António Pedro Dores –
Cabo Verde Direto, opinião
A descolonização à
bruta redundou da falta de legitimidade do Estado fascista para mobilizar
militares. Abandonados os povos africanos sob tutela portuguesa à sua sorte,
ficaram nas mãos das políticas belicistas da comunidade internacional e das
tricas internas dos detentores do poder
A necessidade de
acertar o passo com a história trouxe Lisboa – e depois Portugal – de 1974 à
descolonização tardia, esgotado o regime ditatorial hipócrita, que fazia
eleições para fingir ser moderno. E fingia ser um império para se sentir
poderoso. Mas era incapaz de ser feliz.
Ninguém pode ser feliz amesquinhado e impedido de aspirar a uma vida melhor.
Ninguém pode ser feliz agarrado a um passado glorioso quando afinal dele apenas
ficou a oportunidade de exploração, para que ainda por cima não se tem sequer
unhas. Donde, o lema dos três “D”: descolonização, democracia e
desenvolvimento, lançado a 25 de Abril. Nova vida. Por mais 40 anos.
Estamos na hora de balanço. E olhando para trás tem-se a sensação de ter
cometido outra vez os mesmos erros. Submissão a dirigentes medíocres e
oportunistas que desprezam o seu povo e o violam com toda a tranquilidade, como
os abusadores fazem com as suas vítimas. Queremos continuar a ser vítimas?
Saberemos sobreviver?
A descolonização à bruta redundou da falta de legitimidade do Estado fascista
para mobilizar militares, tanto os que estavam em África como os que estavam na
Europa. Abandonados os povos africanos sob tutela portuguesa à sua sorte,
ficaram nas mãos das políticas belicistas da comunidade internacional e das
tricas internas dos detentores do poder.
Em Portugal, o poder esteve na rua, até que os militares (entretanto refeitos
da sua própria degenerescência, apoiados por redes políticas modernizadoras) se
sentiram em condições de repor a normalidade, isto é, a velha separação nada
democrática entre os que mandam e os que são mandados. Chamámos a isso regime
democrático. Ficaram até hoje o excesso de generais.
Triste democracia, com a ideologia na gaveta. O desenvolvimento viria mais
tarde. Outra vez a imigração como resposta à crise do início dos anos 80.
Desenhou-se então uma exclusividade política para a Europa, sob a palavra de
ordem “não ao miserabilismo”. Sim aos subsídios dos fundos estruturais, na
altura imaginados como coisa diferente de uma dívida. Os “terceiro-mundistas”
foram simplesmente humilhados por questionarem as opções europeístas. Acenou-se
com um futuro de riqueza para os portugueses, uma vez integrados na Europa,
isto é, na CEE. A última carruagem desse comboio era tudo quanto precisaríamos
para viver melhor.
Porque não percebíamos (nem percebemos) nada do capitalismo, preferimos um
monopólio na política externa – constituído pelos partidos do arco da
governação – a um processo de diversificação estratégica, combinando
potencialidades e diversificando dependências. Chamam a isso realismo, pois o
terceiro-mundismo implicaria uma postura moral de exigência – por exemplo, na
denúncia das atrocidades porque passaram os povos lusófonos – incompatível com
as políticas europeias dos “bons alunos” ou a moral da árvore das patacas no
relacionamento com a China.
A fatura já chegou. A Dona Branca Europa é juíza em causa própria. E em
vez de sujeitar-se a julgamento, suspende o Estado de Direito e avança nas
perigosas políticas de estigmatização dos PIIGS (porcos em português),
organizando contra eles, alegando motivos morais (imagine-se), e com a
colaboração da oligarquia dominante no local, saques aos direitos adquiridos,
na esperança (porque tomam os desejos por realidades e preferem fazer
experiências a fazer contas) de isso ser suficiente para secar o excesso de
crédito que jorrou nas últimas décadas em todo o mundo ocidental.
Um espírito mais democrático teria tido a sensatez de não apenas permitir mas
estimular a afirmação e desenvolvimento de ideias que pudessem ser alternativas
à nossa política externa. Mas habituados a andarmos todos juntos e à molhada,
os portugueses não viram nada de mal na formação do centrão, excludente de
todas as discussões políticas relevantes e criador de monopólios (de fachada
liberal) para usufruto da classe política e dos respetivos aliados: os
militares normalizadores, as famílias políticas dominantes na Europa, as raras
famílias capitalistas portuguesas, as famílias de ricaços retornadas das
respetivas fugas patrióticas para o Brasil.
A contradição entre as promessas meritocráticas de Belmiro, Amorim ou Soares
dos Santos nos anos 80 e 90 (nas suas entrevistas publicadas por Maria Filomena
Mónica, onde prometiam romper com a tradição das “velhas famílias” de passar a
gestão ao herdeiro) e a prática concreta 20 anos depois, no momento da passagem
do testemunho, entregue sem exceção aos respetivos filhos, pode ser facilmente
confirmada. Os capitalistas industriosos foram assediados e convertidos em
rentistas do subdesenvolvimento, gritando em coro o discurso único do
neo-liberalismo.
A tudo assistiu o povo português, cúmplice como sempre é o soberano com aquilo
que se passa, mas ciente da forma como a história deve passar às gerações
vindouras.
Durante as últimas quatro décadas nunca se deixou de comemorar o 25 de Abril e
jamais se comemorou o 25 de Novembro. Os corações dos portugueses nunca
confundiram a esperança com a resignação. A política do condicionamento
democrático, porém, não foi reciclada nem intervencionada. Continuou, a seus olhos,
a ser a mesma porca descrita por Bordalo Pinheiro.
O espírito de funcionário irresponsável e oportunista produzido pelo nosso
longo Império resistiu ao fim de um ciclo de quinhentos anos virados para o
mar. Agora o “ouro” vinha das bandas de terra. A profissão dos políticos
tornou-se cada vez mais apetecível do ponto de vista dos proveitos e cada vez
mais repugnante aos olhos dos populares. As relações entre política e povo
tornaram-se frias e distantes, ligadas por angariadores de fundos, que correm de
um lado para o outro: grossas malas para cima, pequeníssimas gorjetas para
baixo.
Os angariadores foram recentemente convocados aos respetivos chefes com a
seguinte notícia: para manterem o posto de trabalho, cabia-lhes agora organizar
o despedimento do povo português do comboio a que se tinha atrelado. Os PIIGS,
afinal, somos cada um de nós, que temos dívidas que nunca contraímos; e uma
constituição que nunca utilizámos; e uma democracia que nunca mobilizámos.
A repensar na vida, os portugueses olham hoje para o passado, o Império, o
fascismo, o marcelismo, o 25 de Abril, a entrada na CEE, a crise do
capitalismo, à procura de um futuro. De colonizadores tradicionalistas
tornámo-nos em país colonizado. De regime ditatorial tornámo-nos numa democracia
oligárquica. De um surto de desenvolvimento industrial frágil tornámo-nos num
país modernizado mas sem indústria e sem honra, à mercê dos ultimatos dos
nossos parceiros.
Seremos capazes de entender os erros do passado? E tirar deles o proveito para
o futuro?”
*Professor universitário, sociólogo (Lisboa)
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Na foto: Propaganda
colonial-fascista de Salazar-Caetano
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