Mário Soares – Diáriode Notícias, opinião
Os dias que se
seguiram ao trigésimo nono aniversário da Revolução dos Cravos criaram uma
paralisação e uma confusão política, económica e social do Governo Passos
Coelho, que tem vindo a acrescentar-se todos os dias.
Como se sabe, os
capitães de Abril recusaram-se a estar presentes na cerimónia tradicional da
Assembleia da República, por acharem que o Governo Passos Coelho tudo tem feito
contra o Estado social e contra os valores de Abril. Por isso, pela segunda
vez, se recusaram - e bem - a estar presentes. E Manuel Alegre e eu próprio
fomos solidários com os militares de Abril, a quem tanto devemos,
ausentando-nos também.
Mas o mais
extraordinário não foi isso. Foi o discurso partidário e anticonstitucional do
Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, que indignou o PS, toda a
Esquerda e a esmagadora maioria da população portuguesa, que se manifestou na
tarde do mesmo dia, por forma clara e direta.
Na verdade, parece
que o Presidente deixou de ser de todos os portugueses e partidariamente
neutral - como manda a Constituição - para passar a ser o chefe efetivo do
Governo, como tinha já dito Sócrates. Governo que, aliás, nem sequer tem a ver
com o PSD, na sua maioria, ou com o CDS/PP, mas apenas com partículas ínfimas
(que mal se entendem entre si) dos dois referidos partidos. Pôs assim em
evidência, como a Esquerda entendeu, que é quem manda no Governo, primeiro como
a visita apressada de Vítor Gaspar e de Passos Coelho, no dia anterior,
comprovou. E depois, no dia seguinte, procurou salvar o Governo - contra todos
- quando este se encontra moribundo, desarticulado entre os ministros, estando
há muito tempo completamente paralisado.
Foi um discurso que
revelou uma personalidade de alguém que raramente fala, que cai em contradições
e que os portugueses, como as sondagens revelam, não tomam, nos últimos tempos,
muito a sério.
No entanto, o que é
interessante é que o discurso teve consequências em absoluto contrárias às que
o seu autor porventura pretendia: irritou grande parte das pessoas, provocou no
Partido Socialista uma posição contrária à pretendida, desagradou profundamente
aos parceiros sociais no seu conjunto e, como disse António José Seguro,
"em vez de unir os portugueses dividiu-os".
O Governo, como os
dias seguintes têm vindo a comprovar, está não só paralisado - como tem vindo a
acontecer - mas mais: desarticulado, com cada ministro a pensar pela sua cabeça
nas últimas reuniões. Não houve qualquer mudança do seu interior, exceto a
nível dos secretários de Estado. Apesar de a ministra da Justiça ter dito
querer abandonar a sua pasta e haver ministros que não aprovam francamente os
novos cortes que o ministro das Finanças está a preparar e o ministro dos
Negócios Estrangeiros, Paulo Portas, apesar das humilhações a que se tem
sujeitado, e segundo alguma imprensa diz, ter ameaçado já demitir-se, mais de
uma vez.
Sem ainda se
conhecer a proposta do Orçamento retificativo, vale a pena, de resto, tentar
perceber o que deseja o ministro Paulo Portas, quando agora lhe foi imposto um
jornalista sem qualquer experiência, Francisco Almeida Leite, como secretário
de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, e para onde está a
arrastar o seu partido (que foi CDS, depois PP e agora CDS/PP)...
Na verdade, Portas
tem estado calado e deixa correr o que o chefe do Governo lhe impõe, fazendo
contra ele alguma chantagem, como se viu, ou tem sido agarrado (com viagens,
por exemplo). Paulo Portas, no entanto, nos últimos dias parece ter-se imposto
e ameaçado o presidente do Governo e o ministro das Finanças de abandonar o
Governo o que seria o fim, por perder a maioria da Coligação...
Enquanto Portas
tinha alguma esperança de se associar ao PS, o que seria um conforto para ele,
foi deixando andar. Mas agora estará desiludido dessa possibilidade. É bem
possível que procure ser de novo democrata-cristão, perante um Papa
progressista, que gosta dos pobres, os quer ajudar e abomina o capitalismo
selvagem. É possível que, no contexto atual, a Democracia-Cristã volte a
aparecer, como está a acontecer já há algum tempo com o Socialismo Democrático.
Assim sendo, Paulo
Portas não pode continuar, no contexto atual - e sem se desacreditar totalmente
- a dar uma no cravo e outra na ferradura, sem destruir o seu partido. No
interior do CDS/PP há quem pense assim e queira deixar cair o PP e fique só o
CDS.
Por outro lado, a
definição à Esquerda - contra a austeridade e em favor do pleno emprego e do
Estado social - do PS, no Congresso do último fim de semana em Santa Maria da
Feira, não só restabeleceu a unidade da esmagadora maioria dos militantes do PS
como deu força aos parceiros sociais (em especial à UGT, agora com um novo
líder, Carlos Silva, que saúdo, e à Intersindical) como ao empreendedorismo das
empresas em dificuldades, e mesmo dos bancos. Todos reclamam contra as políticas
de austeridade e querem mais emprego e mais desenvolvimento económico e que se
impeça (embora tarde) a destruição da classe média. Os dois discursos de
António José Seguro - que inauguraram e encerraram o Congresso - foram
geralmente aplaudidos e refizeram a unidade do partido, de António Costa a
Francisco Assis e a Pedro Silva Pereira. O PS só ganha em dar um impulso à
Esquerda, dialogando com o Bloco, a Inter e com o próprio PCP (se ele se tornar
mais flexível), assim como com as empresas, principalmente as que estão em
dificuldades, e os bancos que já perceberam que a política de austeridade nos
leva à catástrofe.
A Europa está a dar
também uma volta à Esquerda, para se salvar. Os partidos à Esquerda dos Estados
em dificuldades ou não, como os sociais-democratas alemães, estiveram presentes
no Congresso do PS ou enviaram mensagens ao seu líder. Seguro dialogando com os
socialistas europeus - como tem feito desde o início do seu mandato - foi de
alguma maneira pioneiro da política europeia que hoje está em curso. A presença
física e as mensagens que chegaram a Santa Maria da Feira são a prova disso. O
que implica que agora cultive o diálogo com o Bloco, a par dos sindicatos, e
com o PCP. Porque a hora é da Esquerda e para salvar o euro e a União Europeia
esse é o único caminho possível, com o auxílio da Democracia-Cristã, que pensa
de novo aparecer, para vencermos a crise.
José Sócrates tem
feito sucessivos comentários na RTP de uma simplicidade e clareza que se deve
salientar. E tem tido um comportamento exemplar, em relação ao PS e ao seu
líder, que vale a pena referir. Ainda no domingo passado voltou a fazê-lo,
dizendo a verdade aos portugueses, criticando, com verdade e lucidez, o
Presidente da República e manifestando uma discrição em relação ao PS e ao seu
líder, que devem ser, a meu ver, correspondidas.
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