Rui Peralta, Luanda
I - África é
geralmente vista no ocidente como um caso perdido, um continente dependente das
dádivas do ocidente. O fardo do homem branco, ocidental, consiste na sua
capacidade benemérita e acção paciente perante um continente cuja História
recente está recheada de guerras, fomes, crianças famintas e abandonadas. Por
sua vez a burguesia africana (emergente em muitos casos) e as elites
administrativas que pululam por este continente desde a dominação colonial
(quer sejam tradicionais, ou criadas pelas politicas administrativas
colonialistas, ou as ultimas, criadas pelas dinâmicas profundas e complexas das
independências), pintam o retrato ao contrário, aborrecidas com a atitude dos
seus parceiros ocidentais.
De facto a
realidade não é como a pintam os meios de comunicação do Ocidente e muito menos
como a descrevem (num colorido esbatido, cheio de figuras da fauna e da flora
locais) os boys do black capitalism (os continuadores da decrépita negritude
senghorista a soldo do neocolonialismo francês). A verdade é que o Ocidente
habituou-se às dádivas africanas e o capitalismo desenvolveu-se em muito á
conta destas dádivas. Foram, no passado, os territórios imensos, os escravos,
as matérias-primas. Continua, no presente, as matérias-primas, os recursos
naturais e…os fluxos ilícitos de recursos financeiros, que chegam á banca
ocidental através das cadeias de paraísos fiscais, para além do mecanismo
extorsionário das dívidas provenientes dos empréstimos às elites dominantes
(que geralmente pedem dinheiro em nome do povo).
Casos como o de
Mobutu, que foi colocado no poder pelos governos ocidentais e que utilizava as
contas privadas nos bancos dos que o colocaram no poder, para se apropriar da
riqueza publica e que levou a RDC (na altura o Zaire), a pagar juros
exorbitantes por uma dívida que continua em crescimento exponencial, continuam
presentes na maioria do continente. Não com aquela forma sanguinária e brutal
que caracterizava o gutural déspota congolês (um fascistoide que apregoava as
mitologias da autenticidade), nada disso. Hoje estamos na presença de
tecnocratas bem cheirosos, que lá vestem umas coisas a que chamam vestes
africanas, (para consumo interno) mas que surgem nos fóruns internacionais
vestidos pelos melhores alfaiates do ocidente (e também do oriente, agora que a
China tem um style moderno e eficaz) e que são responsáveis pela extracção de
20 mil milhões de USD por ano, que o continente africano tem de pagar por
serviço de dívida.
Outra forma de
dádiva africana ao ocidente é o saque de minerais. Países como a RDC são
arrasados por milícias armadas que roubam os recursos minerais do país e os
vendem, a preços inferiores aos praticados no mercado, a companhias ocidentais.
A maior parte destas milícias são dirigidas por países vizinhos (Uganda,
Ruanda, Burundi) patrocinados pelo Ocidente.
Por fim, mas de
extrema importância, os preços de miséria das matérias-primas africanas e da
sua mão-de-obra. O facto dessa mão-de-obra e desses recursos continuarem
baratos depende, essencialmente, de uma coisa: Assegurar que o desenvolvimento
do continente não seja sustentável e que o continente não tenha um lugar de
preponderância na globalização. Para o capitalismo o lugar do continente é na
periferia e na ordem global capitalista aí tem de continuar (seja na concepção
capitalista ocidental, seja na concepção capitalista BRICS), mais ou menos
periférico, mas sempre periférico.
II - Os arautos do
capitalismo africano defendem uma tese interessante, não por ser uma tese
inteligente e original (a inteligência está nos antípodas e a originalidade é
plagiada) mas porque é um quase-manifesto (ou um memorandum de intenções?) dos
sectores mais avançados das burguesias nacionais africanas (uma espécie de
burguesia africana, à imagem dos novos sectores da burguesia europeia – a
burguesia U.E. – e da burguesia BRICS, as chamadas burguesias integradas, por
acção dos monopólios generalizados).
Reza assim a tese:
Se África for mais próspera, os salários aumentam e o desenvolvimento
tecnológico agregará valor às suas matérias-primas, mediante o processo de
exportação de produtos acabados ou semiacabados. Pois… É que isto, ao fim e ao
cabo, nem é uma tese! É uma verdade do Senhor La Palisse! A questão não é essa!
