No pensamento e na
acção de Chávez fundem-se em turbilhão uma religiosidade profunda, quase
dolorosa, com a consciência lucida de que a rutura dos mecanismos da exploração
do homem seria impossível sem o choque frontal com o imperialismo. A opção
bolivariana, transcorrido mais de um século e meio da morte do seu herói
tutelar, exigia a destruição do capitalismo. E ele percebeu que na luta
ciclópica a travar para atingir esse objetivo a única alternativa ao sistema de
opressão hegemonizado pelos EUA é o socialismo.
O sarcófago
ergue-se a meio de um pátio, no Quartel de La Montaña.
É de um granito
cinza escuro. Em volta, noite e dia, quatro soldados com o uniforme vermelho e
os gorros negros do Exército Libertador de Bolivar permanecem imoveis numa
guarda de honra que é rendida de duas em duas horas.
Na galeria que
rodeia parcialmente o túmulo abre-se uma pequena e estranha capela. Nela não há
imagens da Virgem Maria, nem de santos. Sobre o altar destaca-se Jesus numa
grande cruz, emoldurada de ambos os lados por fotos de Hugo Chávez.
Naquele dia eramos
200 os visitantes, divididos em quatro grupos. Vínhamos do X Encontro de
Intelectuais, Artistas e Lutadores Sociais em Defesa da Humanidade.
Ao longo do último
meio seculo conheci muitos mausoléus: o de Lenine em Moscovo, o do búlgaro
Dimitrov em Sofia, o do turco Tamerlão em Samarcanda, o do califa árabe Ali em
Masar-i-Sharif, no Afeganistão. E outros.
O de Hugo Chávez -
intitulado «monumento Flor dos quatro elementos» - não traz à memória qualquer
deles. Ao fundo, num nicho da parede, uma escultura de Bolivar em bronze.
A atmosfera ali é a
de um santuário. Invisível na urna encerrada no túmulo de mármore, el
comandante supremo é venerado como um santo.
Nunca vi algo similar. Não eram apenas os venezuelanos que choravam ao entrar
na capela. Pelas faces de muitos, incluindo de estrangeiros ateus, também
escorriam lágrimas.
Foi naquele Quartel
que Chávez, quando o comandava como tenente-coronel, desembainhou a espada em
1992, desafiando o governo corrupto e vassalo de Carlos Andrés Pérez, inspirado
pelo famoso juramento de Bolivar no Monte Aventino, em Roma.
A Paróquia mudou de
nome. Atualmente chama-se 23 de Janeiro, data da rebelião, e é um bairro revolucionário.
Na galeria que
rodeia o pátio onde foi erguido o túmulo está instalado um museu. Nele se pode
seguir a vida de Chávez desde a infância através de fotos, documentos, objetos,
decretos, trechos de discursos que marcaram o rumo da Historia.
Nas paredes, em
algumas dezenas de metros, aparece condensada, nas etapas de uma vida
tempestuosa, a trajetória do soldado que rompeu as cadeias de uma sociedade
semi colonial e fez da Venezuela em 14 anos a vanguarda das avançadas
revolucionárias da América Latina.
O sol descia já no horizonte quando o nosso grupo atravessou a floresta das 34
bandeiras dos países de Nuestra América – o sonho de Simon Bolivar retomado por
Chávez.
Na saudação do
comandante do Quartel aos participantes da Rede em Defesa da Humanidade e no
discurso da jovem médica miliciana que os acompanhou transparecia uma
inquebrantável confiança no futuro da Revolução. Ambos falaram com paixão.
Senti que para se compreender as transformações em curso na Venezuela é preciso
não somente estar familiarizado com a cultura caribenha como assimilar uma
contradição que choca muitos europeus: a coexistência harmoniosa de duas
conceções do mundo na aparência antagónicas: uma materialista outra idealista.
Algo parecido ao
que aconteceu em Cuba com o marxismo-martiano ocorre hoje na Venezuela num
contexto histórico e social muito diferente.
No pensamento e na acção de Chávez fundem-se em turbilhão uma religiosidade
profunda, quase dolorosa, com a consciência lucida de que a rutura dos
mecanismos da exploração do homem seria impossível sem o choque frontal com o
imperialismo. A opção bolivariana, transcorrido mais de um século e meio da
morte do seu herói tutelar, exigia a destruição do capitalismo. E ele percebeu
que na luta ciclópica a travar para atingir esse objetivo a única alternativa
ao sistema de opressão hegemonizado pelos EUA é o socialismo.
A noite descera já
sobre o casario pobre do Bairro 23 de Janeiro quando iniciámos a descida para o
centro da cidade. Uma lua muito branca, agressiva, iluminava o cerro escuro que
fechava o horizonte.
