domingo, 7 de abril de 2013

O LEGADO DE CHAVEZ NA REVOLUÇÃO BOLIVARIANA (1)





No pensamento e na acção de Chávez fundem-se em turbilhão uma religiosidade profunda, quase dolorosa, com a consciência lucida de que a rutura dos mecanismos da exploração do homem seria impossível sem o choque frontal com o imperialismo. A opção bolivariana, transcorrido mais de um século e meio da morte do seu herói tutelar, exigia a destruição do capitalismo. E ele percebeu que na luta ciclópica a travar para atingir esse objetivo a única alternativa ao sistema de opressão hegemonizado pelos EUA é o socialismo.

O sarcófago ergue-se a meio de um pátio, no Quartel de La Montaña.

É de um granito cinza escuro. Em volta, noite e dia, quatro soldados com o uniforme vermelho e os gorros negros do Exército Libertador de Bolivar permanecem imoveis numa guarda de honra que é rendida de duas em duas horas.

Na galeria que rodeia parcialmente o túmulo abre-se uma pequena e estranha capela. Nela não há imagens da Virgem Maria, nem de santos. Sobre o altar destaca-se Jesus numa grande cruz, emoldurada de ambos os lados por fotos de Hugo Chávez.

Naquele dia eramos 200 os visitantes, divididos em quatro grupos. Vínhamos do X Encontro de Intelectuais, Artistas e Lutadores Sociais em Defesa da Humanidade.

Ao longo do último meio seculo conheci muitos mausoléus: o de Lenine em Moscovo, o do búlgaro Dimitrov em Sofia, o do turco Tamerlão em Samarcanda, o do califa árabe Ali em Masar-i-Sharif, no Afeganistão. E outros.

O de Hugo Chávez - intitulado «monumento Flor dos quatro elementos» - não traz à memória qualquer deles. Ao fundo, num nicho da parede, uma escultura de Bolivar em bronze.

A atmosfera ali é a de um santuário. Invisível na urna encerrada no túmulo de mármore, el comandante supremo é venerado como um santo.

Nunca vi algo similar. Não eram apenas os venezuelanos que choravam ao entrar na capela. Pelas faces de muitos, incluindo de estrangeiros ateus, também escorriam lágrimas.

Foi naquele Quartel que Chávez, quando o comandava como tenente-coronel, desembainhou a espada em 1992, desafiando o governo corrupto e vassalo de Carlos Andrés Pérez, inspirado pelo famoso juramento de Bolivar no Monte Aventino, em Roma.

A Paróquia mudou de nome. Atualmente chama-se 23 de Janeiro, data da rebelião, e é um bairro revolucionário.

Na galeria que rodeia o pátio onde foi erguido o túmulo está instalado um museu. Nele se pode seguir a vida de Chávez desde a infância através de fotos, documentos, objetos, decretos, trechos de discursos que marcaram o rumo da Historia.

Nas paredes, em algumas dezenas de metros, aparece condensada, nas etapas de uma vida tempestuosa, a trajetória do soldado que rompeu as cadeias de uma sociedade semi colonial e fez da Venezuela em 14 anos a vanguarda das avançadas revolucionárias da América Latina.

O sol descia já no horizonte quando o nosso grupo atravessou a floresta das 34 bandeiras dos países de Nuestra América – o sonho de Simon Bolivar retomado por Chávez.

Na saudação do comandante do Quartel aos participantes da Rede em Defesa da Humanidade e no discurso da jovem médica miliciana que os acompanhou transparecia uma inquebrantável confiança no futuro da Revolução. Ambos falaram com paixão.

Senti que para se compreender as transformações em curso na Venezuela é preciso não somente estar familiarizado com a cultura caribenha como assimilar uma contradição que choca muitos europeus: a coexistência harmoniosa de duas conceções do mundo na aparência antagónicas: uma materialista outra idealista.

Algo parecido ao que aconteceu em Cuba com o marxismo-martiano ocorre hoje na Venezuela num contexto histórico e social muito diferente.

No pensamento e na acção de Chávez fundem-se em turbilhão uma religiosidade profunda, quase dolorosa, com a consciência lucida de que a rutura dos mecanismos da exploração do homem seria impossível sem o choque frontal com o imperialismo. A opção bolivariana, transcorrido mais de um século e meio da morte do seu herói tutelar, exigia a destruição do capitalismo. E ele percebeu que na luta ciclópica a travar para atingir esse objetivo a única alternativa ao sistema de opressão hegemonizado pelos EUA é o socialismo.

