Fernanda Câncio – Diário
de Notícias, opinião
Dava tanto mais
jeito, hoje, escrever sobre o Egito. Tanta coisa para dizer, tanta reflexão
para fazer, sobre o derrube, pelo Exército, de um presidente que resultou das
eleições democráticas pós-revolução de fevereiro de 2011, num golpe que,
incrivelmente, tem o apoio da mesma rua moderna e laica que iniciou há dois
anos e meio o movimento para destituir o poder militar. Um derrube pelas armas
de um Governo eleito democraticamente saudado em nome da democracia? É muito
paradoxo junto. Mas é também uma coisa grandiosa, épica, para filmes de
Eisenstein, com doses prodigiosas de risco, coragem e esperança. Em
contrapartida, aqui a coisa está ao nível dos Malucos do Riso.
Uns tristes malucos
do riso, de resto, porque o que isto suscita mesmo é tristeza e desalento. A
tristeza de ver Portugal ir pelo buraco e o desalento de não saber como o
evitar nem ver quem, podendo, o faça. Um Presidente reduzido a bobo palaciano,
que dá posse ao que aparece mesmo quando toda a gente sabe que está a acolher
uma farsa, e considera que tudo é melhor que eleições - inclusive isto. Um
primeiro-ministro que no seu ricto de boca fina e olhar esvaziado se julga um
predestinado, decidido a, mesmo abandonado e traído pelo seu sagrado piloto
Gaspar, amarrar-se sozinho ao leme do barco para o levar, pelo mapa abjurado
por aquele, ao naufrágio final. Um presidente do segundo partido da coligação
que se demite com estrondo, anunciando a irrevogabilidade da decisão e
explicitando ser incapaz de conviver mais com aquilo que descreve como total
desconsideração, sendo a seguir mandatado pelo seu partido para se entender com
quem, publicamente, lhe chamou duas vezes mentiroso (no episódio da TSU e neste
da nomeação da nova ministra das Finanças). Um líder do principal partido da
oposição percecionado como tão fraco e incapaz que não permite a projeção de
esperança que levantaria o País. E dois outros partidos dos quais ninguém
espera qualquer solução.
Sim: somos neste
momento um país acabrunhado. Um país que aprendeu à sua custa o que dá acreditar
que qualquer coisa é melhor do que o que está. Um país que saiu duas vezes à
rua para se fazer ouvir e percebeu que lida com surdos. Um país que vê o défice
com o freio nos dentes (10,6% no primeiro trimestre), o desemprego previsto
(pelo Governo) de 19% para o fim do ano - este ano que nos garantiram ser o da
retoma, depois de ter garantido o mesmo de 2012 -, a dívida a 127,3% do PIB, os
juros quase nos 8% e a recessão estimada (por Gaspar; INE prevê pior) em 2,3% e
não pode deixar de perguntar porque é que se muito menos era em 2011 apelidado
de "bancarrota" isto é, na boca de banqueiros e troika,
"sucesso" e "bom caminho", que não pode ser "deitado a
perder". Um país que tem todos os motivos para concluir, como os egípcios
que anteontem saudaram a queda de Morsi, que às vezes a democracia dá nós que
ninguém sabe como desatar.
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