José Manuel Pureza
– Diário de Notícias, opinião
Diz a jornalista,
com o ar mais natural deste mundo: "Fulano tem um discurso mais
radicalizado, mais de esquerda." A coisa passa sem reparo e o ouvinte
constrói uma imagem acabada de Fulano. Nessa imagem, radicalismo e esquerda são
sinónimos e, implicitamente, direita e moderação também. Fulano diz que não
podemos pagar uma dívida como a que nos é exigida e é por isso um radical; já
Sicrano decide operar o maior corte de sempre na despesa social em Portugal
porque acha que é assim que tem que ser e é um moderado.
Portugal vive um
tempo dominado por estas estratégias de fabricação de um senso comum que
misturam sabiamente simplismo indolente com moralismo mesquinho. O País vive
amarrado a imagens e frases feitas, condenado a não as discutir. A força dessas
estratégias é aliás essa mesmo: as supostas verdades por elas produzidas são
tidas como absolutas e quem as questionar fica logo desqualificado como
extremista. Da mão cheia de exemplos, escolho duas dessas sentenças definitivas
sobre Portugal e a sua condição.
A primeira é a de
que o problema do País é não sermos empreendedores. Ela parte de uma
concordância indisfarçável com quem, lá fora, nos considera um povo de
preguiçosos. Os defensores da tese acham que a grande maioria dos portugueses
vive à sombra de direitos adquiridos, que isso é um convite à lassidão e que, por
não nos querermos submeter aos riscos da iniciativa própria, constituímos um
peso incomportável para as contas públicas. O empreendedorismo será a cura para
este mal endémico dos portugueses: em vez de exigirem ao Estado que cumpra
direitos que saem caro, montem um negócio, criem uma empresa, invistam na
inovação e adquiram competências para pôr tudo a render. Esta apologia do
"safem-se por vós próprios" tem, no entanto, um problema fundamental:
quem vive encostado aos subsídios, às rendas e aos favores do Estado é, de há
muito, a pequena elite que domina a economia portuguesa. É a essa casta e não
aos milhões de portugueses pobres que se deve exigir que sejam efetivamente
empreendedores e que adquiram competências para o ser.
A segunda verdade
fabricada para o senso comum sobre Portugal é que se não pagarmos aos credores
não teremos dinheiro para salários nem pensões. Sempre que a discussão sobre a
austeridade e sobre a despesa pública aquece, os arautos da coisa fazem questão
de a proferir como fecho de conversa. "Não há dinheiro, a não ser aquele
que nos emprestam", sentenciam eles. Mentem sobre o passado: quando a
troika interveio, as receitas do IVA eram superiores ao custo dos salários da
função pública e as receitas da Segurança Social chegavam para pagar as
pensões. Mentem sobre o futuro: obedecendo aos credores teremos um rácio da
dívida no PIB superior e não inferior. Com uma agravante: a recessão e o
empobrecimento tornam o respetivo pagamento cada vez mais impossível. Ou seja,
quanto mais obedecermos aos ditames da troika credora, menos dinheiro teremos
para pagar salários e pensões, não o contrário.
Mas a mais sórdida
das retóricas de senso comum sobre Portugal é o célebre "que se lixem as
eleições". Assim se insinua que em tempo de aflição financeira não há
lugar para jogos florais políticos. A coisa passa sem reparo e o cidadão
constrói uma imagem acabada da política. Nessa imagem, a democracia não é uma
escolha mas sim um jogo. Mas o cidadão atento e crítico não deixará de registar
que o mesmo Governo que deu esse recado moral simplório ao País escolheu o ano
de eleições para abrandar a austeridade. E perceberá então que quem condena por
palavras a política como jogo é quem quer fazer o jogo político na prática em
benefício próprio. Percebendo-o, o cidadão escolherá. É isso que quem fabrica o
senso comum mais teme.
Sem comentários:
Enviar um comentário