Nuno Saraiva –
Diário de Notícias, opinião
O que
verdadeiramente indigna nos tempos que correm é a frieza, a insensibilidade, o
descaramento e a desfaçatez. Já não vale sequer a pena repisar as mentiras ou a
incompetência evidentes de quem governa, porque, sobre isso, já quase tudo se
disse.
Ontem, na
Assembleia da República, entre o namoro ao Partido Socialista e as contradições
sobre a austeridade, Pedro Passos Coelho afirmava - sem se rir - que
"estamos melhor hoje do que há dois anos". Não sei se essa é a
realidade do primeiro-ministro, nem me interessa. O que verdadeiramente importa
notar nesta constatação é a cegueira obsessiva do chefe do Governo com o dogma
do "regresso ao mercado", ignorando por completo o rasto de
destruição que consta do seu balanço político. Passos Coelho faz lembrar aquele
ministro da propaganda iraquiano que, em Bagdad, com os tanques americanos
atrás de si, continuava a berrar, contra todas as evidências, que o inimigo
estava a ser dizimado.
Vejamos, pois, os
factos. Em julho de 2011, a
taxa de desemprego registada era de 12,3%. De acordo com o boletim de fevereiro
deste ano do Eurostat, a cifra de desempregados em Portugal é a mais alta de
sempre, atingindo os 17,5%. Em 2011, o montante da dívida pública era de 185,2
mil milhões de euros, que correspondiam a 108,3% do produto interno bruto (PIB).
Em fevereiro deste ano, a trajetória continua a ser ascendente e significa já
126,3% do PIB, o que equivale a 209 mil milhões de euros. O défice, é certo que
com recurso a receitas extraordinárias, fechou em 2011 nos 4,4%. No ano
seguinte, fixou-se nos 6,4%. E, este ano, o valor estimado e contratado com os
nossos credores após sucessivas revisões das metas é de 5%. As exportações, em
2011, conseguiram, apesar da crise internacional, um crescimento de 7,5%. As
previsões do Governo para este ano são de uma subida de 0,8% das vendas ao
exterior, o que quer dizer um arrefecimento brutal e, portanto, estagnação. Em
2011, Portugal registava um crescimento negativo de 1,7% do PIB. Dois anos
depois, para 2013, as previsões apontam para uma recessão ainda maior, a que
corresponde uma contração do PIB na casa dos 2,3%. Há dois anos, a fatura total
de juros a pagar pelos portugueses a quem nos empresta dinheiro era de 6,9 mil
milhões de euros. Em 2013, o valor aumenta e nós teremos de desembolsar, só de
juros, 7,2 mil milhões a serem entregues aos credores. Isto para já não falar
da espiral recessiva de que não se falava em 2011, do número de falências, da
destruição de emprego e da economia, das novas bolsas de pobreza ou da fome
"à séria" (tal como Passos Coelho disse ter havido nos anos 80) que
existem hoje, da emigração ou das metas constantemente falhadas e incumpridas e
que nos levam a constatar que todos os sacrifícios a que temos estado sujeitos
têm sido em vão.
Porém nada disto
importa a quem governa porque o fim do "regresso ao mercado" nos
prazos previstos parece justificar todos os meios para que a meta, qual alfa e
ómega da governação, seja alcançada. É verdade que os mercados desconfiam hoje
bastante menos de nós do que em 2011. As taxas de juro associadas às obrigações
do Tesouro emitidas a dez anos estão hoje nos 6,3%. Há dois anos, pouco antes
de Portugal ter solicitado o resgate financeiro, as rendibilidades negociadas
com os investidores para a mesma maturidade superavam os 10%.
Desse ponto de
vista, e só desse, estamos de facto melhor do que em 2011, mas por exclusiva
responsabilidade do BCE. Mas de que nos serve a credibilidade e a obediência
cega ao dogma financeiro - mesmo que saibamos hoje que a folha de cálculo, o
sacrossanto Excel, em que assentam os programas de austeridade do FMI está
errada - se continuamos subservientes, submissos, sem soberania económica e
financeira, incapazes de renegociar o óbvio apenas porque sim e, tão ou mais
grave do que tudo isto, parecemos estar hoje mais perto do que nunca da
tragédia de um segundo resgate?
Não sei se Passos
Coelho, Vítor Gaspar, Durão Barroso, Christine Lagarde ou Mario Draghi comem
credibilidade e juros da dívida. Mas o que sabemos, e à nossa custa, é que tal
como "a intriga", a "retórica inflamada" ou "as
jogadas políticas", também a benevolência dos mercados não acrescenta um
cêntimo, nem cria emprego.
Já agora, o
primeiro-ministro diz que não é "uma nova dose [de austeridade] que está
na forja". E diz a seguir que "as medidas que aí vêm vão causar mais
dor social ao País." Afinal, em que ficamos?
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