Advertência ao
leitor: prepare o seu lencinho porque vai chorar, pois o que ler é mesmo para
fazer verter lágrimas, muitas.
Nem tudo na
Guiné-Bissau é política, ou pelo menos política dura, suja e violenta. E nem
toda a gente transpira corrupção e droga. Há muita gente boa (e alguma má) em
todos os grupos sociais e em todo o lado neste nosso mundo. Posso citar muitos
países na África, da Ásia, Europa, Américas, onde, em termos per capita, há
mais sacanagem e mais crimes se praticam do que nesta Terra de Deus, a
Guiné-Bissau.
Esta é uma terra
abençoada com muita água, chuva, rios e lagos. Um mar muito, muito rico. Mas
esta enorme riqueza marinha está a saque em pleno dia por centenas de
traficantes, oriundos de países que falam muito sobre a droga na Guiné-Bissau,
mas não dizem uma palavra sobre a pesca ilegal, espoliando e levando à ruína
milhões de gentes simples de toda esta região da África.
Enquanto o vizinho
Senegal está sendo devorado pelo deserto do Sahel, asfixiado pela poeira, a
Guiné-Bissau exibe verdura luxuriante, com belas florestas de madeiras raras
que ate atraem comerciantes sem escrúpulos do Império do Meio.
A Guiné-Bissau foi
também abençoada com um povo bom, avesso à violência. Aqui há tradições ricas,
profundas, místicas, difíceis de decifrar; há dança, música, poesia, cinema.
Já fui a um
concerto de jazz com orquestra. No passado, fui frequentador dos grandes clubes
de jazz em Greenwich Village, Nova Iorque, mas um concerto de jazz com uma
orquestra sinfónica, só em Bissau! Foi no Centro Cultural Francês, com
agendamento cultural variado toda a semana, onde assisti a esse fabuloso
concerto de jazz apresentado por um famoso grupo alemão. O Centro Cultural
Francês é um magneto na cidade, atraindo centenas de pessoas, de todas as
idades, cada semana.
O Centro Cultural
Brasileiro não fica atrás, com muitas atividades culturais, musicais,
literárias e cinematográficas de grande qualidade.
O Centro Cultural
Português é muito mais parco em atividades. Sou bem timorense, mas a minha
costela luso-judaica faz-me viver e sofrer com Portugal e fico triste quando
oiço falar deselegantemente do CCP. Dizem que ali só há o jornal “A Bola”! Dou
a mão `a palmatória…ainda não fui lá. Hei-de ir e tenho esperança em desaprovar
aqueles que falam mal do Centro Cultural Português. Vou descobrir que, além do
venerado jornal “A Bola”, há muito mais eco da grande herança cultural
portuguesa.
Políticos não
faltam na Guiné-Bissau. Há mais de 30 partidos políticos. Isto significa que
não falta gente com ambição de governar. Há também universitários sem conta,
desde advogados a economistas, até médicos. As Forcas Armadas têm oficiais
altamente formados, licenciados e mestrados. Ouvimos falar apenas no General
António Injai, mas há muitos outros, jovens e de grande intelecto.
E aqui atribuem-se
todos os males, dos pequenos aos mais graves, aos militares. Pude comprovar
alguns incidentes em que, com a maior desenvoltura, se acusava os “militares”
para, após alguma averiguação por mim feita, se vir a concluir que, afinal,
nenhum militar estivera envolvido.
Há comerciantes
experientes, relativamente bem sucedidos, aqui e na região. Mas, então, porquê
esta estagnação e depauperamento? Hoje decidi escrever só sobre as coisas boas,
pois das más toda a gente escreve.
E vou partilhar com
vós (sim…com vós…não digo convosco, pois gosto mais de dizer com vós…) uma história
bonita, que faz chorar.
É a história do
Adile Sebastião. Ele é o segundo de sete filhos do casal Domingos Armando
Sebastião, empregado comercial de 60 anos, e Abelina Biaguê, doméstica e
vendedora, de 51.
