sexta-feira, 15 de março de 2013

ALGUMAS NOTAS SOBRE REFLEXÕES DO CHE

 


Rui Peralta, Luanda
 
I - A criação de outra realidade, partindo da existente - a transformação do mundo - tem como mecanismo inerente á sua orgânica, o espirito critico, fomento da independência de critérios, da capacidade de pensar com a própria cabeça, essência da aprendizagem da escolha e distinção de caminhos, das implicações dessa escolha e dos seus resultados. A transformação implica reflexionar sobre a circunstância em curso, a actuação imediata, os métodos imediatos a aplicar, as etapas a definir e que fins permitem alcançar e a teorização do processo.
 
Consideremos, por exemplo, a ex-URSS. Todos os analistas de todas as correntes têm uma manifesta opinião (não fossem opinion makers) sobre o que aconteceu: saturação, implosão, fragmentação – entre as mais sofisticadas – retorno á realidade, fim do pesadelo e a verticalidade dos mercados – entre as mais imbecis, criadas para mentecaptos, criancinhas da escola secundária e naïfs (e também para alguma, imensa, ”intelectualidade” africana, saudosa do paternalismo colonial e das histórias de embalar dos colonos, ou talvez um mecanismo de compensação, que as leva a substituir o colono pelo mercado, no qual mergulham, qual crente fervoroso mergulha nas águas baptismais).
 
Mas (ao contrário da opinião da maioria) e se a URSS comprometeu o seu futuro, quando converteu a Nova Politica Económica (NEP), como factor permanente? E porque isso aconteceu? Será que a intelligentsia bolchevique esqueceu que a NEP foi uma medida imposta pelas condições de profunda crise interna, dominante após o final da Guerra Civil? Esquecimento não foi, com certeza, mas ausência de sentido critico, de independência de critérios, de pensar com a própria cabeça e falar de sua voz, de certeza.
 
É que no periodo de 1921 / 1922, conforme escreveu o Che, o país passou "a las relaciones de producción que configuran lo que Lenin llamaba capitalismo de estado, pero que en realidad también puede llamarse capitalismo pre monopolista en cuanto al ordenamiento de las relaciones económicas." E continua: “Con la muerte de Lenin se pierde el riquísimo acervo de su pensamiento revolucionario y queda el reflejo de su postrer impulso por el camino de la retirada." (Apuntes críticos a la economía política; Editorial de Ciencias Sociales del Instituto Cubano del Libro)
 
II - Dizem, de imediato, os teólogos da escolástica marxista: mas isso é por em causa todo o edifício soviético! Não, caríssimos filisteus, é por em causa a demagogia e a ausência de espirito crítico, quando se analisa ou lidera um período de transformação, determinado por causas e circunstâncias específicas e particulares, não mecanizadas, geradores de invariáveis infinitas e impensáveis, que colocam em mutação as constantes e os factores evidentes e objectivos.
 
Do Che poderia citar outros exemplos, mas para não ser cansativos vou apenas relembrar dois, de profunda actualidade: A tese escolástica, professada pela cartilha evangélica soviética, das lutas pela independência terem por objectivo a criação de democracias nacionais e a questão da união entre os proletários do mundo, ponto final de todas as declarações proferidas pela nomenklatura.
 
Sobre a primeira respondia o Che: (…) el imperialismo no agoniza, ni siquiera ha aprovechado al máximo sus posibilidades en el momento actual y tiene una gran vitalidad (...) La tendencia es a invertir capitales propios en el aprovechamiento de las materias primas o en la industria ligera de los países dependientes. La aguda competencia en su seno provoca una incesante marea de innovaciones técnicas..." (Apuntes críticos a la economía política; Editorial de Ciencias Sociales del Instituto Cubano del Libro) e quanto á segunda: "Falso de toda falsedad. No hay punto de contacto entre las masas proletarias de los países imperialistas y los dependientes; todo contribuye a separarlos y crear antagonismos entre ellos (...) el oportunismo ha ganado una inmensa capa de la clase obrera de los países imperialistas." Prosseguindo: "La lucha contra la burguesía es condición indispensable de la lucha de liberación, si se quiere arribar a un final irreversiblemente exitoso" (Apuntes críticos a la economía política; Editorial de Ciencias Sociales del Instituto Cubano del Libro)
 
Eis o que é o sentido crítico, a independência de critérios, a capacidade de pensar, a distinção de caminhos, a análise das implicações dessa escolha e o diagnóstico dos seus resultados.
 
III - Ao dogmatismo do período estalinista, sucedeu um pragmatismo vazio e irrealista. A tragédia é que esse fenómeno sucedeu em todos os aspectos da vida, nos países do socialismo real. A superestrutura capitalista influenciou de forma marcante as relações de produção e os conflitos provocados pela cristalização e eternização da NEP resolveram-se a favor da superestrutura. Resultado: Regressou o capitalismo.
 
E se há uma coisa que o capitalismo não admite é o sentido crítico e a independência de critérios. Está fora de questão, a uma sociedade em que predomina o económico, o livre pensamento ou a capacidade de pensar. A alienação consiste na ausência do pensamento e da reflexão crítica. Na democracia, estrutura política do capitalismo, não existem alternativas, mas sim alternâncias, o pensamento é único (liberal, democrático e constitucional, sendo o mercado a única realidade) o estado é sempre de Direito e sempre nação (mesmo quando estamos na presença de estados-mercado, como Singapura) e uma vez deixando de ser necessária a função, o Estado social (mecanismo tao fundamental para a acumulação, como a nação) transforma-se em responsabilidade social e o contracto social, consignado nas Cartas Constitucionais e Magnas Cartas, tornam-se direitos formais.
 
