quinta-feira, 20 de junho de 2013

O Mali, África e o Mundo. As perspectivas de uma Nova Cultura Politica (I)



Rui Peralta, Luanda

I - 338 Milhões de euros foi a verba destinada ao financiamento da guerra no Mali, pela Conferência de Doadores para o Mali. Não foram destinados a estabelecer fundos de combate á pobreza, ou um fundo de desenvolvimento, ou projectos de saúde pública nem, muito menos, de ensino ou formação profissional. Nada dessas trivialidades. Foi tudo destinado ao cofre da missão internacional de agressão, ou como dizem nos meios da política internacional, a missão de paz e estabilização para o Mali.

A U.E. aportou cerca de 20% do total, 63 milhões de euros. Se olharmos com atenção para a lista de doadores europeus, encontramos, para além do peso óbvio da França, alguns países que nos fazem reflectir sobre os reais motivos do seu financiamento e dos motivos da sua participação, se considerarmos que são países que vivem mergulhados na crise económica e financeira, sob o efeito de medidas orçamentais restritivas e com politicas de austeridade.

Desperta a atenção o papel da Espanha (que nos últimos meses anda num rodopio com o continente africano, espalhando projectos, cooperação e desencantando fundos). A Espanha contribuiu com cerca de 3 milhões e oitocentos mil euros, (1% do total), destinados a orçamentar um avião de transporte militar C-130, 54 militares da Força Aérea e 50 instrutores para a missão de treinamento das forças do Mali. Os militares espanhóis estão encarregues de facilitar a passagem e as manobras das aeronaves da NATO, no espaço aéreo do Mali, para além de contribuírem para o transporte estratégico e operações logísticas, a partir da base francesa de Dakar, no Senegal. 
              
Este é o papel oficial das forças espanholas. Mas este papel encobre um factor que no final, resulta no retorno do financiamento espanhol: a exportação crescente para o Mali de armas, equipamento, munições e acessórios “made in Spain”. No período 2007-2011 as receitas fiscais obtidas por estas vendas superaram os quatro milhões de euros. No primeiro semestre de 2012, só as receitas provenientes da venda de balas rondaram os 111 mil euros e curiosamente todas as balas foram vendidas a empresas privadas malianas. 
        
II - A implicação espanhola na região do Sahel, começa na Base de Morón, em território espanhol e uma das três bases de importância estratégica do Pentágono pela sua proximidade á região do Sahel. Nesta base residem uma força de 500 “marines” e 8 aviões de transporte da USAF. A Espanha participa, também, na EUCAP Sahel/Níger, uma missão de capacitação militar no Níger, a cargo da U.E., uma missão comandada por um coronel espanhol, centrada em Niamey e com delegações em Bamaco e outra em Nouakchott e um orçamento de 8 milhões e 700 mil euros para 80 homens, 50 de forças internacionais e 30 locais.

A missão “West Sahel: Mauritânia, Níger, Mali, Senegal", foi recentemente terminada, em Março deste ano e iniciada em Janeiro de 2011. A participação espanhola contou com forças da Guarda Civil e foi orçamentada em cerca de 2 milhões e 400 mil euros. A participação espanhola na região é depois complementada com o "Counter Terrorism Sahel Programme (2012-2014) ” que conta com um orçamento de 6 milhões e 700 mil euros e com o "Special Programme for Peace, Security and Development”, no norte do Mali, que conta com um orçamento de 50 milhões de euros, provenientes da U.E. (da qual os principais financiadores são: a França, Dinamarca, Bélgica, Reino Unido e Espanha), do Canadá e da Argélia.

Conclui-se, assim, que a implicação militar espanhola no Mali e em toda a área do Sahel é de considerável importância. Apesar da crise interna, o compromisso militar espanhol representa um elevado investimento na movimentação de meios humanos e logísticos. Mas á medida que a participação espanhola em operações internacionais na região, aumenta, aumentam também os intercâmbios comerciais. Para além do comércio de armas, equipamentos militares e munições, é de levar em especial atenção o facto do uranio consumido pelas centrais nucleares espanholas ser proveniente do Níger, fornecido pela francesa AREVA.