As questões são: (1) Existe uma via de desenvolvimento capitalista que assegure
a soberania nacional e popular dos Estados Africanos? (2) Será que a via
capitalista de desenvolvimento representa a real integração dos mercados
africanos? (3) Será que a via de desenvolvimento capitalista representará uma
real capacidade de inserção do continente africano no contexto económico
global?
A resposta às três
perguntas é invariável: Não!
III - Sendo a
resposta às três questões um redundante Não, passemos à sua justificação. Não
vou justificar por partes mas pelo todo que as três questões implicam: A via
capitalista de desenvolvimento.
Quando a União
Africana foi estabelecida em 2002, algumas vozes esperançadas relançaram uma
nova fase do pan-africanismo. Seria muito mais difícil explorar um continente
integrado. E se em África os ventos traziam alguma esperança, os estrategas
ocidentais preocuparam-se com os aspectos financeiros e militares da unidade
africana. Ao nível financeiro, os planos de formar um Banco Central Africano e
a política de criar uma só moeda africana, assente no padrão ouro,
constituiriam uma ameaça á capacidade dos USA e U.E. de explorar o continente.
Se todo o comércio africano fosse realizado na nova realidade monetária, isso
significaria que o ocidente teria que pagar efectivamente em ouro, os recursos
africanos, em vez de pagar, como acontece agora, em libras esterlinas, euros ou
USD.
A União Africana
propunha ainda a criação do Banco Africano de Investimentos e o Fundo Monetário
Africano, o que poderia debilitar enormemente o FMI e a sua capacidade de
manipular as politicas económicas africanas através do monopólio das finanças.
O Fundo Monetário Africano com um capital inicial de 42 mil milhões de USD
suplantaria as actividades africanas do FMI, que com apenas 25 mil milhões de
USD colocaram o continente de joelhos.
Paralelamente a
essas tendências financeiras tiveram lugar acções na frente militar. No ano de
2004, em Sirte, Líbia foi elaborada uma Carta Comum Africana de Defesa e
Segurança, que estipulava a criação de uma Força de Defesa Africana, assente no
princípio de que “qualquer ataque a um país africano será considerado um ataque
ao Continente, no seu conjunto.”
Em jogo estava
muito e o ocidente é especialista em Jogos Africanos.
IV - A resposta do
ocidente a estes reptos foi imediata. A criação das Forças Armadas Africanas
representava para o continente africano uma política dúbia. Poderiam ser,
efectivamente, uma força genuína pela defesa do continente contra o
imperialismo, ou apenas mais uma força manipulada, subjugada a uma cadeia de
comando ocidental. E o ocidente jogou neste duplo sentido.
Um livro branco
norte-americano, publicado em 2002 pelo IGAPP (Grupo de Iniciativa de Politica
Petrolífera Africana) recomendava um novo e vigoroso enfoque da cooperação
militar norte-americana em África. Propunha estruturas regionais (Africa
Ocidental, Africa Oriental, Magreb, etc.) sob um comando unificado. Assim em
2008 nasce o AFRICOM. Os custos de guerra das intervenções no Iraque e no Afeganistão
foram demasiado elevados. Essa experiência adquirida levou a aplicar o
princípio base do AFRICOM: os soldados africanos como carne para canhão. A
AFRICOM seria o organismo coordenador da subjugação dos exércitos africanos,
sob uma cadeia de comando ocidental. Transformar os exércitos Africanos em
testa-de-ferro, eis o objectivo do imperialismo.
A UA rechaçou,
inicialmente, este plano, negando qualquer presença militar norte-americana em
solo africano. Esta atitude obrigou o AFRICOM a estabelecer-se em Estugarda, na
Alemanha. Em 2009 a Líbia – defensor incondicional da unidade africana, das
políticas anti-imperialistas e principal financiador da UA – assumiu a
liderança da União Africana, propondo um processo de integração acelerado, que
incluía um só exército, moeda única e um passaporte único. A continuação
pertence á História e é do conhecimento de todos.
A OTAN reduziu a
Líbia a um estado falido e devastado pela guerra, pelos raptos e pela tortura –
um estado destroçado, como o Iraque, o Afeganistão e o processo de agressão em
curso na Síria – enquanto os restantes estados africanos viravam o rosto para o
lado, assobiando e murmurando por entre os dentes. A Nigéria, o Gabão e África
do Sul votaram a favor da intervenção militar e a China apressou-se a
reconhecer o novo (des)governo líbio imposto pela OTAN. A posição da Africa do
Sul e da China representava a duplicidade do capitalismo BRICS, cujo objectivo
em relação a Africa é similar ao do Ocidente: manter o continente na periferia.