A noite descera já sobre o casario pobre do Bairro 23 de Janeiro quando iniciámos a descida para o centro da cidade. Uma lua muito branca, agressiva, iluminava o cerro escuro que fechava o horizonte.

Havia muita gente nas ruas. Nas paredes sucediam-se murais com slogans revolucionários e palavras de amor ao presidente falecido.

Contei várias capelas improvisadas pelos moradores. Em todas elas o retrato de Chávez e a palavra Santo!

Para milhões de venezuelanos, o homem que restituiu a esperança e a dignidade ao seu povo tornou possível o que parecia impossível. Identificam nele um santo milagreiro.

O GRANDE DESAFIO

A dimensão de Hugo Chávez como revolucionário, herdeiro do projeto bolivariano, exige dos comunistas que o respeitam e o admiram uma reflexão serena sobre o homem e a sua obra.

Na atmosfera efervescente de Caracas debater o tema do chamado «socialismo bolivariano» nestas semanas foi para os intelectuais, artistas e militantes revolucionários estrangeiros que ali foram transmitir solidariedade uma tarefa gratificante mas complexa.

Hugo Chávez tomou consciência a partir do seu segundo mandato que sem um partido revolucionário revolução alguma - como afirmou Lenine - pode atingir os seus objetivos.

E, por assumir essa evidência, tomou a decisão de fundar o Partido Socialista Unido da Venezuela.

Hoje conta com 7 milhões de inscritos. Desse crescimento rapidíssimo e avassalador transparece a fragilidade e não a força da organização. O PSUV foi criado de cima para baixo e a ele aderiu uma elevada percentagem de cidadãos. No chavismo cabem tendências muito diferenciadas, algumas incompatíveis.

Foi no contexto de um intenso debate ideológico que um núcleo de intelectuais latino americanos proclamou que na Venezuela estava a surgir um caminho inovador para o socialismo. Ganhou nome próprio: «Socialismo do século XXI».

No âmbito do programa do X Encontro da Rede em Defesa da Humanidade, a conferência de Garcia Linera, vice-presidente da República da Bolívia, expressou, com maior clareza do que outras intervenções, um olhar sobre a História e o Socialismo que suscitam hoje polemica.

É positivo que um político com a sua responsabilidade - é o mais íntimo colaborador de Evo Morales - manifeste irrestrita solidariedade com a revolução bolivariana.

Falando sobre Chávez e a sua obra, não creio, porém, que – apesar de aplaudido com entusiasmo - tenha contribuído para aprofundar a compreensão do político, do estratego e do seu legado.

Orador de talento, culto, comunicador insinuante, Linera é um académico marxiano, mas não um marxista. Ao afirmar ser leninista confunde em vez de esclarecer, porque a sua conceção do Estado, do Partido, da transição para o socialismo, marcadas por um anti sovietismo transparente, não somente diferem das expostas pelo grande revolucionário russo como são com elas incompatíveis, negando o socialismo científico.

Linera sugere, aliás, que o jovem tenente-coronel Chávez, o revolucionário de 92, ao conquistar a Presidência, já delineara os contornos da opção pelo socialismo no seu projeto bolivariano.

A afirmação distorce a História. Creio que é mérito grande de Chávez ter caminhado para a conclusão de que o confronto com o imperialismo era inseparável de uma opção pelo socialismo através de uma evolução complexa do seu pensamento político e do estudo da praxis do processo. Aprendeu muito nas várias etapas da revolução.

O Hugo Chávez da maturidade, sem abdicar do seu estilo irrepetível, com matizes populistas, foi sujeito e objeto de uma transformação profunda ao longo dos seus mandatos presidenciais.

Censuram-lhe o voluntarismo. Não é uma virtude em política. Mas é muito improvável que, se tivesse renunciado a facetas do seu caracter explosivo, não o recordássemos hoje como um dos homens que mais contribuíram nas últimas décadas para criar história profunda, na aceção de Lucien Fèbvre.

Recordo os primeiros programas do «Alô Presidente», o inacreditável diálogo que mantinha, país adentro, com a sua gente. Que distancia a percorrida até ao Chávez da última campanha eleitoral, ferido pela doença que ia abreviar-lhe a vida.

Regresso de Caracas com a certeza de que continuará a ser alvo de uma chuva de insultos e calunias na campanha eleitoral em curso. Mas nem seus piores inimigos ousam negar que Hugo Chávez Frias, desaparecido fisicamente a 5 de março, mudou o rumo da História da Venezuela como ninguém desde Bolívar.

Ele conseguiu estabelecer com os oprimidos do seu povo uma relação maravilhosa, de contornos quase mágicos.

Vila Nova de Gaia, 31 de Março de 2013

Fonte: O Diário

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