poderá, tornar-se, já em 2014, o segundo
mercado mais importante para as exportações da região, desbancando a União
Europeia. No caso do Brasil, a Ásia converteu-se, já no primeiro semestre de
2012, no principal destino das exportações – 27,8% do total. A China, sozinha,
importou no período 14,3% das vendas externas do país e se tornou seu principal
parceiro comercial.
Como parte deste
mesmo movimento, o perfil geral do comércio entre a América Latina e a Ásia
modificou-se na última década. A China ultrapassou o Japão, como principal
parceiro asiático dos países latino-americanos; e agora, os seis países membros
da Associação das Nações do Sudeste da Ásia (Asean) [Filipinas, Indonésia,
Malásia, Singapura, Tailândia e Vietnã] disputam com a Coreia do Sul o lugar de
terceiro parceiro.
O comércio
sino-latino-americano é marcado por sua natureza desequilibrada. Os países
latino-americanos são essencialmente exportadores de produtos primários e
matérias-primas de baixo valor agregado (soja, ferro, cobre, petróleo etc.),
enquanto a China exporta seus produtos manufaturados (têxteis, papel,
automóveis, produtos eletrônicos e tecnológicos etc.).
A China tornou-se
um mercado de exportação chave para seis países: Argentina, Brasil, Chile,
Costa Rica, Cuba e Peru. Entre 2005 e 2008, cinco países latino-americanos
eram, sozinhos, responsáveis por 86% das exportações da região para a China:
Brasil (33%), Chile (25%3), Argentina (12%), México (9%), Peru
(7%).
Ao mesmo tempo,
Argentina, Brasil, Chile, México, República Dominicana, Paraguai e Peru4 tornaram-se mais dependentes da
China para suas importações. Entre 2000 e 2009, a parcela chinesa no total das
importações argentinas passou de 4,6% para 12,4% (as importações provenientes
dos Estados Unidos recuaram, no mesmo período, de 18,9% para 13,2% do total; e
as europeias, de 23,5% para 16,8%). No Brasil, a tendência é a mesma: suas
importações da China representam 15,2% das compras externas totais (eram 2,2%
em 2000), enquanto que as importações provenientes dos Estados Unidos passaram
de 23,3% para 14,5%. No México, apenas 2,2% do total importado vinha da China,
em 2000; mas a taxa subiu para 13,9% em 2009. Ao mesmo tempo – e isso é
histórico – a parcela das importações mexicanas provenientes dos Estados Unidos
despencou de 71,2% para 48,1% e a da União Europeia, de 8,4% a 11,7%. Em
valores, o México é o principal importador de produtos manufaturados chineses.
Ela garante 48% do total de compras provenientes da China na região, seguida
pelo Brasil (20%), Argentina e Chile (6% para cada um).
A nova estratégia
de expansão da China na América Latina é facilitada pelas economias mais
dinâmicas do subcontinente. Estas necessitam do mercado chinês para suas
exportações de matérias-primas. É o caso especialmente da Argentina e do Brasil
que, contrariamente ao México e aos Estados Unidos, reconheceram a China como
“economia de mercado”.
A estratégia de
Beijing baseia-se também na busca de assinatura de acordos de livre comércio.
Entre 2006 e 2010, a China assinou três: com o Chile, o Peru e a Costa Rica. Os
planos envolvem ainda estabelecimento de acordos de cooperação entre Estados,
notadamente no setor petrolífero. Em 2009, o Banco de Desenvolvimento da China
(BDC) abriu uma linha de crédito de 10 bilhões de dólares para a Petrobras, em
troca da garantia de fornecimento de petróleo bruto. Além disso, a petroleira
chinesa Sinopec adquiriu, em 2010, 40% do capital da filial brasileira da
Repsol, a principal exploradora de petróleo espanhola. Ao mesmo tempo, China e
Venezuela estabeleceram um Fundo de Desenvolvimento Comum que hoje alcança 12
bilhões de dólares. Os dois países estão igualmente ligados por um acordo que
prevê uma troca de produtos chineses por petróleo venezuelano. O Equador firmou
um contrato semelhante, envolvendo 1 bilhão de dólares.
A China tornou-se
membro oficial do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com objetivo
de converter a instituição num grande instrumento da cooperação financeira
sino-latino-americana. Beijing também é parte do Banco de Desenvolvimento do
Caribe (BDC).
Enfim, as
autoridades chinesas contam com uma política diplomática ofensiva e dispõem de
21 embaixadas e seis consulados na região. Somente 15 desses 21 países dispõem
de representação diplomática na China.
O relatório da
Cepal conclui: “a taxa de crescimento econômico elevada (na China) e o processo
de reconversão industrial das regiões rurais do país engendram um aumento da
necessidade de infraestrutura e energia, assim como de alimentos. Essa situação
é um poderoso motivo de aproximação com os países latino-americanos
exportadores de recursos naturais. A China tem, igualmente, necessidade de
assegurar o livre acesso de suas exportações na região e de ser aí reconhecida
como “economia de mercado” (…). Nesse quadro, ela deve abrir um espaço para a
assinatura de acordos comerciais na América Latina, a fim de garantir acesso
preferencial a seus produtos nesse mercado. E isso de maneira a não perder em
competitividade face aos produtos norte-americanos – resultado de acordos de
livre comércio bilateral assinados por esses últimos na região – ou europeus,
antecipando negociações da União Europeia com o Mercosul e a Comunidade Andina
de Nações (CAN).”
Na reconfiguração
constante do comércio internacional, em meio à globalização econômica e
financeira, o comércio entre países do chamado Sul Global intensifica-se e
representa parte cada vez mais significativa das trocas comerciais no planeta.
O comércio Sul-Sul representava 6% do comércio internacional em 1985, para
alcançar 24% em 2010. Desse total, 85% das trocas ocorrem entre os próprios
países asiáticos, ou entre eles e outros países do Sul.
Embora participe
desse importante movimento global, a América Latina continua largamente
prisioneira de uma integração à economia internacional pelo aumento da
“primarização” de sua economia. Sua relação com a China confirma essa
tendência.
*Christophe Ventura é cientista político e integrante da rede internacional Memória
das Lutas — Medelu (www.medelu.org)
1 “China e América Latina / Caribe –
Rumo a uma relação econômica e comercial estratégica”, Osvaldo Rosales e Mikio
Kuwayama, Cepal, 2012 (http://www.eclac.org/publicaciones/xml/9/46259/China_America_Latina_relacion_economica_comercial.pdf)
2 Segundo o fundo de investimento A Capital,
citado pelo Le Monde(9/6/2012), os investimentos diretos externos da China
somariam 68 bilhões de dólares em 2011. 43% deles seriam dirigidos à América
Latina, o que tornaria a região o primeiro destino de tais capitais. O fundo
estima que a soma poderia chegar a 800 bilhões de dólares em 2016.
3 O couro tornou-se o principal produto
de exportação chileno. A China absorve 55% das exportações de couro
latino-americanas, das quais 30% provêm do Chile
4 Além de principal parceiro comercial
do Brasil e do Chile, a China é o segundo parceiro da Argentina e Peru. Ler,
sobre o assunto, texto do autor,
noLe Monde Diplomatique francês
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