Fernanda Câncio –
Diário de Notícias, opinião
Aconselhável
resistir a apodos excessivos. Estamos todos saturados de comparações idiotas,
histéricas, demagógicas, caluniosas, odientas. Foram gastas, como os gritos do
Pedro da história do lobo, antes do tempo, antes do lobo.
Estamos todos
fartos de quase tudo, a começar por toda esta incompetência quase surreal, esta
irresponsabilidade que desafia adjetivos, este desafio permanente ao bom senso
e ao bom gosto que faz parecer normal a um primeiro-ministro anunciar, com
contabilização de "poupanças" e tudo, medidas causadoras de enorme
alarme social que afinal não tencionava efetuar; a um ministro das Finanças que
não assegura uma única previsão, uma única conta, emproar-se na sua monocórdia
assegurando, enojado, que coisíssima nenhuma, não foi eleito; a um líder do
segundo partido da coligação declamar à Nação as dissensões no Conselho de
Ministros e quantas medidas o PM e o ministro das Finanças queriam e ele
impediu e como, sacrificado e contra, claro, o seu interesse pessoal e até por
vezes a sua consciência (que acha que tem), nos governa para nos poupar a males
piores; a um Presidente renegar tudo o que disse até março sobre a espiral
recessiva e tudo o que não disse, até junho de 2011, sobre a crise
internacional, e passar a propagandista número um do Governo, recuperando,
agora a benefício do antes tão detestado Passos, o seu "deixem-nos
trabalhar".
Estamos tão fartos
que nos falta o que dizer, o que mais dizer. Como falta o som no grito do
quadro do mesmo nome, como quando nos sonhos ficamos especados e mudos no
perigo, incapazes de pedir socorro, de reagir, hipnotizados. Estamos tão fartos
que um Gaspar dizer "olhem como é bonito o ajustamento português" nos
deixa átonos, talvez até nos faça rir - é tudo tão irreal, tão ridículo, tão estulto
que rir parece a única coisa sensata, a única maneira de lidar com esta
loucura, a única forma de não ser consumido pelo desespero de ver um país
destruído por gente de um calibre que apesar de tudo ainda não tivéramos o azar
de ver, em tal dose, ao leme.
Que fazer,
perguntava Lenine. Deitemos fora as respostas de Lenine, outro iluminado dos
amanhãs que sabemos bem como cantaram, fiquemos com a pergunta. Tem de haver
qualquer coisa que se possa fazer, em democracia, quando a democracia é
sequestrada - sob pena de não ser democracia. Tem de haver qualquer coisa que
se possa dizer para acordar os que, dormentes, assistem a isto como se não
pudesse ser verdade. Não, não é a gritar fascismo, nem nazismo, nem que está
toda a gente a morrer de fome ou a suicidar-se aos magotes. Não, não é de
buíças que precisamos, sequer da memória deles. Nem de hipérboles, tiradas
piedosas ou indignações espúrias. Precisamos de fúria.Não promessas sem osso,
não estratégias para ganhar tempo. Não temos tempo - tenhamos o que nos resta,
se nos restar coragem.
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