sábado, 1 de junho de 2013

Suécia: COMO A MINHA CIDADE FOI AO FUNDO

 

Politiken, Copenhaga – Presseurop – imagem mibrant2000
 
Filho de uma sueca e de um dinamarquês, o jornalista Viggo Cavling cresceu num dos bairros afetados pela recente onda de violência. Conta como os edifícios que foram o sonho de uma sociedade progressista se tornaram guetos sem esperança.
 
 
Os distúrbios que eclodiram em Husby, subúrbio [no noroeste] de Estocolmo, propagaram-se às localidades vizinhas de Rinkeby e Tensta, a oeste da capital, e a Hagsatra e Fruängen, para sul. Todos estes aglomerados populacionais foram construídos no âmbito do “Miljonprogrammet”, um programa sueco que visava construir um milhão de casas, entre 1965 e 1975. Muitas dessas cidades receberam nomes poéticos como Lindängen [Prado das Tílias], em Malmo, e Hammarkullen [Colina do Martelo], em Gotemburgo.
 
Quando conheceu o meu pai, na década de 1960, a minha mãe vivia em Fruängen, num edifício baixo que acabava de ser construído e foi a primeira locatária do rés do chão. Esse pequeno estúdio permitiu-lhe pôr fim a dez anos de vida nómada, em que andou de um subaluguer para outro. O meu pai vivia em Copenhaga. O jovem casal optou por um compromisso e instalou-se em Malmo, no bairro de Rosengard [Jardim de Rosas] – o nome mais bonito alguma vez dado a um bairro.
 
Depois do meu nascimento, em novembro de 1969, a família mudou-se para um edifício no Herrgarden, na Rua Bennetsvag. Uma história muitas vezes contada na minha família é a da primeira viagem de autocarro da minha mãe para Rosengard, cheia de sonhos e esperanças. Hoje, o Herrgarden de Rosengard está classificado pela UE entre os aglomerados mais pobres da Europa.
 
Primeiro-ministro não tinha motorista
 
Quando a minha irmã nasceu, o meu pai conseguiu um apartamento de três assoalhadas no quinto e último andar de um edifício novo em Widellsväg, depois de ter almoçado com o funcionário da cooperativa de habitação HSB. Da varanda, via-se o Oresund [o estreito que separa a Dinamarca e a Suécia], e até se lobrigava o seu antigo apartamento no edifício Domus Portus, no bairro de Osterbro, em Copenhaga.
 
Ambos os meus pais pertencem a famílias abastadas. O meu avô paterno era editor do Politiken [jornal dinamarquês] e o meu avô materno era juiz distrital em Ängelholm [no Sul da Suécia].
 
Apesar de não ser mencionado explicitamente em casa, os meus pais viveram intensamente o grande ímpeto de nivelamento económico e social que caracterizou a Suécia do pós-guerra. O primeiro-ministro Olaf Palme também aderiu ao movimento: com a esposa, Lisbet, oriunda da nobreza sueca; deixou o bairro tranquilo da sua infância, Ostermalm [no centro de Estocolmo], para se instalar perto de Husby, no novo bairro de Vällingby, com as suas fileiras de casas idênticas. Para se deslocar para o seu gabinete de primeiro-ministro, não usava carro com motorista, antes conduzia o seu pequeno Saab.
 
Este nivelamento da Suécia atingiu o seu apogeu em 1973. Nesse verão, o assaltante de um banco, em Norrmalmstorg [uma praça no centro de Estocolmo], saltou para as primeiras páginas dos jornais. Fez reféns os funcionários do banco e exigiu que lhe entregassem o mais famoso bandido sueco da época. Clark Olofsson foi então escoltado pela polícia, da sua cela até ao banco. O primeiro-ministro Olaf Palme interrompeu imediatamente a sua campanha eleitoral e regressou à sede do Governo, Rosenbad, para participar nas negociações.
 
