Constança Cunha e Sá
– Jornal i, opinião
“Quer dizer que
estamos a caminho da bancarrota?”, pergunta Ega, numa angústia fingida, a
Cohen. “Num galopezinho muito seguro e muito a direito”, responde-lhe este, com
a solenidade oca de quem respira os mistérios da pátria. Nos tempos que correm,
há algo de inquietante neste diálogo de “Os Maias”. Talvez o galopezinho muito
seguro, talvez a certeza de que nos encaminhamos para um poço sem fundo que nos
faz ter saudades do melancólico pântano de que o Eng. Guterres quis
prudentemente fugir. Entre erros colossais e previsões catastróficas, temos,
hoje, um governo cuja política falhou estrondosamente. Do alto da sua
impotência, o primeiro-ministro ensaia uma fuga em frente, ameaça com a sua
demissão e responsabiliza politicamente o Tribunal Constitucional pelo delírio
de um Orçamento do Estado que o próprio ministro das Finanças se encarregou de
atirar para o caixote de lixo.
Na Assembleia da
República, o drama ganhou proporções épicas, com uma deputada do PSD a exigir
que os juízes cumprissem o Memorando da troika e levassem em conta as
exigências dos nossos credores. Aparentemente, para o PSD, o Tribunal
Constitucional, antes de decidir seja o que for, devia ter uma conversinha de
pé de orelha com o Sr. Selassie ou, quem sabe?, pedir (mesmo que roído de inveja)
um esclarecimento ao Sr. Schäuble sobre a melhor forma de subverter o Estado de
direito, em Portugal. E depois ainda há quem, num rasgo de patriotismo, apele a
um sublime consenso em torno de coisa nenhuma, sem perceber que não é
propriamente fácil fazer consensos com defuntos que só estão à espera que lhes
seja decretada a respectiva certidão de óbito.
No meio disto tudo,
entre nomeações para o governo de jovens imberbes na qualidade de
especialistas, surgiu, qual cereja em cima do bolo, o anúncio de que o
ex-espião Silva Carvalho, acusado dos mais variados crimes, se vai instalar,
com pompa e circunstância, na Presidência do Conselho de Ministros, ao abrigo
de um diploma qualquer que ignora a sua feérica passagem por uma empresa
privada onde, segundo o Ministério Público, se entreteve a violar segredos de
Estado e a aceder ilegitimamente a dados pessoais de jornalistas e empresários.
Perante tanta generosidade, o ex-espião diz agora que vai colaborar
estreitamente com o governo que o nomeou. E o pior é que se calhar vai. E o
país, por via de cumplicidades maçónicas e de negócios obscuros, chega assim ao
fundo dos fundos.
É precisamente
nesta altura que o Eng. Sócrates decide quebrar o silêncio de dois anos e
apresentar a sua própria “narrativa” sobre a origem da crise e as
responsabilidades do seu governo por oposição à “narrativa” da direita, que
imperou, nos últimos tempos, graças ao silêncio cúmplice do PS. Depois da
entrevista à RTP, vamos ter o prazer de assistir a duas “narrativas” à bulha,
num espectáculo um pouco bipolar tendo em conta a natureza das mesmas. Mas
desenganem-se os que acham que as palestras de Sócrates não vão ter efeitos na
política portuguesa, nomeadamente no PS e no governo. Não foi por acaso que
tanta gente o quis silenciar.
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