Manuel Maria Carrilho
– Diário de Notícias, opinião
Viragem ou miragem?
O ano começou com os prognósticos mais sombrios, mas de repente tudo parece ter
mudado, com as bolsas em papel de destaque a darem sinais de um inesperado
otimismo, que num ápice se tornou eufórico.
Primeiro foram os
Estados Unidos a fazerem a festa por terem escapado à falésia fiscal que, sem
acordo entre democratas e republicanos sobre o teto da dívida, automaticamente
imporia drás- ticos aumentos de impostos e cortes de despesa. E na verdade não
chegaram a acordo nenhum, apenas adiaram o problema por dois meses...
Depois foi a
Europa, com o avanço das medidas preconizadas pelo presidente do BCE, Mario
Draghi, a darem finalmente alguma margem de manobra aos países mais aflitos com
a ineficácia dos planos de austeridade dos últimos anos. Foi assim que, depois
da conveniente moratória de seis meses à Grécia, surgiu o amparo no
"regresso aos mercados" da Irlanda e de Portugal, curiosamente no
mesmo dia em que o Eurostat nos informava de que a dívida pública portuguesa
atingia um novo recorde, com 120,3% do PIB. Um detalhe, que não parece
preocupar ninguém...
Obama também deu
uma ajuda, ao adotar no começo do segundo mandato, em que não tem maioria, um
tom e um programa reformistas que infelizmente não assumiu no primeiro, quando
tinha uma expressiva maioria, bem como uma expectativa e um apoio populares
imensos. E a finança continua fora dos seus principais alvos...
Nesta viragem para
o otimismo - que nem David Cameron e o seu in/out Europa, conseguiu perturbar -
conta naturalmente muito o calendário eleitoral da chanceler Angela Merkel, que
quer chegar às eleições de setembro com a imagem de grande salvadora da Zona
Euro: a Grécia não saiu do euro, Portugal e Irlanda estão no "bom"
caminho, o futuro da Zona Euro está na sua germanização...
Mas há mais, nesta
viragem que mais parece uma miragem. Há, por um lado, a necessidade de aliviar
a saturação das pessoas, que ameaça de um modo difuso (mas perigoso) todos os
governos. Mas há também, por outro lado, os cálculos dos traders, que sabem
como ninguém acompanhar os riscos de qualquer colapso financeiro com espirais
de um otimismo hiperbólico. Basta olhar para o que se passou no começo da
década passada, primeiro com a bolha Internet, e depois com a do crédito
subprime, para nos lembramos do que é capaz a famosa "exuberância
irracional" - Alan Greenspan dixit - dos mercados. E ela aí está, de
volta!
Entretanto, as
medidas impulsionadas por Mario Draghi consistiram sobretudo numa talentosa
forma de ganhar tempo, elas adiam, mais do que resolvem, os problemas da Zona
Euro: o desemprego aumentou nos últimos dois anos de 17 para quase 19 milhões
de pessoas, já atinge na Zona Euro os 12%, cavando entre o Norte e o Sul da
Europa mais uma divergência tremenda, a juntar-se às outras. E tudo indica que
a recessão vai prolongar-se num quadro global que - da China ao Brasil - também
é preocupante, mas em que a Europa faz, em termos de crescimento, a pior
figura.
O que acontece
porque a União Europeia continua num profundo impasse, a fingir ora que quer
ora que faz, a iludir-se com medidas burocráticas ou tecnocráticas, contornando
sempre a natureza eminentemente política dos problemas que enfrenta e que a
paralisam.
É este facto que
provoca a desorientação e a incapacidade da Europa, cujo destino parece hoje
estar inteiramente nas mãos de uma única instituição, o Banco Central Europeu,
que vai atuando entre múltiplas pressões contraditórias e várias solicitações
de urgência, mas sempre sem verdadeira legitimidade política.
Por isso, por trás
da mensagem que "tudo mudou" neste mês de janeiro, pouco parece na
verdade ter mudado. Por um lado, os planos de austeridade continuam no seu
fanatismo destruidor. O crescimento continua a ser uma conversa tão fiada como
adiada. O mito da competitividade absoluta continua a alimentar todos os
desvarios. A litania das exportações continua a ignorar, como recentemente
mostrou B. R. Mandel (num estudo da Federal Reserve Bank of New York), que elas
acabam sempre por acompanhar o PIB.
Por outro lado, a
"obnubilação industrial" (a expressão é de Charles Wyplosz) faz
estragos e aumenta a desorientação por toda a União Europeia, sobretudo numa
classe política medíocre que pouco olha para o mundo, e nada aprende com a
história. E a Europa deixa a França sozinha no Mali, confirmando o imprudente
abandono de qualquer preocupação com a sua defesa, tornando-se mesmo a única
região do mundo onde os orçamentos militares estão a diminuir!
Nada disto é de bom
augúrio, mas não vamos ficar por aqui. Nomeadamente porque a viragem otimista
colide com um dado péssimo, que é o da persistência da subida do euro, que se
valorizou nos últimos seis meses 10% em relação ao dólar e 25% em relação ao
iene japonês, o que agrava os problemas da economia europeia.
São assim premiadas
as estratégias de desvalorização competitiva dos Estados Unidos e do Japão,
sempre apoiadas numa criação monetária torrencial, indiferentes à dívida que,
em termos totais, já ultrapassou no Japão os 200% e nos Estados Unidos os 350%
dos respetivos PIB. O ano promete!
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