“Síndrome de Estocolmo”
 
Imbuídos do espírito da época, os reféns criaram relações de simpatia com os malfeitores [a expressão “síndrome de Estocolmo”, utilizada em psiquiatria, tem origem neste acontecimento], muito menos abonados do que eles. E a caixa do banco telefonou diretamente para Olaf Palme, para lhe apresentar as reivindicações do sequestrador: uma quantia em dinheiro, um carro e a liberdade.
 
Quando a polícia libertou os reféns, ao fim de alguns dias, com o drama a ser transmitido em direto pela televisão sueca, Palme foi ao local, à noite, para realizar uma conferência de imprensa improvisada. Alguns meses mais tarde, no outono de 1973, o resultado da eleição confirmava esse nivelamento: os blocos políticos obtinham o mesmo número de lugares no parlamento. Palme continuou na chefia do Governo, procurando apoios do outro lado do centro. Em caso de desacordo entre os políticos, o problema era resolvido por sorteio. Alguma vez uma nação esteve tão perto do consenso?
 
Porém, o nivelamento cessou, na própria década de 1970. O crescimento do produto interno bruto dos anos 1950 e 1960 terminou, mas não a subida dos salários, causando uma enorme inflação. Quando a direita sucedeu a Palme nas eleições seguintes, ele declarou que grande parte do trabalho já estava feita. A verdade é que a direita se meteu num verdadeiro atoleiro. Os social democratas regressaram então ao poder, em 1982. Uma comissão secreta de estratégia eleitoral, liderada pelo futuro ministro das Finanças, Kjell-Olof Feldt, resolveu abandonar a meta do pleno emprego, em prol de uma inflação mais baixa. O movimento de nivelamento atingira o seu auge. Segundo as últimas estatísticas da OCDE, a Suécia é hoje o país da Europa Ocidental onde as disparidades de rendimento mais cresceram.
 
As ruas da infância
 
A família Cavling gostava de Rosengard. O bairro é composto, a sul, por habitações de arrendamento e, a norte, onde vivíamos, por cooperativas de habitação. As duas zonas estão separadas por uma estrada de quatro faixas, a Amiralsgatan. Os dois enclaves eram habitados sobretudo por operários com bom nível de vida, funcionários públicos e trabalhadores independentes, como o meu pai. Manteve o apartamento que lhe serviu de escritório até à morte, em 1983. A minha mãe bem se esforçou por vendê-lo, mas não encontrou comprador. Tivemos, portanto, de o entregar à cooperativa de habitação.
 
A nossa nova habitação faz parte de uma fila de pavilhões. Como em Rosengard, estamos num bairro em que carros e pessoas estão bem separados. Entre os nossos vizinhos, está a família Billström, cujo filho, Tobias, ruivo e obstinado, entrou para a Juventude Moderada [secção de juventude do Partido Moderado, conservador], sendo os seus pais sociais-democratas.
 
Muito ativos na década de 1980, a Juventude Moderada incitava os seus membros a participar nos Conselhos de Alunos dos estabelecimentos de ensino. Tobias tornou-se, pois, o representante dos alunos do seu liceu, que estava bastante degradado. Em vez de ir pedir financiamento à Câmara, Tobias decidiu enviar uma carta ao Papa, apelando à sua generosidade. A resposta positiva da Igreja Católica deu origem a um longo artigo no jornal regional Sydsvenskan. Hoje, Tobias é o ministro sueco para as Migrações e Políticas de Asilo. Nas ruas da nossa infância, 10% dos eleitores votaram a favor do partido xenófobo dos Democratas da Suécia, na última eleição [o partido obteve 5,7% dos votos nas eleições nacionais em 2010, e entrou para o parlamento pela primeira vez]. Mas na nossa juventude, a origem das pessoas não importava.
 
