Der
Spiegel, Hamburgo – Presseurop – imagem AFP
O Governo de Angela
Merkel intima os países da Europa do Sul a realizarem reformas profundas,
alijando a sua responsabilidade pelas consequências das suas políticas nesta
crise. Uma atitude destrutiva para a Europa, a poucas semanas das eleições
alemãs, adverte o filósofo Jürgen Habermas.
Sob um título em
forma de súplica – “Alemães não querem uma Europa alemã”, [o ministro alemão
das Finanças] Wolfgang Schäuble desmentia recentemente, num texto de opinião publicado
simultaneamente no Reino Unido, França, Polónia e Espanha, que a Alemanha
aspirasse a um papel de liderança política da Europa. Wolfgang Schäuble – que,
com a ministra do Trabalho, Ursula von der Leyen, é o último membro do Governo
de Angela Merkel a poder ser descrito como “europeu” nos moldes da Alemanha
Ocidental – fala com convicção. É o oposto de um revisionista que pretenda
reverter a integração da Alemanha na Europa e, assim, destruir a base da
estabilidade no pós-guerra. Ele está familiarizado com o problema cujo
ressurgimento nós, alemães, devemos temer.
Após a fundação do
Império Alemão, em 1871, a Alemanha assumiu uma posição funesta e parcialmente
hegemónica na Europa. O Estado era, nas palavras muitas vezes repetidas do
[falecido historiador alemão] Ludwig Dehios, “demasiado fraco para dominar o
continente, mas demasiado forte para se manter na linha”. Uma situação que
contribuiu para abrir caminho às catástrofes do século XX. Graças ao êxito da
unificação europeia, tanto a Alemanha dividida como a Alemanha reunificada
foram impedidas de voltar a cair no velho dilema. E é manifestamente do
interesse da República Federal que nada mude a esse respeito. Mas o que mudou
não foi a situação?
Um roteiro imposto
Wolfgang Schäuble
reage a uma ameaça atual. É ele quem impõe o rumo inflexível de Angela Merkel
em Bruxelas e que sente as fissuras que podem levar à dissolução do núcleo da
Europa. É ele que, quando se reúne com dos ministros das Finanças da Zona Euro,
enfrenta a resistência dos “países beneficiários”, quando bloqueia as
tentativas insistentes de uma mudança de estratégia. A sua oposição a uma união
bancária que permitisse partilhar os custos associados ao encerramento de
instituições bancárias em dificuldades é apenas o exemplo mais recente.
Wolfgang Schäuble
não se desvia nem um milímetro das instruções da chanceler, que recusa que o
contribuinte alemão sejam penalizados com mais do que o montante exato dos
compromissos dos empréstimos que os mercados financeiros exigem para salvar o
euro – e que sempre obtiveram, devido a uma “política de recuperação financeira”
abertamente favorável aos investidores.
Este rumo
inflexível não descarta, evidentemente, um gesto de 100 milhões de euros em
créditos às pequenas e médias empresas, que o tio rico de Berlim entregou
recentemente aos primos de Atenas em apuros, retirados dos cofres do país. O
facto é que o Governo de Angela Merkel impõe o seu programa anticrise à França
e aos “países do Sul”, numa altura em que a política do Banco Central Europeu
de apoio à recuperação lhe fornece um apoio inconfessado.
Ao mesmo tempo,
porém, a Alemanha rejeita a responsabilidade a nível europeu das repercussões
desastrosas dessa estratégia – embora assumindo-a tacitamente, ao assumir o
papel “perfeitamente natural” de líder. Basta olhar para os alarmantes números
do desemprego entre os jovens do sul da Europa, resultado da política de
austeridade que atinge mais fortemente os cidadãos mais vulneráveis da sociedade.
