Pedro Chadarevian, São
Paulo – Opera Mundi
Privatização do
setor começou a ocorrer na década de 1970, nos Estados Unidos
No mais recente
capítulo que se escreve desta era dos indignados, o pano de fundo da
mobilização da juventude nos países latino-americanos – Chile, Colômbia, México
e, agora, o Brasil – é a insatisfação crescente com o papel das grandes
corporações privadas nas economias que, a partir de meados dos anos 1990, sob o
pretenso argumento da ineficiência de gestão do Estado, passaram a aumentar a
sua participação no provimento de serviços públicos de diversas naturezas, como
saúde, educação, segurança, água, eletricidade. Mas é talvez no segmento do
transporte coletivo que as contradições aparecem de forma mais evidente: é
impossível negar nas últimas décadas a correlação entre o aumento da
participação do setor privado no setor de transportes urbanos e a piora na
mobilidade nas grandes cidades.
Devemos a essas mobilizações a retomada da discussão sobre a natureza do
sistema de concessões para o setor privado na área de transportes urbanos. Na
realidade, a origem do sistema público de transporte estatizado se confunde com
a própria constituição do Estado de Bem Estar, no pós-segunda Guerra Mundial. A
crise dos anos da depressão nos países centrais resultou na nacionalização do
setor, sob o argumento de seu caráter estratégico tanto para garantir o
bem-estar dos indivíduos, como a eficiência econômica das nações, na medida em
que um transporte público barato e de qualidade libera tempo e recursos para
serem alocados pelos consumidores, e no limite pelo próprio Estado, em gastos
mais produtivos.
Ao longo do tempo,
observou-se que o transporte coletivo massificado depende do Estado para ser
implementado e traz como principais vantagens a redução de poluentes
atmosféricos e do trânsito nas grandes cidades, além da maior qualidade de vida
para a população em geral. Naturalmente, a opção por um modelo estatizado, ou
com grande participação de empresas estatais, tem um custo elevado que tende a
ser financiado pela coletividade sob o princípio tributário da progressividade
nos países centrais: quanto mais rico, mais se paga relativamente à sua renda.
O setor de transporte público urbano conhece duas ondas de privatizações desde
a crise do keynesianismo, a partir do final dos anos 1970. Nos EUA, a
origem da privatização do setor remonta à era Reagan, quando, no início dos
anos 1980, por incentivo direto do presidente, diversos centros urbanos
governados por republicanos passaram a estimular a entrada de empresas
privadas, especialmente na rede de ônibus urbanos. Ao mesmo tempo, o Reino
Unido inicia um amplo programa de privatizações com Margaret Thatcher que
atinge também os transportes urbanos, inclusive o de Londres.
Contudo, a maior parte das capitais da Europa ocidental resistiu a essa
primeira onda liberal, mantendo, essencialmente, o provimento estatal do
serviço, como acontece em Paris, Berlim, Roma e Bruxelas, bem como na maioria
das aglomerações urbanas dos países escandinavos. Londres faz exceção a esta
regra, mas a participação privada ali ainda hoje é alvo de grandes
controvérsias. Mais recentemente, experiências localizadas de concessões a
empresas privadas para implementar sistemas de bondes em cidades de porte médio
na França têm sido estimuladas, como aconteceu recentemente em Bordeaux e
Reims. No outro extremo do continente, proliferaram estratégias privatistas
impostas no período de grande fragilidade política ao longo da transição dos
antigos países socialistas ao capitalismo, especialmente nas ex-repúblicas
soviéticas, e na Bulgária, Bósnia, Albânia, Polônia, além da própria Rússia.
Existem, na atualidade, estudos em curso para forçar uma reorientação neste que
é um dos últimos bastiões de resistência ao capital no velho continente,
aproveitando a submissão dos países mais gravemente afetados pela crise às
políticas de austeridade. Portugal, por exemplo, anunciou um ousado plano de
privatização do sistema público de transportes urbanos de Lisboa e do Porto no
início deste ano. Ao mesmo tempo, encontra-se em estágio avançado as discussões
para a liberalização do setor também em Madri. Na Grécia, a privatização do
setor ferroviário nacional, que é responsável em parte pelo transporte nos
grandes centros urbanos, foi anunciada em abril. Nem é preciso comentar que
essas medidas não são consideradas legítimas por boa parte da população, que procura
resistir ao contragolpe liberal nos países do mediterrâneo europeu.
