Não se deve
subestimar o efeito irradiador da endogamia entre a ortodoxia dos
costumes e a desregulação da economia. Embora declinante, a força
simbólica do Vaticano jogou e joga um papel significativo na
engrenagem ideológica que sustenta o alicerce de uma unificação
européia estruturada e comandada pela lógica mercadista. As mazelas
delinqüentes cometidas no interior do Banco do Vaticano ilustram a
funcionalidade desse matrimônio de opostos complementares. Sua
força demolidora difundiu-se mundo afora na negação do humanismo
e na desmoralização do Estado do Bem Estar Social pelos interesses
sabidos. Tucanos brasileiros farejaram os ares bentos: em 2010, Serra defendia
a desregulação do pré-sal e aliava-se ao bispo da Opus Dei, Dom Luiz
Bergonzini, para demonizar a 'Dilma aborteira'. Nada se faz
sem um pouco de fé e algumas gotas de água benta. Para ser livre e
desregulado o mercado precisa de lubrificantes imaginários. A sintonia
entre Bento XVI e Angela Merkel, por exemplo, escapa às
análises convencionais da renúncia do papa. Mas foi premonitoriamente destacada
em artigo escrito pelo professor José Luís Fiori para Carta Maior, em junho de
2009. Três anos depois, a história apertou o passo. O texto
preserva sua atualidade. Como se aguardasse os acontecimentos para
reiterar a aderência de um intercurso histórico.(Leia a íntegra
nesta pág.; e também o Especial 'A História Secreta da Renúncia') - Carta
Maior; Domingo, 17/02/2013
Entre Berlim e o
Vaticano
No mesmo ano em que
foi eleita na Alemanha a democrata-cristão Angela Merkel, em 2005, o cardeal
alemão conservador Joseph Ratzinger tornou-se Papa, e, desde então, apesar de
suas “trapalhadas” internacionais, tem tido um papel decisivo na luta ideológica
dentro da União Européia. Defendendo a necessidade de a Europa voltar às suas
raízes cristãs, para recuperar sua identidade e liderança mundial. Daí sua
crítica ao Islã e à entrada da Turquia na UE. A análise é de José Luís Fiori.
José Luís Fiori* - Carta Maior
“Por Deus e contra
a Turquia”
(Lema da democracia-cristã alemã na campanha para o Parlamento Europeu)
Pode parecer estranho, mas a crise econômica mundial não teve um papel
importante na vitória das forças conservadoras, nas eleições para o Parlamento
Europeu, do dia 7 de junho de 2009. Seu resultado final consolidou tendências
que já vinham de antes da crise, e apontavam já faz tempo para o fortalecimento
da direita, em toda a Europa, incluindo a Grã Bretanha e a Espanha, onde os
conservadores ganharam as eleições européias, mas permanecem na oposição nos
seus países.
Por outro lado, o comentado crescimento da “extrema-direita” só se deu em
alguns poucos países pequenos e inexpressivos, do ponto de vista eleitoral,
dentro da UE. Da mesma forma, a derrota dos social-democratas e o declínio da
esquerda já vinha de antes, e não reverteu nestas últimas eleições por uma
razão muito simples: os social-democratas são parte essencial da própria crise.
Relembrando uma história conhecida: a social-democracia européia abandonou a
“utopia” socialista, depois da II Guerra Mundial, e só se converteu às teses e
políticas keynesianas no final da década de 50.
Mas, em seguida, a partir dos anos 70, aderiu às novas teses e políticas
neoliberais hegemônicas até o início do século XXI. E até hoje, na burocracia
de Bruxelas, e dentro do Banco Central Europeu, são os social-democratas e os
socialistas que em geral defendem com mais entusiasmo a ortodoxia
macroeconômica e liberal.
Neste momento, por exemplo, o ministro das Finanças alemão, o social-democrata
Peer Steinbruech, é considerado por todos como a autoridade financeira mais
ortodoxa e radical nos governos das grandes potências capitalistas. Além disso,
os social-democratas e socialistas europeus não participaram da origem do
projeto de integração européia, e nunca conseguiram formular uma visão
consensual do projeto de unificação.
Portanto, nestas últimas eleições parlamentares, os social-democratas e
socialistas europeus não podiam ser vistos como uma alternativa frente à crise
do modelo neoliberal, porque eles são de fato uma parte essencial da própria
crise, e além disto não dispõem de nenhuma proposta específica para os impasses
atuais da União Européia.