Vista por este
prisma, a mensagem de uma Berlim que não quer uma “Europa alemã” pode ser
interpretada de forma menos favorável: a Alemanha está a esquivar-se das suas
responsabilidades. Formalmente, o Conselho Europeu toma as suas decisões por
unanimidade. Embora seja apenas representante de um dos 28 Estados-membros,
Angela Merkel pode fazer valer sem restrições os interesses nacionais alemães
ou pelo menos os que ela considera como tal. O Governo alemão aproveita a
preponderância económica do país, com vantagens desproporcionais, enquanto os
seus parceiros não começarem a questionar a lealdade politicamente ambiciosa
dos alemães para a Europa.
Mas como dar
qualquer credibilidade a esses gestos de humildade perante uma política que
utiliza descaradamente a preponderância económica e demográfica do país?
Quando, por exemplo, as regras mais rigorosas sobre as emissões de carbono dos
carros de luxo novo-rico – uma medida que se encaixa perfeitamente no espírito
de mudança energética do Governo federal, do nuclear para as energias verdes –
ameaça prejudicar a indústria automóvel alemã, a votação [em Bruxelas] é adiada
sine die, após a intervenção da chanceler, até o lóbi se considerar satisfeito
ou as eleições terem passado. O artigo de Wolfgang Schäuble é uma reação,
parece-me, à frustração causada pelo jogo duplo de Berlim junto dos governantes
dos outros países da Zona Euro.
Em nome de
imperativos de mercado contra os quais não haveria supostamente alternativa, um
Governo federal cada vez mais isolado vai impondo severas políticas de
austeridade à França e outros países em crise. Ao arrepio da realidade dos
factos, considera que todos os Estados-membros da Zona Euro podem decidir as
suas políticas económicas e orçamentais. Pretende-se deles que “modernizem” o
aparelho de Estado e a economia e relancem a sua competitividade por conta
própria – se necessário, com a ajuda de créditos do fundo de resgate.
Sofisma e
paternalismo
Esta soberania
fictícia é muito conveniente para a República Federal Alemã, pois dispensa o
parceiro mais forte de assumir possíveis repercussões negativas das suas
políticas sobre os parceiros mais fracos. Uma situação que Mario Draghi
[presidente do Banco Central Europeu] denunciou há já um ano, explicando que "não é
legítimo nem sustentável que alguns países prossigam políticas económicas
suscetíveis de afetar negativamente as economias de outros Estados-membros da
Zona Euro”.
Nunca será de mais
repetir: as condições pouco ideais em que a Zona Euro opera hoje são imputáveis
à conceção defeituosa de uma união política incompleta. É por isso que a
solução não está em atirar o problema para cima dos ombros dos países afetados
pela crise, concedendo-lhes empréstimos. A imposição de políticas de
austeridade não basta para corrigir os desequilíbrios económicos que prevalecem
na Zona Euro.
Só uma política
orçamental, económica e social comum, ou pelo menos bem coordenada, permitiria
nivelar os diferentes níveis de produtividade a médio prazo. E se não quisermos
transformar tudo em tecnocracia, convém perguntar aos cidadãos o que pensam de
um Kerneuropa [núcleo europeu] democrático. Wolfgang Schäuble não o ignora e
não diz nada de diferente nas entrevistas que deu ao [semanário alemão] Der
Spiegel, apesar de isso não se traduzir minimamente no seu comportamento
político.
Posição embaraçosa
A política europeia
está num impasse, o que [o sociólogo alemão] Claus Offe demonstrou claramente:
se não queremos abandonar a Zona Euro, impõe-se uma reforma institucional – que
vai levar tempo –, por mais impopular que seja. É por isso que os políticos que
disputam a continuação no poder adiam constantemente a resolução do problema. O
governo alemão, em particular, encontra-se perante um dilema: há muito que
assumiu, pela sua atuação, a responsabilidade pan-europeia.
É também o único
governo capaz de lançar uma iniciativa promissora para se avançar – e deve,
para tal, associar a França ao processo. Não estamos a falar de trivialidades,
mas de um projeto em que os estadistas europeus mais proeminentes investiram
esforços consideráveis durante
mais de meio século. Por outro lado, é preciso saber o que se entende por
“impopular”.