Não há como fugir de Husby
 
Nos últimos dias, os jornais suecos transbordavam de artigos sobre Husby e os outros subúrbios da época. A imagem que emerge é múltipla. Por um lado, instituições como as clínicas de parteiras, os correios e os bancos foram recentemente fechados. Por outro, um programa social enfiou no bairro milhões de coroas suecas. A escola de Husby tem mais recursos do que muitas outras na região de Estocolmo. No entanto, apenas 64% dos alunos terminam o curso. Cerca de 65% dos 12 200 habitantes de Husby nasceram no estrangeiro; 38% dos jovens dos 20 aos 25 anos não estudam nem têm trabalho. Não há muito tempo, retiraram-lhes o cartão que lhes dava direito a descontos nos transportes públicos. Quando se bate no fundo, em Husby, não há nada a fazer nem forma de fugir dali.
 
Vejo uma ligação direta entre estes jovens e os presos que estão em greve de fome em Guantánamo. Não têm nada a perder. A sua única arma é o corpo. O Governo conservador diz que todo o trabalho merece um salário, mas, ao mesmo tempo, com a inflação em queda, a nossa sociedade é muito rentável.
 
Um trabalhador da fábrica de camiões Scania produz hoje quatro vezes mais do que há vinte anos. A maior parte dos empregos não qualificados foi eliminada através da racionalização, e os poucos que subsistem são objeto de uma disputa feroz. Chega a haver centenas de candidatos para um lugar de funcionário da limpeza de escritórios à noite. O salário é miserável e as condições de trabalho são ainda piores.
 
Praticamente 99% dos atiradores de pedras são rapazes e jovens do sexo masculino. Não lutam apenas contra a polícia e os bombeiros. Lutam também com a sua própria imagem. Na escola sueca, os rapazes têm piores resultados do que as raparigas em todas as disciplinas. Há alguns anos, os meninos eram mais fortes nas disciplinas técnicas; mas, quando passou a ser obrigatório os estudantes comunicarem o que faziam, até nisso as raparigas os superaram.
 
O estigma dos que ficam
 
A Suécia está hoje inundada de raparigas brilhantes, “novas suecas de primeira geração” [filhas da primeira geração de imigrantes]. A mais famosa é Gina Dirawi [nascida na Suécia, em 1990, de pais palestinianos do Líbano]. Iniciou a sua carreira a realizar curtas-metragens divertidas, que foram sendo colocadas no YouTube. Em poucos anos, ei-la a apresentar o concurso [nacional] da Eurovisão. E há muitas como ela.
 
Só há um exemplo do sexo masculino que alcançou o topo vindo de bastante baixo, o futebolista Zlatan Ibrahimovic, que nasceu e cresceu em Rosengård, em Malmo. Na semana passada, expôs as suas ambições como membro da equipa nacional sueca: quer ser o melhor jogador de todos os tempos e marcar o máximo de golos. Ainda lhe faltam onze. Quando se vai de bicicleta do centro de Malmo para Rosengard, passa-se por dentro de um túnel. À entrada, está escrito: “Pode-se sair em rapaz de Rosengard, mas não se sai de Rosengard um rapaz. Zlatan”
 
Para alguns, os subúrbios tornam-se como uma medalha que se usa a vida inteira. Mas isso só se aplica aos que saem. Para os que ficam, é um estigma de que se torna impossível livrar-se. Independentemente do número de pedras que se atirem ou de quantos carros se incendeiem, esse estigma será cada vez mais flagrante.
 
Na nova Suécia, muitas pessoas beneficiam de melhores condições de vida. Como eu. Moro no centro, tenho um salário mais que decente e posso passear por todo o mundo. Estou constantemente a sair do centro. Ao mesmo tempo, vivo aterrorizado com medo de falhar e de ser atirado para baixo. Sei que, se isso me acontecer, ninguém me pode salvar. Eu e os meus filhos ficaríamos tão perdidos como aqueles que andam a atirar pedras.
 
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