Deve se ter em conta, entretanto, que se este resultado eleitoral era
previsível, ela também não anuncia nenhuma grande novidade pelo lado
conservador. Em primeiro lugar, porque ela não altera a correlação das forças
fundamentais que já existia dentro do Parlamento Europeu. E, em segundo lugar,
porque a multiplicação dos votos e das organizações conservadoras aumentou em
vez de diminuir as divisões que já existiam dentro da direita, e dentro dos 27
países que compõem a UE.
Quase todos se opõem à entrada da Turquia na UE querem acabar com a dependência
energética da Rússia, e defendem a repressão dos imigrantes islâmicos. Mas, ao
mesmo tempo, a maior parte da “extrema-direita” é contra a própria unificação
européia, e mesmo os conservadores ingleses são quase todos “eurocéticos”.
Além disso, não existe neste momento um acordo sobre a política econômica para
enfrentar a crise e se mantém as principais divergências estratégias entre os
atuais governantes conservadores. Ou seja, as forças de direita que ganharam as
últimas eleições parecem uma Torre de Babel mais confusa como do que a Babel
dos social-democratas, e de toda a esquerda continental.
Mas, apesar de toda esta confusão, a Europa vai seguindo lentamente uma trilha
que não aparece aos olhos do cidadão comum. O projeto de unificação européia
foi concebido originalmente, no início dos anos 50, em grande medida, para
incluir e desmilitarizar a Alemanha e para conter a União Soviética, sob a
batuta franco-americana. Mas, depois de 1991, este projeto virou de ponta
cabeça, com a reunificação da Alemanha e o fim da URSS.
A partir daí, a Alemanha se aproximou da nova Rússia, e estendeu sua influência
a toda a Europa Central, alargando sua liderança econômica dentro da UE. Por
isso, quando a primeira-ministra Angela Merkel foi eleita, em 2005, pôde montar
um governo de “união nacional” com os social-democratas, fortalecendo o governo
e o Estado alemão, para seu trabalho contínuo e silencioso em favor da
aprovação da nova Constituição européia, o Tratado de Lisboa, e pelo controle
político de todos os novos estados que se associaram à UE.
Mais recentemente, a Alemanha assumiu a liderança das posições ortodoxas, dentro
da Europa, transformando-se numa referência mundial na luta contra o
intervencionismo estatal e contra qualquer tipo de ativismo do Banco Central
Europeu. Decidiu absorver a sua própria crise, aceitando uma forte recessão, e
transferindo para os grandes países importadores, a responsabilidade pela
reativação da economia mundial.
Além disso, vem utilizando o FMI, para socorrer as economias da Europa Central,
dependentes da sua própria economia. Por onde se olhe, as evidências são cada
vez maiores de que Alemanha da Sra. Merkel está tentando reproduzir a
estratégia da Prússia, a sua ante-passada do século XIX.
Em particular, a maneira em que a Prússia conseguiu expandir o seu poder,
integrando na sua órbita de influência, um por um, todos os 36 Estados e quatro
cidades livres da Confederação Germânica criada pelo Congresso de Viena de
1815, começando com a criação de uma União Aduaneira - o Zollverein, em 1834 -
e culminando com a formação do Estado Alemão, em 1871. Este novo projeto alemão
do século XXI, entretanto, traz uma grande novidade ideológica com relação ao
seu “modelo original” do século XIX.
No mesmo ano em que foi eleita a democrata-cristão Angela Merkel, o cardeal
alemão conservador Joseph Ratzinger foi eleito Papa, e desde então, apesar de
suas “trapalhadas” internacionais, tem tido um papel decisivo na luta
ideológica dentro da EU. Defendendo a necessidade de a Europa voltar às suas
raízes cristãs, para recuperar sua identidade, sua força e sua liderança
mundial. Daí sua crítica ao Islã e à entrada da Turquia na UE, e sua defesa da
cristianização do projeto europeu, numa sintonia ideológica e religiosa cada
vez mais fina, entre Berlim e o Vaticano.
*José Luís Fiori, professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ,
integra o grupo de pesquisa CNPq/UFRJ Poder Global. Este texto foi publicado originalmente em
junho de 2009.
Fotos: Stampa Libera
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