Presa na herança
estrutural terrível do passado, fragmentada por interesses neocoloniais, a
África não tem caminho fácil pela frente. Mas a nova consciência de sua
importância e dos seus direitos, agora que economias dominantes estão em crise,
abre muita esperança. É a ideia de uma África emergente.
Ladislau Dowbor* -
Carta Maior
A África continua a
ser apresentada como o continente da violência e da miséria. A realidade é que
ambas as avaliações são corretas, mas enganadoras. Primeiro, porque francamente
não é um privilégio africano, as tensões estão se avolumando por toda a parte,
e a miséria acumulada em outros continentes é imensa, sem falar da nova miséria
nos Estados Unidos e na Europa. Segundo, porque ao lado da pesada herança, há
um movimento pujante de transformações. Há inclusive um movimento recente,
estudos científicos sobre por que o jornalismo sobre a África insiste sempre na
visão simplificada de pobreza e desgoverno, como se o prisma impossibilitasse
uma compreensão das mudanças.
O ‘Economist’ (March 2nd 2013) lançou um relatório especial interessante,
‘Emerging Africa’, referindo-se não mais a um continente desesperado, mas
esperançoso (A Hopeful Continent). A África está crescendo a um ritmo de quase
6% ao ano, os investimentos diretos externos subiram de 15 bilhões de dólares
em 2002 para 46 bilhões em 2012. O comércio com a China saltou de 11 para 166
bilhões de dólares em uma década. Com a crise financeira mundial, muitos
capitais estão fugindo da especulação ou do 1% ou menos que pagam os fundos
públicos, e buscando novas oportunidades. Um continente que cresce rapidamente
e pode rentabilizar investimentos atrai mais do que o marasmo dos países ricos.
Em termos institucionais, praticamente todos os países da região estão dotados
de mecanismos democráticos, frágeis como em toda parte, mas progredindo. A base
de impostos é ainda muito pequena, mas aumentando, o que permite a expansão de
serviços públicos. A corrupção nos grandes contratos continua forte, mas
estamos aprendendo a ver as coisas melhor, com os dados de James Henry,
amplamente divulgados pelo ‘Economist’ (Feb 16th 2013). No mundo são 20
trilhões de dólares em paraísos fiscais – dinheiro de drogas, evasão fiscal,
tráfego de armas, corrupção – cerca de um terço do PIB mundial. As três
principais praças de dinheiro ilegal são Delaware e Miami nos Estados Unidos, e
Londres. Os 28 principais bancos mundiais, os “sistemicamente significativos”,
estão respondendo a processos por fraude, lavagem de dinheiro e outros crimes,
e são basicamente europeus e americanos. Barclays, HSBC, UBS,
Goldman&Sachs...O aliás Brasil contribui com 520 bilhões de dólares em
dinheiro ilegal no exterior, 25% do PIB brasileiro, coisa que deveria deixar o
STF sonhando um pouco mais alto. Não é privilégio da África, e obviamente os
montantes não se comparam.
Confirma as novas esperanças a reunião anual conjunta da Comissão Econômica da
África e da União Africana, em Abidjan, nos dias 26 e 27 de março de 2013.
Presentes 54 países africanos, 40 ministros de economia, 15 presidentes de
bancos centrais. Só africanos. Uma reunião sem palestras, apenas intervenções
curtas de tomada de posição. Na pauta, uma visão geral que podemos chamar de
África para os africanos, Africa First, uma tomada de consciência do valor que
representam os seus recursos naturais, que vão do petróleo até as suas imensas
reservas em solo e água, e da necessidade de repensar o conjunto dos
relacionamentos para dentro e para fora do continente.
A ordem não é mais o “ajuste estrutural”, como foi ditado pelo FMI e países
dominantes, e sim a “transformação estrutural.” Numa era de sede planetária por
recursos naturais, a África se vê com muita capacidade financeira. Inicialmente
utilizados para um consumo de luxo por elites, gradualmente estão sendo
deslocados para lançar os fundamentos de uma nova capacidade econômica. Infraestruturas,
banda larga generalizada, educação, e produção local. Em particular, está sendo
discutida uma industrialização centrada no aproveitamento dos próprios recursos
naturais que geraram estas capacidades financeiras. Ligar a agro-exportação ou
a extração mineral a exigências de investimentos locais a jusante e a montante,
dinamizando fornecedores locais e agregando valor aos produtos transformados.