A África do Sul depois de dado o seu apoio, “lamentou” a intervenção e teceu
críticas á OTAN. Mas as lágrimas de crocodilo não enchem lagoas. Ao projecto
real e efectivo de unidade africana, sobreviveu apenas o de uma África
lambe-botas.
Esta é uma História
que os povos africanos conhecem desde longa data. Já a viram demasiadas vezes,
mesmo durante as lutas de libertação nacional contra o colonialismo. O exemplo
de Lumumba vive na memória dos povos, assim como na sua memória continuam
inesquecíveis os traidores sanguinários que participaram ao lado do
imperialismo no assassinato de Lumumba.
V - A eliminação da
Líbia (figurada na execução de Kadhafi) foi um golpe fatal na pedra base da
segurança da região Sahel – Sahara. Nesta região a Líbia liderava um sistema
transnacional de segurança que utilizava uma mistura hábil de força, ideologia
e negociação, impedindo o avanço do terrorismo salafista. Realizava operações
para impedir o fluxo de combatentes islâmicos estrangeiros, controlava
rigorosamente as entradas aéreas e terrestres, cooperava com os estados
vizinhos no controlo fronteiriço e negociou com os Tuaregues uma série de
acordos no âmbito das políticas sociais e no apoio financeiro para o
desenvolvimento das suas áreas, em troca do abandono do contrabando de armas e das
suas aspirações separatistas, servindo de mediador entre os tuaregues e os
governos do Mali, Chade, Níger e Argélia.
A Comunidade de
Estados do Sahel-Sahara (CEN-SAD) foi uma organização criada em 1998, sob
proposta da Líbia, que preconizava o livre comércio, o livre movimento de
pessoas e o desenvolvimento regional. A CEN-SAD estava baseada em Trípoli e
desempenhou um importante papel no combate ao terrorismo salafista, assim como
no conflito entre a Etiópia e a Eritreia e a negociação de uma solução para os
conflitos internos do Chade.
A efectividade
deste sistema de segurança regional foi um duro golpe para a hegemonia
ocidental em África. Perante a CEN-SAD as milícias salafistas não poderiam ser
utilizadas para o efeito com que foram criadas: justificar a agressão e a
invasão desta região por parte do Ocidente para salvar os “pobres e indefesos
nativos” (sempre o fardo do homem branco). As milícias salafistas já tinham
sido utilizadas em acções de desestabilização na Rússia e na ex-Jugoslávia e
voltariam a ser usadas mais tarde na Líbia e actualmente na agressão á Síria.
A resposta dos USA
foi a TSCTP (siglas em inglês para a Cooperação Trans - Sahara de Contra
Terrorismo), enquanto a OTAN equipava os salafistas. Com a Líbia destroçada a
CEN-SAD capitulou e a próxima vítima foi o Mali.
VI - Tal como a via
de Damasco é a mais directa para chegar a Teerão, a desestabilização e invasão
do Mali por parte da França, é o caminho em falta para assegurar o cerco a
Argel e provocar uma clareira de desestabilização na região. A Argélia perdeu
cerca de 200 mil cidadãos numa mortífera guerra contra os fascistas islâmicos e
encontra-se agora cercada pelas milícias salafistas, fortemente armadas e
equipadas, nas fronteiras com a Líbia e com o Mali.
Após as Primaveras
Árabes que proporcionaram um rejuvenescimento das elites egípcias e tunisinas,
abrindo as já escancaradas portas das suas economias laceradas pela corrupção e
após a fragmentação da Líbia, a Argélia é o único estado governado por um
partido anticolonial, que conduziu a bom termo a guerra de libertação nacional
contra o colonialismo francês. É por outro lado um país marcado pelo sua
atitude independente face á Europa e a África. Na frente africana a Argélia
apoia fortemente a União Africana, contribuindo com 15% do seu orçamento geral
de estado para a UA e contribuiu com 16 mil milhões de USD para o
estabelecimento do Fundo Monetário Africano, sendo o seu maior contribuinte.
No seu
relacionamento com a Europa a Argélia negou-se a jogar o papel do subordinado,
sendo com a Síria, os únicos estados que na Liga Árabe votaram contra a
agressão á Líbia, tendo a Argélia oferecido refúgio a familiares de Kadhafi.
Mas para o Ocidente o mais preocupante é o facto da Argélia, em conjunto com a
Venezuela e o Irão, ser um dos falcões da OPEC, comprometido nas negociações
duras pelos seus recursos naturais.
