segunda-feira, 10 de junho de 2013

A 26ª HORA

 


Rui Peralta, Luanda
 
I - Um dos chavões absorvido pelas periferias da actual economia-mundo é o empreendedorismo. A coisa é apresentada às novas colónias como a panaceia que vai resolver todos os problemas a curto, médio e longo prazo. Os promotores da ideia vendem-na, como se fosse um elixir mágico, um pouco como vemos nas produções de Westerns Hollywoodescos, em que sempre surge a figura do “Doc”, um vendedor de banha da cobra. No fundo o alicerce da ideia consiste no seguinte: o espirito empreendedor gera pequenos negócios que podem resgatar uma economia em dificuldades.
 
A coisa é tão levada a sério que em alguns países os cérebros dos miúdos são lavados na escola (pode haver buracos no tecto e falta de cadeiras e de carteiras, ou o professor parecer um maltrapilho, mas á aulas de empreendedorismo) e nas universidades (para as privadas dá um certo jeito, pois assim é uma forma de garantir que os alunos paguem as mensalidades). Aliás as instituições privadas de ensino superior (o lucrativo negócio das universidades) utilizam o empreendedorismo como justificação da sua existência. São pouco “académicas”, mas são empreendedoras (por isso estão no negócio da venda de canudos, baseado no mérito do bolso, que a inteligência não é para ali chamada, só se for a Intelligence).
 
O Afeganistão não é a excepção que confirma a regra e um informe da ONU permite observar que o espirito empreendedor obteve um incremento de 18% no sector do comércio de heroína, durante o ano transacto. Esta é a demonstração de que o empreendedorismo pode produzir milagres, mesmo nas circunstâncias mais desfavoráveis. Basta espirito empreendedor (o olho para o negócio), um produto popular e uma boa promoção, ou seja um marketing direccionado e zás! Sucesso á vista e economia resgatada! E até nem é preciso muita estratégia, basta um pouco de “estrategia”.
 
II - Uma das razões que Blair invocou para a invasão e ocupação do Afeganistão (para além do blablá sobre o terrorismo e as armas de destruição em massa) foi o facto de os Taliban provocarem a morte dos jovens súbditos de Sua Majestade, por permitirem a produção e o tráfico da heroína que os jovens súbditos compravam nas ruas das cidades do Reino Unido. Outro motivo para a invasão foi a corrupção (parece que os Taliban eram muito corruptos e ganhavam comissões andrajosas com o comércio das burcas) mas tal não impediu que o presidente afegão recebesse, regularmente, envelopes bem recheados de USD, nos últimos onze anos.
 
O New York Times, no início de Maio, referiu que o presidente Harmid Karzai recebia o dinheiro e Karzai apressou-se a explicar, no mesmo dia em que o ministro das relações exteriores afegão desmentia, que aquele dinheiro, enviado pela CIA, era para pagar aos líderes tibais e chefes de clãs que se mantivessem leais ao governo afegão.       No entanto são estes mesmos senhores da guerra, os maiores produtores de papoila e inclusive uma das suas reivindicações prende-se com o facto de ganharem apenas um por cento do valor final do produto no mercado, por isso propondo, este empreendedores da papoila, que o governo deveria ter uma política de protecção aos produtores, criando incentivos que permitissem uma maior participação dos produtores no processo de distribuição. 
 
E aqui entramos no cerne da questão: o desmembramento do país e a destruição do Estado, causados pela guerra de invasão e pela ocupação. Como é que um Estado é de tal forma incipiente e fragilizado, que tem de comprar os clãs e chefes tribais, para garantir lealdade? E porquê a CIA a financiar os senhores da guerra, que são os produtores de papoila e que vivem principescamente com o negócio da droga? É que não estamos na presença de qualquer política relacionada com subsídios de compensação, para que os clãs e os grupos tribais afegãos deixem de produzir papoila, mas sim, dinheiro clandestino, da CIA, para comprar a lealdade das autoridades tradicionais.
 
