Manuel Maria
Carrilho – Diário de Notícias, opinião
É possível combater
o défice e a dívida, sem o garrote da austeridade. É possível combater o
desemprego e a precariedade, mesmo sem grande crescimento. Para tanto, o que é
preciso é outra compreensão da crise e pensar a médio/longo prazo, inventado um
novo modelo de desenvolvimento. Rebobinar o passado não nos leva ao futuro, mas
ao impasse. São estas algumas das teses de um dos sábios do socialismo francês,
Michel Rocard.
Nada melhor, nem
mais útil, no momento da reeleição de António José Seguro como secretário-geral
do Partido Socialista, do que refletir nos conselhos deste antigo
primeiro-ministro francês. Conselhos que, à luz das enormes dificuldades atuais
do Presidente François Hollande - que está prestes a concluir o seu primeiro
ano de mandato em condições calamitosas -, ganham ainda maior pertinência e
oportunidade.
Num livro recente,
que intitulou La Gauche
n"a plus Droit à l"Erreur (Ed. Flammarion), Michel Rocard, que foi
sempre um socialista aberto e moderado, faz uma clarificadora análise da situação
atual, global e europeia, estabelece um diagnóstico inovador sobre a crise que
vivemos, e defende linhas de ação originais que merecem a maior atenção.
Quanto à análise, é
bom ter presente que há muito que Michel Rocard insiste em que a ideia, dominante
em muitos governos europeus, de pagar a dívida em condições que enfraquecem ou
inviabilizam o crescimento e provocam recessão é uma enorme estupidez,
sobretudo que justamente condena qualquer perspetiva séria de efetivo pagamento
da dívida.
E que, portanto, o
que é urgente, é inventar - porque é disso mesmo que se trata - um equilíbrio
entre o pagamento da dívida e a despesa (pública, mas não só) necessária à
manutenção do poder de compra e do investimento.
Mas como? Tem sido
aqui, neste ponto, que todos os impasses se têm acumulado e todos os dilemas se
têm agudizado. Talvez porque, como sugeriu Joseph Stiglitz, todos eles conduzem
ao paradoxo de se estar a pensar fazer uma transfusão a um doente que tem uma
hemorragia interna...
O problema, pensa
Michel Rocard, é mesmo este, pelo que a boa questão é a de saber onde é a
hemorragia e quais são as suas causas. Isto é, dito de outro modo, "porque
é que os nossos países se tornaram viciados na dívida? Porque é que, se diminui
a transfusão, eles entram em recessão?"(p. 83)
A resposta está na
história. Se olharmos para trás, umas décadas, verifica-se que este processo se
inicia nos anos 80, depois de mais ou menos 30 anos em que as economias
cresceram sem aumentar a sua dívida: foram 30 anos sob a égide do pleno emprego
e do regular aumento do poder de compra.
Na linha de um
fordismo que - convém lembrar - via o salário mais como um elemento nuclear da
procura do que como um custo. Foi precisamente isso que levou Henry Ford a
quase dobrar os salários dos seus operários e a diminuir o tempo de trabalho -
é muito instrutivo reler hoje o famoso discurso onde ele explicou "why I
favour 5 days work with 6 days pay", de 1926.
Esta inspiração
seria mais tarde desenvolvida, no plano social, por Beveridge, e no plano económico
por Keynes, dando forma ao que se convencionou designar o Estado Providência.
(Entre parêntesis: e se o pleno emprego se instalou, foi em paralelo com outro
processo de que raramente se fala, o da diminuição do tempo de trabalho, uma
constante até aos anos 70 do século XX.)
E isto só viria a
ser posto em causa nos anos 80,
a seguir ao impacto da crise petrolífera da década
anterior, com a revolução conservadora de Margaret Tatcher e Ronald Reagan. Foi
aí que realmente tudo mudou. Os salários deixaram de crescer, nos quinze países
mais ricos da OCDE a percentagem dos salários no PIB caiu constantemente,
passando de 67% do PIB em 1982 para 57% em 2007: dez pontos!
É então que a
dívida emerge e começa a crescer, num movimento ascendente que nunca mais parará:
"Para garantir aos acionistas os lucros colossais e garantir um alto nível
de consumo do conjunto da população, o neoliberalismo tem estruturalmente
necessidade, todos os anos, de um nível de dívida mais elevado, para continuar
a prosperar."(p. 92)
Hoje, a dívida
total dos Estados Unidos é de 350% do PIB, e a da Inglaterra é de 900%. E a
liquidez em circulação no mundo atinge o "exuberante" valor de 800
biliões de dólares, enquanto o PIB mundial anda nos 62 - ou seja a
"economia" virtual é cerca de 13 vezes superior à economia real!
A análise de Michel
Rocard altera substancialmente o retrato dominante da crise, e aponta para um
diagnóstico que deve fazer pensar: "Nós não estamos face a uma crise do
Estado-Providência, mas antes e acima de tudo face a uma crise do capitalismo,
cuja duração e gravidade tornam insuficientes as respostas clássicas do
Estado-Providência."(p. 107)
E continua: "A
causa fundamental da crise encontra-se nas desigualdades que se cavaram no
sector privado. Fala-se muito de dívida pública, em particular porque os
Estados tiveram de funcionar como garante dos bancos, mas a crise não vem do
Estado. A crise vem do desemprego e das desigualdades de rendimentos."
Este diagnóstico
conduz, por sua vez, a uma nova abordagem do crescimento, da produtividade, do
tempo de trabalho, da energia - além, naturalmente, da Europa. E a um conjunto
de medidas muito concretas, que Michel Rocard apresenta com simplicidade,
sentido pedagógico e ambição política. Só assim se libertará o futuro das
armadilhas do passado. Vale mesmo a pena ler.
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