A mesma mídia que
hoje critica anseios democratizantes das comunicações no Brasil um dia defendeu
a importância de “uma política de concessões infensa a coronelismos,
complementada por eficaz legislação antitruste” e de “fortalecimento da mídia
eletrônica pública”. Esses trechos de editorial do ‘Estadão’, é claro, não
foram escritos sob o atual governo petista, mas em 2001, quando FHC estava no
comando do país. Por Maria Inês Nassif (que, com este artigo, marca seu retorno
à Carta Maior)
Maria Inês Nassif * - Carta Maior
Eis o receituário
contra “os ‘Big Brothers’ de todas as latitudes”, e para evitar o perigo à
democracia que a “TV lixo”, aquela que é “um brevê contra a inteligência e o
senso crítico dos espectadores”, pode representar em qualquer parte do país:
“De um lado, uma política de concessões infensa a coronelismos, complementada
por eficaz legislação antitruste, de defesa do consumidor e da concorrência,
contra a exacerbação predatória da lei do mais forte no mercado da indústria de
informação”; “de outro, o fortalecimento da mídia eletrônica pública,
independente tanto do Estado quanto da área privada e, mais ainda, protegida do
espúrio contubérnio entre ambos, que gera a ‘ditadura midiática’, na Itália, na
Bahia – e em qualquer lugar do planeta.”
Não se trata, leitor, de nenhum texto inspirado na 1ª Conferência Nacional de
Comunicação, ocorrida em dezembro de 2009, em Brasília, que discutiu
diretrizes, no âmbito da sociedade civil, para a regularização da mídia –
aquela conferência que a direita tratou como uma tentativa tomada de poder do
governo petista de Luiz Inácio Lula da Silva, via organizações populares. Não,
não é nenhuma peça subversiva e nenhuma ofensiva ao status quo da mídia
brasileira. É a conclusão de um editorial do conservador jornal “O Estado de S.
Paulo”, intitulado “Democracia e ‘ditadura midiática’” e publicado numa nobre
edição do domingo, dia 10 de junho de 2001.
Naquela época, todavia, o presidente do Brasil era Fernando Henrique Cardoso; o
presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães, havia renunciado ao mandato de
senador, depois de ter fraudado uma votação em plenário, e estava então em rota
de colisão com FHC, a quem servira desde o início do mandato; e o poder
econômico da mídia ainda não havia feito um pacto de não agressão contra um
inimigo maior, um governo de esquerda que enterrou duas gestões tucanas que
consolidaram no país o receituário conservador, político e econômico, que
grassava no mundo, sob o disfarce de modernidade.
ACM, segundo o editorial, era o espécime mais bem acabado do “coronelismo
eletrônico que grassava pelo país, em particular nos Estados do Nordeste: o
produto político da associação com “o principal conglomerado de emissoras de
TV” com os interesses de grupos políticos. Usando da associação com esse
conglomerado e da “fidelidade irrestrita à ordem ditatorial”, o senador baiano
construiu um “virtual monopólio de mídia e de acesso a verbas publicitárias
particulares e públicas [na Bahia], a começar do próprio governo estadual e da
prefeitura de Salvador, sob suas asas”.
No momento em que ACM caía no Brasil, na Itália ascendia novamente ao poder
Silvio Berlusconi – que chegara a premiê em março de 1994 usando o poder
econômico e um império de mídia eletrônica, renunciou em 1994 e chegava
novamente ao cargo pelos mesmos recursos, exercitando o que o presidente da
segunda emissora de TV italiana, Carlo Freccero, seu colaborador por mais de 20
anos, designava como “ditadura midiática” em um entrevista concedida na semana
anterior ao editorial ao semanário francês “L’Express”.
O ex-colaborador do premiê italiano, diz o editorial do Estadão, “sabe
perfeitamente como a hegemonia inconstrastável de um grupo de mídia sobre
o conjunto do setor [grifo nosso] pode ´lobotomizar´ toda uma Nação, em
proveito dos amigos políticos de seus colaboradores”.
“Se um país civilizado como a Itália pode tornar-se refém de um dublê de um
czar da mídia e de autoridade governamental, não são necessários grandes voos
de imaginação para prever o perigo que a “TV lixo”, como diz Frecero (...) pode
representar em outras paragens”.
A associação do “principal conglomerado nacional” – assim o editorial se refere
à Rede Globo – a interesses políticos variados apenas pode resultar em grande
poder político e econômico, concluiu o Estadão, ao analisar o caso ACM no
Brasil e antes de lembrar o caminho trilhado por Berlusconi para chegar ao
poder na Itália.
O editorial lembra a resposta dada pelo senador baiano ao repórter, sobre o que
faria depois de sua renúncia. ‘“Gostaria de dirigir a Globo”, respondeu,
risonho’, relata o texto do jornal. “Pode-se julgar como se queira a sua longa
trajetória na vida pública nacional e no seu estilo de atuação. Mas nunca, em
sã consciência, alguém lhe fará a injustiça de desconsiderar o seu faro
extremamente privilegiado para as fontes e os mecanismos de exercício do
poder”, conclui.
“Graças a esse dom, ele foi um dos primeiros políticos brasileiros, na passagem
dos anos 60 e 70, a
perceber a importância decisiva que teria o controle da mídia eletrônica para a
conquista de apoio popular, a consolidação das posições de mando alcançadas e o
uso da influência pessoal, assim amplificada, para o comércio de favores – o
que, por sua vez, asseguraria a reprodução do cacife político já amealhado”,
analisa o editorial, à luz da trajetória política e da sua construção como
empresário da mídia baiana, sob o abrigo e em associação com a maior rede
nacional de televisão.
Ele e Sarney entenderam isso, ele na Bahia e Sarney no Maranhão. Juntos, Sarney
como presidente, ACM como seu ministro das Comunicações e, ambos, associados à
“maior rede nacional”, mantiveram-se, daí como mandatários, o “coronelismo
eletrônico”, mesmo depois da redemocratização do país. “Ministro das
Comunicações do presidente José Sarney e tão ligado como ele à maior rede
nacional, ACM fez da outorga de concessões de emissoras de rádio e TV o
instrumento por excelência de seu ‘coronelismo eletrônico’, na apropriada
expressão do editorial de domingo passado do Jornal da Tarde”, continua o
jornal, em sua sessão de Opinião. É ele quem diz.
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* Colaboraram os
estagiários Caio Luiz Junqueira Hornstein, Roberto Campos Brilhante e Rodrigo
Giordano Stella
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