Com raras exceções, na América Latina tem crescido nas últimas décadas a
participação do setor privado no serviço de transporte público urbano, nas
grandes metrópoles, como são os casos das cidades do México, Buenos Aires,
Bogotá, e na maioria das capitais brasileiras. São Paulo e as metrópoles
brasileiras estão, porém, na contramão do modelo privado que se implementou nos
países avançados, pois praticamente excluiu suas empresas públicas da
oferta do serviço municipal de transporte.
A natureza do sistema aqui adotada dá provas de enorme ineficiência na
aplicação das receitas do setor, cuja destinação não tem sido visivelmente para
a melhoria e inovação da rede. Muito pelo contrário, predominam carros com
tecnologia antiquada na frota (na realidade, carrocerias de caminhões
disfarçados de ônibus, altamente poluentes, sem conforto e segurança para o
usuário), linhas irregulares e em número insuficiente para atender a demanda.
Ademais, o sucateamento do serviço que resulta do processo de privatização,
estimula a migração de parte dos usuários ao transporte individual (carros e
motos, essencialmente). O lobby das grandes montadoras para evitar maior
participação e regulação do Estado no setor é fato comprovado por inúmeros
estudos nos EUA – não há motivo para que não seja este o caso da América Latina
também, tendo em vista o fortalecimento do papel econômico das multinacionais
automotivas nas últimas décadas no subcontinente.
O argumento em
defesa da privatização é que setor privado poderia operar com mais eficiência,
introduzindo inovações no sistema de prestação de serviço de transportes
urbanos. Ora, nada mais falacioso, tendo em vista a realidade que se vive no
Brasil. Não apenas o setor privado não tem investido na melhoria do sistema,
como há indicações de desvio de recursos para outras aplicações, externas a seu
ramo econômico (basta lembrar que uma das grandes companhias de aviação do
Brasil se constitui com capitais do setor de transportes).
Um modelo com plena propriedade, ou mesmo de amplo controle, do Estado não necessariamente
precisa ter lucro, mas a experiência de outros países mostra que a operação do
sistema pela coletividade pode gerar excedente. O caso da RATP, na França, é
emblemático: a empresa pública dá lucro e reinveste em melhorias constantes no
sistema, aplicando inclusive parte dos recursos na participação em sistemas de
transporte em outras cidades do planeta. Note que estamos tratando aqui de uma
das regiões mais densamente habitadas da Europa, com cerca de 10 milhões de
pessoas, e que opera com uma receita anual de cinco bilhões de euros,
financiados exclusivamente pela venda dos bilhetes e subsídios públicos.
Se o setor privado falhou em sua promessa, e as indicações são de eficiência na
gestão pública do setor ao redor do planeta, a pergunta que não quer calar é:
por que não investir em empresas públicas de transporte os bilhões entregues
como subsídio à iniciativa privada, que em contrapartida nos fornece um
transporte urbano de péssima qualidade nas grandes cidades brasileiras? Assim
como a concorrência com empresas públicas mostrou-se salutar no setor
financeiro do Brasil nestes últimos anos, aumentando a oferta de crédito e
reduzindo o seu custo, algo semelhante poderia acontecer no sistema de
transporte urbano do país. Tal como está, o modelo nacional de transporte
coletivo revela-se profundamente injusto, prejudicando a maioria dos usuários,
não-usuários (que podem pagar pelo transporte individual, porém com mobilidade
cada vez mais restrita) e contribuintes.
O movimento social que toma as ruas das metrópoles do Brasil expressa na luta
pela redução das tarifas do transporte urbano a insatisfação crescente da
população contra um sistema cuja face mais reveladora de sua ineficiência é a
disparidade crescente entre o preço cobrado e a qualidade do serviço entregue
às cidades. Porém, é a natureza mais profunda do modelo de transporte
implementado no país que está em debate. Transformá-lo não será tarefa fácil,
mas foi dado um primeiro passo ao questionar-se a legitimidade do papel do
setor privado em uma atividade econômica estratégica para garantir a riqueza e
o bem-estar das nações, e ao ousar levantar-se contra o argumento oficial que
insiste em ressaltar os custos do sistema, pagos por todos, mas que se recusa a
admitir os cada vez mais escassos benefícios, apropriados por poucos.
(*) Professor da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da
Universidade Federal de São Paulo (EPPEN-UNIFESP). Doutor em Economia pela
Universidade de Paris 3-Sorbonne Nouvelle. Editor do blog Outra Economia
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