III - A debilidade institucional foi visível no bloqueio que o parlamento afegão fez á legislação sobre os direitos da mulher, aprovada pelo presidente em 2009. Afirmando que a Lei para a Eliminação da Violência Contra a Mulher é anti-islâmica o bloqueado parlamento (bloqueado pelos senhores da guerra, que impedem o exercício do poder legislativo) bloqueou a discussão e a eventual aprovação da lei. 
 
Os objectivos desta legislação eram a proibição das sevícias e castigos impostos às mulheres afegãs, a proibição dos matrimónios infantis e dos casamentos forçados, para além de constituir uma base para a criação de uma lei do divórcio. E não se pense que este documento era profundamente transformador da realidade da mulher no Afeganistão. Era tímido e ligeiramente reformador, apenas. Os matrimónios passariam para os 16 anos e as esposas deixariam de ser quatro e passariam a ser duas, estes apenas alguns exemplos, suficientes para observarmos o cariz da lei.
 
Mas os parlamentares (ou para lamentares, como dizia o saudoso Paulo Jorge) pagos pelo dinheiro da droga dos senhores da guerra, nem quiseram ouvir falar no assunto e inclusive acusaram o presidente afegão de ser anti-islâmico, por ter assinado a lei, obrigada á aprovação do legislativo. Fawzia Kufi, a presidente da comissão da mulher, no parlamento afegão, afirmou, perante os 244 “para lamentares” que constituem a população de deputados, que ela e as deputadas continuarão a lutar pelo direito das mulheres no país, direitos sufocados pelos fascistas Talibans, cujas leis continuam vigentes.    
 
IV - São muitos os problemas dos cidadãos afegãos. Miséria, desemprego em massa, o fascismo islâmico, o espezinhar dos direitos das mulheres, o narcotráfico, os senhores da guerra, ausência de políticas sociais, um país sem sistema público de saúde, sem sistema público de educação, enfim, um inferno. Mas existem pesadelos que tiram o sono a qualquer cidadão afegão: os drones, os bombardeamentos aéreos, as incursões nocturnas e as ameaças talibans.
 
No início deste ano, ouve um ataque suicida no aeroporto de Cabul. Eram 6 horas da manhã. Os helicópteros e tanques da NATO controlaram de imediato todas as estradas e vias de acesso ao aeroporto. Uma carrinha que se dirigia para o aeroporto, foi detectada e em vez de identificarem os seus ocupantes, os mercenários da NATO decidiram que os mesmos eram terroristas e a partir dos helicópteros bombardearam o veículo. Os ocupantes abandonaram o veículo e tentaram protegeram-se nas bermas da estrada. Em vão. Um míssil explodiu no local onde os homens se abrigaram, ferindo dois homens e matando um.  
 
Perante a aproximação de um tanque norte-americano, um dos homens, que falava inglês, pediu ajuda aos soldados que acompanhavam o tanque, enquanto o outro mostrava a sua identificação, tentando explicar que era medico no hospital central de Cabul. Só que os soldados da NATO ficaram a aguardar instruções dos seus oficiais, via rádio e os homens acabaram por morrer, sem tratamento. Um deles, Siraj Ahmad, médico, 35 anos, quatro filhos, o outro, de 30 anos, deixou também quatro órfãos.
 
Estes são pesadelos diários do inferno afegão e ocorrem á anos. Por exemplo, em 2009, uma festa de casamento foi atacada por forças da OTAN. Morreram todos os participantes, 54 pessoas, entre mulheres, idosos e crianças, excepto o noivo, cujo casamento apenas serviu para lhe proporcionar as obrigações de viúvo. Existem aldeias que são subitamente invadidas pelos soldados da NATO, sem qualquer explicação aparente e depois de interrogatórios sumários e maus tratos as forças da NATO abandonam as aldeias tão subitamente como a invadiram.
 
As causas deste tipo de acções são causadas pelas denúncias anónimas. Foi o que aconteceu no início de Maio deste ano, em que um telefonema anonimo denunciava que os taliban tinham entrado numa aldeia da província de Jalabad. Pelas 10 horas da manhã as forças da NATO ocuparam a aldeia. Entraram nas casas e fecharam as mulheres e as crianças na casa do chefe da comunidade. Procederam a interrogatórios, maus tratos e insultos, aos homens da aldeia e chamavam as esposas e os filhos dos interrogados para assistirem ao interrogatório. Acabaram por abandonar a aldeia ao fim da tarde, depois de se certificarem que tinha sido uma falsa denúncia.
 