Criou-se uma articulação entre três instituições de primeira importância, a
Comissão Econômica para a África (UNECA), a União Africana (UA) e o Banco
Africano de Desenvolvimento (BAD). Junta-se assim a capacidade de informação e
análise, a base política e a capacidade financeira. Ou seja, criou-se,
incorporando iniciativas anteriores como a NEPAD, um instrumento de orientação
pan-africana das iniciativas de cada país. Isto é vital para um continente onde
as infraestruturas e circuitos comerciais nasceram fragmentados e centrífugos,
cada país dispondo por exemplo de uma ferrovia ligando a região de exploração
de recursos com o porto de exportação, mas com quase nenhuma articulação
interna. Isto é familiar para o Brasil, onde praticamente todas as capitais são
portuárias, e onde nos falta ainda uma ligação decente transcontinental, isto
que a bacia econômica do mundo está se deslocando para o Pacífico. Aliás a
América Latina pode neste sentido também ser vista como um subcontinente oco,
com um miolo relativamente vazio.
Foram aprovados nove eixos que deverão orientar o desenvolvimento econômico e
social nesta década: apoio técnico à política macro-econômica; integração
regional das infraestruturas e trocas comerciais; tecnologias para a
apropriação dos recursos naturais africanos de maneira sustentável (‘African
Mining Vision’ entre outros); aprimoramento e gestão em rede dos sistemas
estatísticos para monitorar a formulação de políticas; desenvolvimento das
capacidades institucionais; desenvolvimento de subprogramas de promoção e
inclusão da mulher nas atividades econômicas e sociais; organização de subprogramas
integrados para as cinco regiões que compõem o continente (Central, East, North,
Southern, West Africa); investimento na capacidade de planejamento e
administração nos países membros; políticas de desenvolvimento social, com
particular atenção para as políticas de emprego e voltadas à juventude.
As propostas culminaram na aprovação oficial na reunião de Abidjan, mas haviam
sido amplamente negociadas com todos os países da região. Segundo o documento
aprovado, “o consenso nas visões que emergem é que se tornou imperativo para a
África usar o crescimento atual como plataforma para uma ampla transformação
estrutural. Para fazê-lo, deverá empoderar-se para contar a sua própria
história, e a sua política de desenvolvimento deverá colocar ‘Africa First’. Isto
também significa uma contínua e estreita colaboração entre as três instituições
pan-africanas, ADB, AU e ECA, para assegurar coerência e sinergia na
implementação do programa.”
Interessante notar que havia na reunião apenas alguns convidados não africanos,
dos quais dois brasileiros: Glauco Arbix, presidente da FINEP, particularmente
interessante para as políticas de inovação que os africanos querem dinamizar, e
eu que escrevo estas linhas, como convidado especial, pelo interesse dos
ministros em ouvirem como o Brasil articula políticas econômicas e sociais.
Francamente, como trabalhei sete anos em diversos países da África, tentando
ampliar capacidades estatísticas e de planejamento, já tinha visto muitas
reuniões “decisivas” e pouco transformadoras. Na minha compreensão e
conhecimento, aqui realmente estamos assistindo a algo novo. Sobre tudo porque
além de discursos e compromissos, geraram-se instituições de gestão das
resoluções, não criando novas burocracias, mas articulando as três instituições
que no contexto africano demonstraram a sua capacidade.
Presa na herança estrutural terrível do passado, pião de interesses mundiais
contraditórios na guerra fria, manobrada e fragmentada por interesses
neocoloniais, apropriada e corrompida por corporações transnacionais, a África
não tem caminho fácil nem rápido pela frente. Mas a nova consciência do seu
peso, da sua importância e dos seus direitos, no momento em que as economias
dominantes estão enredadas com as suas próprias desgraças, abre sim muita esperança.
É a ideia de uma África emergente.
* Ladislau Dowbor é professor da PUC-SP
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