Conheci-o há umas
semanas, quando aceitei um convite para assistir a um jogo de futebol promovido
pela Academia Fidjus de Bideras (crioulo), o que em português significa “Filhos
das Vendedeiras”. O estádio, recém construído pela cooperação chinesa, fez-me
inveja, sendo timorense. Nós, em Timor-Leste, temos um estádio que, mesmo
depois da sua reabilitação, não tem sequer metade da dimensão e condições deste
estádio de Bissau.
Ele e seus amigos e
companheiros de pobreza e luta decidiram criar esta academia em homenagem às
suas mães, mulheres simples, dignas, trabalhadoras, que cada dia labutam no
mercado a vender comidas para recolher algum dinheiro destinado à sobrevivência
da família.
Eu fui a esse
mercado, uma manha, há uma semana, e assim conheci as mães “Bideras”. Conheci a
mamã Abelina, mãe do herói deste meu conto de hoje.
A Dona Abelina tem
51 anos, mas podia ter 71; magra, pele seca, cara sorridente, vestida muito
simples, pé descalço. Ela vende uma espécie de canja, que prepara em casa e
leva de manhã cedo para o mercado.
Senti-me pequeno
perante a dignidade daquelas mães de pé-descalço. Receberam-me com calor,
alegria, algumas com lágrimas nos olhos. Eu era a primeira pessoa “importante”
a visita-las.
O meu herói de hoje
– de nome Adile Sebastião – nasceu em Bissau e aqui estudou até ao 7º ano.
Agora, pelas suas próprias palavras:
“Hoje, 11 de Junho,
faz precisamente 15 anos que deixei a Guiné com medo da guerra. Saímos num
barco da marinha senegalesa que tinha trazido militares para combaterem ao lado
do então Presidente Nino Vieira e, no regresso, evacuou cidadãos estrangeiros.
Nem sei como, mas entrei no barco e fui parar a Dakar. Três dias depois, um
senhor cabo-verdiano, também ele refugiado no mesmo centro de acolhimento, teve
pena de mim e ofereceu-se para me levar para a sua casa em Cabo-Verde. Tratou
da papelada e seguimos num voo da força aérea portuguesa. Em Cabo-Verde, eu
mantinha-me sempre ligado à RDP-África, para ter informações sobre a situação
na Guiné. Foi assim que descobri que uma fragata portuguesa estava a caminho de
Praia, com refugiados guineenses. Fui ao porto para ver se via algum familiar,
pois o último contacto havido com a minha família fora há uma semana e não
sabiam do meu paradeiro. No porto, soube que iam para o aeroporto e, depois,
para Portugal. Segui para o aeroporto e acabei por me juntar a eles, e fui para
Portugal. Estava a quatro meses de completar 13 anos.
“Em Portugal,
encaminharam-me para a Mansão Santa Maria de Marvila, uma instituição da Igreja
Católica, onde permaneci, mais ou menos, uma semana, até conseguir localizar um
tio meu. De seguida, com a ajuda dele, liguei para um programa que promovia o
reencontro dos guineenses separados pela guerra e deixei uma nota que emitiram.
O meu pai ouviu que estava fora de perigo… nove meses mais tarde consegui falar
ao telefone com toda a família e ficaram finalmente sossegados.
“O meu sonho sempre
foi jogar futebol e o FC Porto tinha estado na Guiné meses antes da eclosão do
conflito, à procura de talentos. Contactei-os, e propuseram-me ir para um clube
no norte de Portugal, concretamente em Matosinhos. Fui morar para o Lar do
Leixões, onde me deram as condições para estudar e jogar futebol. Estive cinco
anos e, depois, mudei-me para o Boavista FC, que me assegurou as mesmas
condições e um subsídio mensal…que nunca cheguei a receber. Nessa altura, tinha
17 anos e estava a completar o Ensino Secundário. Decidi deixar de jogar
futebol e entrei no mercado de trabalho. Com a ajuda de um amigo e aproveitando
a circunstância de Matosinhos ser uma cidade costeira, sofrendo os efeitos das
salinas do mar, ofereci-me para limpar os vidros de montras das lojas e janelas
de casas. Arrendei um apartamento, pagava a minha alimentação, estudos e
conseguia ajudar a família na Guiné.