Nas zonas rurais as famílias já aprenderam a lidar com estas situações. Aperceberam-se que os mercenários ocidentais agiam sempre que existia disputas entre as famílias (situações frequentes nas zonas rurais, onde as famílias disputam terras, bens, etc.). Hoje as disputas são menores e feitas longe dos olhos das forças da NATO. Mas a maior causa de mortes, nas áreas rurais e nas zonas urbanas, são devidas ao facto de os soldados da NATO procederem sem perguntar primeiro, tentarem descobrir o que se passa, ou verificarem as veracidades das denúncias. 
 
Também no início do passado mês de Maio, na província de Kunar, 12 crianças, com idades compreendidas entre os 7 e os 9 anos apanhavam lenha nas montanhas. Um avião que por ali passou, considerou os movimentos estranhos e disparou para as crianças, matando-as. As famílias quando depararam com os corpos despedaçados das crianças pediram explicações ao governo provincial, que contactou as forças da NATO, que apenas disseram ter-se tratado de um erro de identificação aérea.  
 
Em Abril deste ano, em Chapria Marnu, três agricultores regavam os seus campos de trigo. Duas crianças, filhas de um deles, brincavam no campo. Eram cerca de 15 horas e 30 minutos, quando chegaram onze tanques da NATO. Um dos tanques disparou dois misseis. Resultado: um jovem agricultor, com 18 anos, dois agricultores de 45 anos e duas crianças, foram despedaçados e os seus corpos espalhados pelos campos de trigo de Chapria Marnu. Motivo? Um erro de identificação e má interpretação dos seus movimentos considerados suspeitos pelos soldados ocidentais.
 
V - A comunidade internacional não tem o hábito de fazer perguntas sobre os cidadãos afegãos. É como se constituíssem um buraco negro na cidadania global. Os afegãos são representados sempre por tipos barbudos, que escondem as mulheres e que têm um ódio visceral ao Ocidente. As notícias que surgem sobre o Afeganistão referem-se sempres á morte de soldados da NATO, ou às operações dos soldados norte-americanos, sendo os afegãos os personagens dos carros armadilhados, sempre prontos a eliminar ocidentais. 
 
As mortes de cidadãos afegãos são “danos colaterais”, coisas que acontecem na vida e entram nas estatísticas como “coisas que acontecem quando se está no sítio errado, á hora errada”. Ou seja, os afegãos no seu próprio país têm sítio e hora marcada, senão podem acontecer-lhes “aquelas coisas da vida”. Têm de suportar a humilhação provocado por mercenários ocidentais que entram a vociferar pelas suas casas sem baterem á porta, a qualquer hora do dia ou da noite. Têm de tremer com as explosões que se fazem ouvir por toda a parte e serem vítimas de balas perdidas, de drones, de erros e de “má identificação”.
 
Foram vítimas de uma monarquia patética, assente nos valores tribais retrógrados. Mais tarde, quando tudo parecia que ia caminhar, foram vítimas de uma Revolução feita em nome deles, mas que, afinal não era para eles, eram apenas interesses do grande vizinho. Depois veio a guerra sem fim, a instabilidades do regime dos narcotraficantes da Aliança do Norte. Seguiu-se a barbárie fascista dos Taliban e são agora vítimas da barbárie “democrática” dos norte-americanos e seus aliados.
 
A 25ª Hora é uma obra que nos descreve os horrores passados na 2ª Guerra Mundial, na Roménia. O personagem é um romeno que levou uma vida trágica, antes da guerra, durante a guerra e após a guerra. É o absurdo da existência. É o “dano colateral” o estar “no sitio errado á hora errada”. No Afeganistão há homens e mulheres que sofreram e sofrem a mesma existência absurda. Só que ali a hora não seria a 25ª. Por ali o absurdo da existência, de tão acumulado, começa na 26ª hora.

Fontes
The New York Times, May, 5, 2013
 

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