Nas últimas
semanas, a repressão policial contra manifestantes do Movimento Passe Livre
expõe as vísceras de uma PM que sempre torturou, espancou e matou na periferia
e no campo, protegida pelo sistema judicial. Por Maria Inês Nassif
Maria Inês Nassif –
Carta Maior
No momento em que o
país, pela primeira vez, se debruça sobre o seu passado, conta os mortos e
desaparecidos da ditadura, aponta torturadores e mostra para a sociedade que
não esqueceu as sequelas físicas e psicológicas impostas pela tortura, um
aparato militar é colocado contra jovens desarmados e, na frente de câmeras de
televisão e de celulares perpetra toda sorte de horrores contra moços e moças
que poderiam ser nossos filhos – filhos daqueles que foram às ruas ou
organizaram a resistência contra o regime militar. Na blogosfera, existem
relatos de toda sorte de horrores: policiais que miram e atiram balas de
borrachas contra jovens ajoelhados e de mãos para cima; jornalistas atingidos
por projéteis cuidadosamente atirados em suas cabeças, de preferência à altura
do olho; casal tirado de dentro de um bar e espancado na porta – o rosto do
policial que espanca expõe ódio à menina de uns 20 anos, que espanca com o
cassetete; e até casos de abuso sexual – o policial que rasga a camiseta do
Movimento Passe Livre trajado pela garota e ameaça também tirar o seu sutiã
para levar como “souvenir”.
A galeria de horrores expõe a pior herança que trazemos do período da ditadura
militar (1964-1985). A Constituinte de 1988, que limpou grande parte do
“entulho autoritário” trazido do período negro da história brasileira,
enfrentou forte resistência militar quando tentou uma reforma na estrutura
coercitiva que mantinha o sistema anterior. Com o tempo, governos democráticos
conseguiram criar um Ministério da Defesa e colocar todas as pastas militares
sob um comando civil, mas a estrutura militar incrustrada no aparelho policial
dos Estados permaneceu intocada. É uma estrutura militarizada estadual que
adere idelogicamente apenas a governos de perfil conservador; tem uma enorme
autonomia de métodos – e onde a execução sumária e a tortura figuram,
intocáveis, contra populações de baixa renda; reproduz fartamente preconceitos
(contra pobres e negros, especialmente os jovens, mendigos e demandantes
sociais). Atua de forma muito complementar com a ausência de justiça ou justiça
seletiva – juízes muito vinculados ao status quo de localidades conflagradas
por litígios de terra, para os quais a propriedade naturalmente pertence ao
poder político ou econômico.
Desde a redemocratização, todos os casos de massacres envolvendo conflitos de
terras – de sem-terra, posseiros ou índios – tiveram a Polícia Militar como
algoz, a mando da justiça seletiva. Nas cidades, as reintegrações de posse
tiveram os mesmos protagonistas – de um lado, pobres; de outro, política e
justiça. Essa dupla reduz de maneira drástica a possibilidade de mediação de
conflitos de governos eleitos democraticamente eleitos.
A não justiça atua em conjunto com a Polícia Militar nas periferias das grandes
cidades e nas áreas conflagradas do campo onde há uma privatização da decisão
de “imposição da ordem”. Nesses locais, a polícia, não raro, age como milícia.
A escolha de vítimas traz a marca do preconceito: nas periferias dos grandes
centros, as altas taxas de mortalidade de jovens trazem como vítimas
preferenciais jovens pobres e negros, do sexo masculino. No campo, líderes
rurais.
Nos grandes centros, quando o Estado perder o controle sobre a sua polícia, o
resultado pode ser aterrador. Em 2006, o PCC, falange criminosa que age nos
presídios, articulou de lá de dentro a morte de 43 agentes policiais em São
Paulo. Em represália, a polícia – também de Alckmin, que já está no terceiro
mandato de governador – executou quase 500 pessoas, a grande maioria jovens
pobres, moradores da periferia, sem ficha na polícia. O crime, neste caso, era
a pobreza. A não justiça jamais apurou as circunstâncias da morte dessas
pessoas.
Os acontecimentos da última semana também mostram uma PM sem controle – ou
melhor, uma Polícia Militar que foi colocada na missão de reprimir jovens que
foram às ruas protestar e atrapalharam o trânsito e a vida e a economia da
cidade que tem o maior PIB do país, cumpriu a missão com uma violência
desmedida e acabou colocando o chefe maior, o governador de Estado, em maus
lençóis. A ideia de ser “firme” contra os manifestantes, que normalmente dá
votos num Estado conservador como o paulista, acabou sendo uma má ideia. Desta
vez, estavam nas ruas os filhos da classe média. Contra eles, a violência
despendida regularmente pela polícia de Alckmin na periferia, sem que a
corregedoria da PM, o Estado ou a Justiça coloquem nenhuma barreira, ganhou
publicidade.
A violência da PM contra manifestantes expõe à sociedade, e aos amantes da
democracia, um ponto fraco sempre escondido debaixo do tapete da corporação
militar e desprezado pela Justiça. O aparelho repressivo da ditadura foi
preservado e vem à tona, violento, arrasador, desmedido, em situações de
conflito. Está na hora de construir instituições novas, de democratizar os
aparelhos coercitivos do Estado que, por virem do passado autoritário, têm uma
autonomia enorme em relação ao próprio Estado democrático. E a democracia, sem
o apoio de instituições verdadeiramente democráticas, torna-se muito relativa.
Essa é a lição dos últimos dias, que não pode ser deturpada por aqueles que
usam esses aparelhos de coerção (polícia e justiça) dominados ainda pela
cultura da ditadura para se sobrepor à decisão democrática do voto. Na
internet, surgem mensagens que tentam vincular a violência policial a desmandos
de políticos e governo federal, um discurso de direita dirigido a um pretenso
público internacional para denunciar um conluio entre políticos, que teria
resultado em violência contra manifestantes. Lá pela última frase, em um desses
vídeos, o jovem arrumadinho que fala muito bem o inglês prega uma frase de
resistência contra um sistema político definido pelo voto (“apesar” do voto,
diz ele) – como se o voto tivesse permitido o conluio e ele, jovem, transmutado
em manifestante (não tem cara), fosse a alternativa a esse voto equivocado. Que
fique claro: o voto é democrático; a polícia violenta nas ruas, não. A política
é passível de mudança pelo voto; a polícia, apenas pela consciência da
sociedade e pela vontade de enfrentar e tirar a fórceps da nossa memória e das
práticas das instituições a herança da ditadura militar.
Contra a violência, a democracia. Com o voto, os cidadãos devem exigir dos
governantes que comandam a PM, e dos legisladores eleitos para mudar leis, que
transformem as polícias em instituições transparentes, democráticas e aptas a
tempos novos onde se produz, na área social, tantos reconhecimentos a direitos
de cidadania.
Fotos: EBC
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