A crise acentuou os
egoísmos nacionais nos países da UE, abandonando o projeto cooperativo em que
se baseia a construção europeia. E, afastando uma divisão irracional entre o
Norte e o Sul, que pode levar a UE ao suicídio, é preciso recuperar a coesão e
a interdependência, defende uma filósofa espanhola.
A atuação da UE
está a causar um merecido descontentamento entre os seus cidadãos. Diz-se que
agora é uma “Desunião Europeia”, onde os líderes de cada país lutam por
conseguir os votos dos eleitores dos seus países de origem sem se importarem
com o todo dessa entidade supranacional, da qual um dia nos sentimos já
orgulhosos.
Nós, europeus,
inventores do Estado nacional, também idealizámos uma comunidade de soberanias
partilhadas capaz de ir assentando as bases de uma sociedade cosmopolita. A
união económica exige o reforço da união política e, como condição
possibilitadora de uma e de outra, potenciar-se-ia a Europa dos Cidadãos, chave
da abóbada de tudo o resto.
Mas a crise atual
tornou evidente que nenhuma dessas metas tinha sido alcançada, porque foi o
egoísmo de cada país que presidiu à atuação de cada um deles no seio da suposta
união, e não a cooperação imprescindível para que funcione como uma união na
ordem cidadã, política e económica. Não há uma verdadeira democracia europeia,
os governantes fazem acordos bilateralmente, alterando as lealdades ao sabor da
conveniência conjuntural, mas sem atenderem às aspirações dos supostos cidadãos
europeus.
Este funcionamento
é suicida. E não apenas porque contraria o sentido da democracia, não apenas
porque é imoral tomar decisões sem ter em conta os seus destinatários, mas
também porque algo tão simples se torna irracional. Tanto tempo a
vangloriarmo-nos de que o progresso humano beneficiou com o avanço racional
liderado pela Europa, para desembocar na mais pueril irracionalidade.
Cooperar a partir
da coesão social
Porque já há muito
sabemos que o racional não é procurar o máximo benefício de maneira egoísta,
custe o que custar, mas sim ter a inteligência suficiente para cooperar a
partir da base da coesão social. Os velhos anarquistas tinham razão ao
defenderem que é a ajuda mútua que beneficia as espécies e não a impiedosa
concorrência, que é mais inteligente gerar aliados do que adversários, amigos
do que inimigos.
A razão humana
integral não é estupidamente egoísta, mas sim cooperativa. Como bem disse
Michael Tomasello, “nunca verão dois chimpanzés a carregarem, juntos, um
tronco”; foi a capacidade de cooperar que fez a espécie humana progredir. Quem
trabalha lado a lado não só consegue mudar o tronco de lugar, como também gera
um vínculo de amizade que vale por si só e para trabalhos futuros.
Parecia ser esse o
coração do projeto de uma Europa unida, que poderia estender-se a outros
lugares. E é desalentador ver como a Europa que inventou a democracia na Grécia
clássica, que cunhou a ideia da dignidade humana como núcleo da vida partilhada,
que potenciou a racionalidade não apenas científica mas sobretudo moral, que
descobriu o Estado social e a possibilidade de uma comunidade supranacional,
atraiçoou a sua própria identidade com um tenaz empenho suicida, sem o menor
afeto pelos ideais que a constituem.
À atuação em Chipre
que, sob todas as perspetivas, é mais fruto da improvisação egoísta e
desleixada do que de uma preocupação inteligente com o bem da população,
soma-se esta história recente de queixas nos países do Sul, onde se foi gerando
uma profunda aversão aos supostos parceiros do Norte. Uma situação da qual
beneficiam os populismos e os totalitarismos de um ou outro sentido que, numa
sociedade justa, não teriam qualquer oportunidade de medrar.
Recuperar a
identidade
Como é possível que
os que estão em boa situação tenham tanta dificuldade em perceber que os países
e as pessoas são interdependentes, que é falso que o meu lucro dependa das
perdas alheias? É justamente o contrário, se os países do Sul ficarem
esgotados, como está a acontecer, não só eles, mas também os países do Norte
ficarão a perder.
Dizia Kant, alemão
de Königsberg, que até um povo de demónios, de seres sem sensibilidade moral,
preferiria um Estado de direito a uma situação de guerra de todos contra todos.
Mas, isso sim, acrescentava: com quanto que tenha inteligência. E, preciso eu:
autêntica inteligência humana, como a que se revela no jogo do ultimato.
Nele, um jogador
oferece créditos a outro, que os pode aceitar ou recusar. Se aceita, ganham os
dois; caso contrário, nenhum ganha nada. Se é verdade que a racionalidade
humana trata de maximizar o lucro unilateralmente, quem responde deveria
aceitar qualquer oferta superior a zero e quem oferece deveria oferecer a
quantidade mais próxima possível de zero.
Mas os que respondem
tendem a recusar ofertas inferiores a 30% do total, porque não querem receber
uma quantidade humilhante e, por isso, os proponentes tendem a oferecer entre
40 e 50% do total para poder ganhar alguma coisa. Como se não bastasse, são os
chimpanzés que mostram uma racionalidade maximizadora quando entram num jogo do
ultimato adaptado a eles, e não as pessoas.
Por si só, já é
suficientemente má a humilhação dos que estão em pior situação e, além do mais,
nem é sequer inteligente. Inteligente, no caso da Europa, é recuperar a própria
identidade criando uma autêntica democracia, baseada na coesão social e na
ajuda mútua.
Traduzido por Maria
João Vieira
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