Segundo um artigo
recente (e desesperado) do Financial Times foi “imposto” pela Argélia,
Venezuela e Irão “um nacionalismo dos recursos” prosseguindo depois na vasta prosa
neoliberal sobre os impostos e a burocracia, acusando a estatal argelina
SONATRACH de “intimidar” as pobres multinacionais petrolíferas, obrigando-as a
uma parceira “vexatória” e acusa o estado argelino de ter implementado em 2006 “um
controverso imposto sobre benefícios extraordinários”. No mesmo artigo a Líbia
era condenada pela mesma acusação: “nacionalismo de recursos” o que parece ser
um crime grave e de lesa-majestade para os leitores do Financial Times.
As exportações de
petróleo da Argélia ascendem a mais de 70 mil milhões de USD / ano e grande
parte destes ingressos são utilizados na saúde e habitação. Esta preocupação
com os gastos sociais preocupa o Ocidente. A STRATFOR uma empresa de informação
e contrainteligência (na verdadeira acepção da palavra, uma vez que a
inteligência encontra-se a anos-luz destes cavalheiros da sorte) avisava que “a
participação estrangeira na Argélia sofreu uma quebra devido às politicas
protecionistas impostas pelo governo argelino” considerando mais á frente que a
dependência europeia do gás argelino, à medida que se esgotam as reservas do
Mar do Norte, “torna a Argélia num imperativo económico e estratégico para a
U.E.” Algumas linhas depois os cabeçudos contra inteligentes deste tratado da
contra a inteligência que é o STRATFOR, avisam os governos europeus para o
perigo que representa um “governo protecionista na Argélia.”
VII - A apropriação
e a reapropriação dos recursos só será uma realidade com a socialização da
produção. É aqui que reside o cerne da questão. Não são os paliativos inocentes
da distribuição mais justa (o que implica que a produção e os recurso estão nas
mãos dos outros) ou as conversas fiadas sobre a responsabilidade social do
capital, que garantem um crescimento sustentável e politicas socias amplas,
necessárias aos povos de África. Ou seja não é o desenvolvimento capitalista,
mesmo que gerido de forma responsável (?) que irá garantir a soberania nacional
e popular dos estados africanos, nem muito menos a economia social de mercado
que irá permitir realizar o processo libertador da unidade africana.
É necessário
reassumir uma efectiva soberania popular, aumentando a participação das mais
amplas camadas da população no todo político, social e económico. Os estados
africanos não podem permanecer receosos a esta abertura às massas populares e
às políticas efectivas de crescimento e integração, que implicam a participação
directa do povo. Não basta ritualizar o conceito de voto como única expressão
da vontade popular. A soberania popular não é isso! A soberania popular implica
que os trabalhadores e as massas populares africanas participem directamente
nos assuntos dos seus países e na integração do continente. Não serão as
elites, habituadas aos compromissos e às cedências, habituadas a capitular para
manterem os seus privilégios, que estão em condições de iniciar este processo.
É este o ponto de
viragem. Ou realizamos as aspirações populares que estão na base dos movimentos
de libertação nacional do continente, através da reapropriação dos recursos e das
políticas base de desenvolvimento integrado, assentes na rede de educação
pública, nos sistemas públicos de saúde, ambas gratuitas e universais e numa
política real de habitação social e urbanismo, ou seja em políticas objectivas
que representem uma melhoria qualitativa e quantitativa da vida dos povos
africanos e caminhamos no sentido de uma independência assumida e de um uma
autêntica integração do continente, ou caímos na tragédia neocolonial, para a
qual nos arrasta o capitalismo.
E aqui, como em todas
as situações da vida dos Homens, não há meio-termo…
Fontes
Samir Amin; Os
desafios da mundialização; Edições Dinossauro, Lisboa, 2000.
Samir Amin; O
Eurocentrismo. Crítica de uma ideologia; Edições Dinossauro, Lisboa, 1999.
Samir Amin; Classe
et Nation dans l’histoire et la crise contemporaine; Ed. Minuit, Paris, 1979.
Ali Mazrui, The
Africans: A Triple Heritage; BBC Publications, London, 1986.
FMI, Financial African
Reports (Annual), 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2008, 2011 (FMI)
World Bank, African
countries: financial and economic issues. 2009. (World Bank Press, Washington,
2009)
Financial Times;
January, 26, 2011
STRATFOR, News,
August, 2012.
Dan Glazbrock; The
west war against African development continues; 2013, http://www.counterpunch.org/
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