Havia muita gente
nas ruas. Nas paredes sucediam-se murais com slogans revolucionários e palavras
de amor ao presidente falecido.
Contei várias capelas improvisadas pelos moradores. Em todas elas o retrato de
Chávez e a palavra Santo!
Para milhões de venezuelanos, o homem que restituiu a esperança e a dignidade
ao seu povo tornou possível o que parecia impossível. Identificam nele um santo
milagreiro.
O GRANDE DESAFIO
A dimensão de Hugo
Chávez como revolucionário, herdeiro do projeto bolivariano, exige dos
comunistas que o respeitam e o admiram uma reflexão serena sobre o homem e a
sua obra.
Na atmosfera
efervescente de Caracas debater o tema do chamado «socialismo bolivariano»
nestas semanas foi para os intelectuais, artistas e militantes revolucionários
estrangeiros que ali foram transmitir solidariedade uma tarefa gratificante mas
complexa.
Hugo Chávez tomou consciência a partir do seu segundo mandato que sem um
partido revolucionário revolução alguma - como afirmou Lenine - pode atingir os
seus objetivos.
E, por assumir essa
evidência, tomou a decisão de fundar o Partido Socialista Unido da Venezuela.
Hoje conta com 7
milhões de inscritos. Desse crescimento rapidíssimo e avassalador transparece a
fragilidade e não a força da organização. O PSUV foi criado de cima para baixo
e a ele aderiu uma elevada percentagem de cidadãos. No chavismo cabem
tendências muito diferenciadas, algumas incompatíveis.
Foi no contexto de
um intenso debate ideológico que um núcleo de intelectuais latino americanos
proclamou que na Venezuela estava a surgir um caminho inovador para o
socialismo. Ganhou nome próprio: «Socialismo do século XXI».
No âmbito do
programa do X Encontro da Rede em Defesa da Humanidade, a conferência de Garcia
Linera, vice-presidente da República da Bolívia, expressou, com maior clareza
do que outras intervenções, um olhar sobre a História e o Socialismo que
suscitam hoje polemica.
É positivo que um político com a sua responsabilidade - é o mais íntimo
colaborador de Evo Morales - manifeste irrestrita solidariedade com a revolução
bolivariana.
Falando sobre
Chávez e a sua obra, não creio, porém, que – apesar de aplaudido com entusiasmo
- tenha contribuído para aprofundar a compreensão do político, do estratego e
do seu legado.
Orador de talento,
culto, comunicador insinuante, Linera é um académico marxiano, mas não um
marxista. Ao afirmar ser leninista confunde em vez de esclarecer, porque a sua
conceção do Estado, do Partido, da transição para o socialismo, marcadas por um
anti sovietismo transparente, não somente diferem das expostas pelo grande
revolucionário russo como são com elas incompatíveis, negando o socialismo
científico.
Linera sugere,
aliás, que o jovem tenente-coronel Chávez, o revolucionário de 92, ao conquistar
a Presidência, já delineara os contornos da opção pelo socialismo no seu
projeto bolivariano.
A afirmação
distorce a História. Creio que é mérito grande de Chávez ter caminhado para a
conclusão de que o confronto com o imperialismo era inseparável de uma opção
pelo socialismo através de uma evolução complexa do seu pensamento político e
do estudo da praxis do processo. Aprendeu muito nas várias etapas da revolução.
O Hugo Chávez da
maturidade, sem abdicar do seu estilo irrepetível, com matizes populistas, foi
sujeito e objeto de uma transformação profunda ao longo dos seus mandatos
presidenciais.
Censuram-lhe o
voluntarismo. Não é uma virtude em política. Mas é muito improvável que, se
tivesse renunciado a facetas do seu caracter explosivo, não o recordássemos
hoje como um dos homens que mais contribuíram nas últimas décadas para criar
história profunda, na aceção de Lucien Fèbvre.
Recordo os
primeiros programas do «Alô Presidente», o inacreditável diálogo que mantinha,
país adentro, com a sua gente. Que distancia a percorrida até ao Chávez da
última campanha eleitoral, ferido pela doença que ia abreviar-lhe a vida.
Regresso de Caracas
com a certeza de que continuará a ser alvo de uma chuva de insultos e calunias
na campanha eleitoral em curso. Mas nem seus piores inimigos ousam negar que
Hugo Chávez Frias, desaparecido fisicamente a 5 de março, mudou o rumo da
História da Venezuela como ninguém desde Bolívar.
Ele conseguiu
estabelecer com os oprimidos do seu povo uma relação maravilhosa, de contornos
quase mágicos.
Vila Nova de Gaia,
31 de Março de 2013
Fonte: O Diário
Sem comentários:
Enviar um comentário