“No ano seguinte,
entrei para o Curso de Direito na Universidade Católica Portuguesa, Porto,
através de uma bolsa social da instituição. Queria ser magistrado. Acordava
cedo, tratava da minha agenda quanto aos vidros e seguia para as aulas.
Entretanto, fruto do facto de o meu trabalho se desenrolar em lojas e casas de
outras pessoas, fui ganhando amigos. Foi assim que conheci o Diego, um jogador
da Seleção Brasileira, que me mudou a vida. Tornámo-nos muito amigos e
beneficiava…do estatuto de estrela que ele detinha. Facto que, infelizmente,
quase me ia atrofiando a vida, embora tivesse ganho muita coisa boa no
complicado “mundo da fama.
“Por ter acesso
facilitado aos jogadores de futebol, detentores de grande poder de aquisição,
criei uma imobiliária que apenas negociava nesse nicho de mercado. Permitiu-me
ganhar algum dinheiro.
“Em 2007, nove anos
depois, voltei à Guiné, de férias. Encontrei tudo pior do que quando tinha
saído. Vi a minha família numa situação muito complicada. Os meus pais
tinham-se separado e os meus irmãos estavam sem grandes perspetivas. Essa
viagem fez-me crescer e passei a ter como prioridade ajudá-los. Arrendei um
apartamento maior em Portugal, levei quatro comigo. A mais velha já vive
sozinha e trabalha num restaurante. O que me segue é um grande chefe! Trabalha
num dos melhores restaurantes do Porto e é um orgulho. Os outros dois são mais
novos e estão no último ano do Secundário. A caçula é um exemplo na escola e
quer ser médica. O outro quer fazer Gestão Desportiva. Tenho uma outra a quem
financio os estudos no Brasil. Está a finalizar a Licenciatura em
Biblioteconomia. Eram duas, uma delas não se adaptou, há quatro meses voltou,
vive comigo e com o meu pai até se conseguir outra solução.
“Em 2009
licencie-me como “Agente de Jogadores” e passei a representar jogadores.
Trabalhava sobretudo com a América Latina, por influência de amigos Argentinos.
“Em 2010, comecei a
elaborar o projeto da Academia Fidjus di Bideras, apesar de que só conseguimos
assegurar as condições mínimas para arrancar a seis meses.
“A par do projeto
de futebol, estou inserido em mais dois. A partir de meados de 2011, incentivei
alguns amigos/empresários portugueses a investirem na Guiné. Com efeito,
conseguimos promover a criação da AFROSTONE, S.A., que se dedica à exploração
de granitos e mármores, um investimento de cerca de 1 000 000 (um milhão de
euros), do qual sou sócio e administrador (por pouco tempo). Estamos a
trabalhar a 40 por cento, mas perspetivamos arrancar em força após as chuvas.
Trouxe igualmente para a Guiné a BILECTRIC, SARL, uma empresa vocacionada para
montagens elétricas, de baixa, média e alta tensão. Neste momento estamos a
instalar-nos.
“Em Setembro deste
ano vou-me inscrever na faculdade para completar os poucos créditos que me
faltam para ter a licenciatura. É que, com o trabalho de empresário de futebol,
nunca consegui conciliar, pois os exames coincidiam com as épocas de
transferências e andava muito stressado. Depois, gostaria muito de fazer o
Mestrado num país anglo-saxónico, ou francófono.
“Namoro há quatro
anos com uma estudante de Arquitetura de nacionalidade argentina/alemã, que
vive no Porto, com quem tenciono casar-me em Dezembro de 2014 (o Senhor
Presidente está convidado)!”
Conclusão
E agora…os meus
amigos portugueses o que vão fazer? Os grandes clubes nacionais, Benfica,
Sporting, Porto, o Cristiano Ronaldo, Figo e muitos outros mais, juntos podem
muito facilmente juntar dinheiro, uns dois ou três milhões de euros, e ajudar a
construir a Academia Fidjus di Bideras!
J. Ramos-Horta
1 comentário:
esqueciste de escrever as coisas que fizeste a todos esses jogadores que ajudaram, onde se come não se cuspe amigo...
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