Foi exactamente este mecanismo unidimensional que esteve na base do socialismo real e no erro crasso sobre o prolongamento da NEP, para além do contexto e conjuntura para a qual foi resposta.
 
IV - Ao encerrar-se numa errónea concepção da lei do valor, o socialismo real perdeu o contacto com o mundo exterior. A produtividade global derrotou os projectos socialistas que dependiam do comércio exterior (o que não era o caso da URSS). Instaurou-se uma profunda contradição interna entre os aparelhos centrais e as empresas, que procuravam atingir metas menores, beneficiando de prémios cada vez maiores. Os dirigentes das empresas socialistas converteram-se em charlatães, conhecedores de toda as formas de enganar o aparelho central e esta foi a cultura que prevaleceu. A cultura do engano.
 
Foram criados estímulos materiais, geradores de preconceitos como o mérito, o bom comportamento, o camarada que mais trabalha (que é como quem diz: o tipo que passa mais horas sentado no local de trabalho), enfim, retornou ao aparelho produtivo toda a mitologia da superestrutura capitalista, sendo a praxis socialista minada pelas motivações da produção capitalista. Como o espirito crítico e a capacidade de pensar estavam ausentes, sendo considerados contra procedentes pela nomenklatura, ninguém foi à raiz dos problemas, limitando-se tudo a um sinal afirmativo com a cabeça e a um imenso auditório composto por bate-palmas compassadas e bem orquestradas.
 
Eis o socialismo real em toda a sua pujança!
 
V - Vejamos um outro exemplo: Cuba. A revolução socialista de libertação nacional, triunfante em 1959, revelou-se um evento heróico e transcendente, pelo seu alcance global, por ter estabelecido um poder popular e ter enfrentado as agressões dos USA, mas, também, porque a Revolução Cubana constituiu uma heresia na escolástica socialista e nos dogmas da metafisica soviética. A transformação iniciada em 1959 implica uma História de contradições, conflitos, coexistência e colaboração entre as escolásticas e a praxis revolucionária cubana.
 
Neste longo e complexo processo, Fidel assumiu a liderança, durante a fase inicial da Revolução, executando um papel de responsável máximo e de educador popular. O Che, para além da acumulação de responsabilidades prácticas em diversas áreas, elaborou uma obra teórica de importância fundamental, um monumento intelectual da Revolução Cubana, que pelo seu vasto alcance, revelou-se essencial para a estratégia e para o projecto cubano, até ao presente e com alcance incomensurável para o futuro.
 
A praxis cubana foi gerada no espírito crítico e na capacidade de pensar os problemas próprios e repensar nas soluções e consequências das mesmas. É um espaço de acção e reflexão, onde a crítica e a criatividade são as vigas mestras.
 
VI - No seguimento do espaço socialista gerado pelo sentido crítico e pela capacidade de pensar, originado e prosseguido em Cuba (com todas as contradições inerentes a estes processos, inclusive padecendo de alguns dos males do socialismo real, ficando o homem novo algo aquém do desejado, por exemplo), os processos bolivarianos da Venezuela, Bolívia e Equador, representam a linha de continuidade da praxis cubana. Não no sentido mimético do termo, mas na forma como os problemas são discutidos, pensados e solucionados e na forma como o poder popular faz sentir o peso da sua participação e decisão. Processos transformadores onde a crítica, o pensamento e a capacidade criativa, são permanentes factores de ruptura com a velha realidade e construção de uma nova realidade.
 
Também aqui tenta-se superar as deficiências dos modelos de raiz. Exactamente porque são olhados de forma crítica. Talvez os processos bolivarianos (se forem completados) consigam dar uma melhor resposta nos factores pedagógicos e o homem novo, como ser não alienado se torne uma realidade palpável, um ser mais pensante e crítico, menos papagaio e inculto (coisa que apesar de todos os esforços a revolução cubana não conseguiu superar e que revela-se uma condicionante no actual processo de revitalização do sistema socialista em Cuba, provavelmente pela importação do conceito erróneo da lei do valor e do estimulo material praticado na Ilha durante as décadas de setenta e oitenta).
 
Neste momento em que os olhos dos povos do mundo estão postos na Venezuela, devido à morte do Comandante Hugo Chávez (eternamente vivendo na memória e no coração de todos nós), na esperança de assistir à continuidade do processo revolucionário venezuelano e à superação desta nova fase, as palavras de Che assumem um particular relevo: “A nova sociedade em formação tem de competir muito duramente com o passado. Isto faz-se sentir não só na consciência individual, onde pesam os resíduos de uma educação sistematicamente orientada para o indivíduo, mas também pelo próprio carácter deste período de transição, com persistência das relações mercantis. A mercadoria é a célula económica da sociedade capitalista; enquanto existir, os seus efeitos far-se-ão sentir na organização da produção e na consciência.” (O Socialismo e o Homem em Cuba, Março de 1965, semanário Marcha, Montevideu).
 

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