Qualquer solução
política sensível requereria a aprovação democrática dos eleitores. E quando
fazê-lo, senão antes de eleições legislativas? Tudo o resto é sofisma e
paternalismo. Subestimar os eleitores ou exigir muito pouco da sua parte é
sempre um erro. A meu ver, continuar a fechar os olhos, como se nada tivesse
acontecido, persistindo em disputas míopes sobre negociações de pormenor à
porta fechada, como é a sua forma de proceder atual, é um fracasso histórico
das elites políticas alemãs.
Em vez disso,
deviam dirigir-se sem rodeios a eleitores cada vez mais inquietos, que nunca
foram confrontados com questões europeias de fundo. Deviam encetar um debate,
inevitavelmente produtor de clivagens, sobre as opções possíveis, cada uma com
os seus custos. Edeviam acabar com o código de silêncio que reina sobre os
efeitos redistributivos negativos, a que os “países doadores”, pelos seus
interesses a longo prazo, se têm de acomodar a curto e médio prazo, por
tratar-se da única resposta construtiva para a crise. A resposta de Angela
Merkel é conhecida – gesticulações de efeito soporífero. A sua personagem
pública parece desprovida de núcleo normativo.
Desde o início da
crise grega em maio de 2010 e da derrota
[dos democratas-cristãos de Merkel] nas eleições regionais da Renânia do
Norte-Vestefália, ela subordina cada movimento seu ao oportunismo de permanecer
no poder. Desde o início da crise, a hábil chanceler manobra com sagacidade,
mas sem princípios identificáveis, e
priva pela segunda vez as eleições legislativas de qualquer assunto polémico,
sem falar da política europeia, tema cuidadosamente alienado.
A Europa a
afundar-se
Pode gizar o seu
caminho à vontade, porque a oposição, se se aventurasse a pressionar na questão
sensível da Europa, arriscava-se a levar com o argumento de peso da “união da
dívida”. E vindo de pessoas que só poderiam dizer a mesma coisa, se abrissem a
boca.
A Europa está a
afundar-se e o poder político cabe àqueles que decidem sobre a admissão ou
licenciamento de temas a serem discutidos pelo público. A Alemanha não está a
cuidar dos louros colhidos, está sentada num barril de pólvora. Falência das
elites? Os países democráticos têm os dirigentes políticos que merecem. E é um
pouco estranho esperar dos eleitos um comportamento diferente do vulgar.
Estou feliz por
viver, desde 1945, num país que soube dispensar heróis. Também não acredito que
sejam os indivíduos que fazem a história, pelo menos não em geral. Mas constato
que há circunstâncias excecionais em que a perspicácia e a imaginação, a
coragem e o sentido das responsabilidades dos depositários do poder influem
sobre o curso dos acontecimentos.
Jürgen Habermas : “Temos de
desenvolver uma solidariedade comum”
Falando no 23º
Congresso Internacional Mundial de Filosofia, realizado em Atenas de 4 a 10
agosto de 2012, o filósofo alemão Jürgen Habermas debateu o presente e o futuro
da Europa. Numa conferência de imprensa, afirmou que "os governos que
impuseram os programas de austeridade têm de assumir a responsabilidade pelas
consequências nos países do Sul", relata o jornal grego To Vima.
Para evitar o
surgimento de nacionalismos, observou Habermas, os "cidadãos
europeus" têm de ser informados e desenvolver-se "uma solidariedade
comum". "Mesmo quando votamos para o Parlamento Europeu",
argumentou, "cada país vota em função do interesse nacional". Para o
filósofo alemão, isso exige ser alterado. Informar corretamente o eleitorado e
os cidadãos dos diversos países, requer pelo menos de cinco anos:
Temos a obrigação
de nos familiarizarmos com as questões que dizem respeito a todos os europeus,
incluindo os procedimentos legais e as instituições; temos a obrigação de ser
informados sobre a complexidade das exigências europeias, e esta sensibilidade
em relação à política de cooperação deve nortear o discurso público.
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