III - Existe uma estratégia conjunta que incide na região do Sahel em geral e no Mali em particular, que combina os aspectos militares e humanitários. No período em curso, 2012-2013, a Espanha orçamentou 5 milhões e 700 mil euros em ajuda humanitária e até 2014 destinará mais 11 milhões e 800 mil euros o que resulta num total, 2012-2014, de 17 milhões e quinhentos mil euros em ajuda humanitária, canalisada através das agências da ONU e do Comité internacional da Cruz Vermelha (CICV).

A esta estratégia integrada de cooperação militar-humanitária, adicionando o comércio bilateral de armas, devem, ainda, ser acrescentadas as ONG. E aqui está criada uma mistura explosiva, no terreno, que leva á confusão entre pessoal militar e pessoal humanitário, não se sabendo muito bem quem é quem, o que num país em conflito, não é de todo salutar e acaba por criar muitas vítimas inocentes. Será por isso que o Estado espanhol avisa os cooperantes que em caso de sequestro não pagará os resgastes? 

Em ultima análise, quem perde com toda esta mistura explosiva de trabalho humanitário com venda de armas e presença militar, de forma indistinta, são as populações do Mali, que necessitam de uma forte, activa e eficaz solidariedade internacional e não de uma acção de marketing lançada por gangues compostos por militaristas caducos, gerentes de tabernas disfarçados de gestores e de gestores disfarçados de traficantes de armas, com a bênção do Rei caçador de elefantes e do governo de beatos austeros e de senhoritos da nobreza falida (conhecedores e responsáveis pela manutenção dos corredores entre o PP e a Falange) que empurram a Espanha para o abismo da decrepitude.        

IV - Mas um mal nunca vem só, principalmente no continente africano. Para além da invasão, da agressão, das atrocidades, da guerra interna, da miséria, existe a destruição da memória e o genocídio cultural. Uma equipa de investigadores da UNESCO visitou o Mali, após a intervenção francesa e concluiu, depois de uma investigação sistemática realizada entre 28 de Maio e 3 de Junho, que foram destruídos quatro mil e duzentos manuscritos antigos, de relevante importância histórica e património cultural da humanidade.

Os investigadores da UNESCO concluíram ainda que o genocídio cultural ocorrido em Tombuctu, Kidal e Gao, foi levada a cabo pelos grupos fascistoides islâmicos, quando as suas milícias percorreram estas cidades ocupadas. Mas não só. Os ocupantes franceses e a Junta militar que (des)governa o país praticam uma política de propaganda que intoxica a verdade e espalha o medo. Tombuctu é hoje uma cidade como Bagdade, onde partes fundamentais da memória histórica foram amputadas da memória colectiva da humanidade.

As tropas francesas que marcham em Tombuctu - cidade onde foram construídos monumentos culturais que a UNESCO considera património da humanidade, desde 1988 e onde existem extraordinárias bibliotecas, que formam parte do Programa Memória do Mundo - espalham um clima de terror ao anunciarem uma eventual vaga de atentados terroristas e ataques às forças de segurança da cidade. Estes anúncios dos franceses criam um clima de ansiedade e de instabilidade, que leva as populações a abandonarem a cidade. Os bibliotecários e os responsáveis pela preservação do património cultural, não constituem excepção e acabam por abandonar as bibliotecas e os registos históricos ao fugirem da cidade.

A mestiçagem entre o mundo muçulmano e os cultos ancestrais africanos é um dos factores culturais mais importantes desta região. A penetração islâmica trouxe consigo a alteração das mitologias dos Mandiga, dos Dogón e de outros povos da região. Os islâmicos acreditavam que o caos dominou estes povos até á sua conversão islâmica, mas sempre se manteve vivo um sincretismo que juntava as tradições esotéricas ancestrais e as prácticas exotéricas do comunitarismo islâmico africano.

Tombuctu, uma cidade hoje abandonada pelos seus habitantes que fogem, desesperados, com os efeitos da propaganda, sempre foi um exemplo vivo da mestiçagem cultural. Nesta cidade chegaram a existir mais de 200 madrastas (escolas dedicadas ao estudo da teologia islâmica), com cerca de 40 mil estudantes de teologia, que divulgavam o Islão. Aqui foi criada aquela que se supõe ser a primeira universidade do mundo, a Sankore Masjid, um centro universitário que alcançou o número de 25 mil estudantes, frequentada por muitos dos grandes eruditos islâmicos.

Em 1325, foi erguida a mesquita Djinguereiber, pelo arquitecto de Granada, Ishaq es-Saheli. O edifício da mesquita tem um estilo desconcertante, demonstrativo das mitologias ancestrais africanas e do respeito com que os eruditos islâmicos da época olhavam para o seu passado. Os mesmos traços e a mesma observância são constatados noutra mesquita a Sidi Yahya - que segunda a lenda, esteve encerrada durante séculos, sendo as suas portas abertas por um iniciado nos conhecimentos ancestrais que recebeu essa ordem directamente de Alá, vindo do deserto - e na mesquita de Djenné.

Mas para além das suas incríveis mesquitas, Tombuctu alojava as suas maravilhosas bibliotecas. Uma delas, a Fondo Kati, contém cerca de sete mil volumes considerados sagrados, saídos clandestinamente de Espanha, aquando da reconquista cristã, passando por Marrocos e Mauritânia, podendo ser encontradas no Níger do século XVI até 1818, ano em foi escondida no Mali, quando os franceses a procuravam com o objectivo de a levarem para Paris. A Fondo Kati reapareceu em 1990, abrindo ao público em 1999, com todo o seu esplendor, proveniente de textos árabes e hebraicos.

A paixão pelos livros, que caracteriza os malianos, tem as suas origens em eruditos como Al Uaquidi que quando morreu deixou 823 baús carregados de livros e em lendas anedóticas como a do erudito Al Jahiz, que foi esmagado por uma prateleira de livros que desabou, na sua biblioteca particular. Numa época em que na Europa, bibliotecas só nos mosteiros, sendo que as maiores continham cerca de dois mil títulos, acessíveis apenas aos responsáveis dos mosteiros e às altas hierarquias da igreja, nesta região era frequente encontrar bibliotecas particulares com sete mil títulos, dez mil títulos, abertas ao público.

No século XIII, com o início do exilio das famílias mouriscas em África, foram estabelecidas diversas rotas dos livros, para serem salvos das fogueiras dos ocidentais. Calcula-se que foram salvos mais de meio milhão de livros, nestas rotas de exilio para África. Segundo a UNESCO, cerca de metade dos livros e arquivos desapareceram e foram encontrados em muitos livros, documentos e manuscritos, danos irreparáveis, cuja recuperação ultrapassa os 10 milhões de USD, o equivalente ao orçamento alimentar para o norte do Mali, em ruinas, uma região sitiada, cujos refugiados seguem em direcção á Mauritânia, ao Níger, ao Burkina Faso e á Argélia. Entre estes refugiados encontram-se muito dos bibliotecários malianos. Possivelmente muitos deles estabeleceram uma nova rota dos livros…

Tombuctu é um símbolo da resistência cultural africana, da diversidade, da multidimensionalidade do continente, dos seus povos e das suas culturas. É uma doação do continente á humanidade onde se insere, como multicultura cosmopolita, aberta e livre. Quando os bandos fascistoides e identitários, islâmicos e bantus, reduzem a cinzas o património africano, que é da humanidade e as botas francesas marcham sobre as cinzas das memórias, estão a apagar a memória colectiva da humanidade, os arquétipos da espécie humana. Mas estão também, com a violência dos seus gestos bárbaros, a recriar uma luta eterna entre a liberdade de conhecer e a opressão da ignorância, entre a luz da erudição e as trevas da imbecilidade. E essa é uma luta que sempre teve vitória certa.

(continua)

Fontes
Castel, Antoni y Sendín, José Carlos (eds). Imaginar África. Los estereotipos occidentales sobre África y los africanos. Catarata. Madrid. (2009).
Latouche, Serge. La Otra África. Autogestión y apaño frente al mercado global Editorial Oozebap. Barcelona. (2007).
Rubio Rosendo, Moisés Un mosaico africano. Transforma lo que piensas y lo que sientes sobre África. Observatorio Internacional CIMAS. Madrid. (2013).

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