Dez horas da manhã.
Shopping Chamavo, a pouco menos de 500 metros do Largo 1° Maio, um local de
referência para Ilídio que nasceu em Malange e tem agora 14 anos, cinco dos
quais "oferecidos" à vida de rua, desde que um amigo o trouxe para a
Luanda para conhecer a "cidade grande".
A chegada à capital
deslumbrou-o, mas o encanto durou apenas um instante, pois quem ali o levou,
mesmo diante da estátua de Agostinho Neto que entretido observava, ali o deixou
ficar, sem deixar rasto. E assim Ilídio começou uma longa travessia no deserto,
com amigos feitos à força das circunstâncias, que o levaram a múltiplas
entradas e saídas de alguns centros de acolhimento na capital. Esta é apenas a
história de Ilídio, mas semelhante a muitas outras de meninos que percorrem as ruas
de Luanda e são os chamados: "gasolinas".
A equipa de
reportagem avista ao longe um grupo de meninos. Uns engraxam sapatos e outros
sentados ao lado, apenas apreciam a agitação do dia e das pessoas que por ali
passam. Outros ainda sinalizam aos automobilistas, indicando lugares onde podem
estacionar as suas viaturas e deixá-las em segurança. Cem kwanzas é o valor da
recompensa e quando de uma alma mais caridosa se tratar somam-se à quantia mais
alguns trocados. Pinto, nome pelo qual é tratado pelos amigos, tem 23 anos e
está sóbrio. Um homem já feito, com porte físico para constituir força de
trabalho. Está também ali sentado. A equipa aborda-o sob o pretexto de estar a
fazer um trabalho de pesquisa, a fim de saber sobre os vários motivos que levam
crianças a enveredar por tais "descaminhos". A pergunta é pelos
"gasolinas". Pinto esboça um sorriso e pergunta: "Assim esta
pergunta é pra quê?". A equipa volta a esclarecer o propósito e Pinto
parece agora estar mais esclarecido e disposto a conversar.
Meninos trocam
gasolina por diluente
O ambiente torna-se
menos tenso. A equipa de reportagem parece estar mais à vontade também e vai
esgrimindo os seus argumentos, ante um jovem que, apesar de se predispor à
conversa, olha-nos ainda com alguma suspeita. Mas, ainda assim, mostra firmeza
na fala. As nossas justificativas são repetidas algumas vezes, até serem de
súbito interrompidas por uma correcção prontamente feita pelo jovem Pinto.
"Esses miúdos não 'chupam' gasolina. Gasolina?! Eles não aguentam. É diluente".
A afirmação, categórica, deixa a equipa inquieta e estupefacta. "Mas
inicialmente era gasolina, quando começaram a aparecer os miúdos, não
era?" - questiona a equipa. "Yá, mas é diluente que eles chupam,
responde Pinto, sorrindo, e convida-nos a visitar o largo da Zap.
A
"parada" obrigatória
Deixámos o shopping
Chamavo e fomos em direcção ao até ali desconhecido largo da Zap. Pinto caminha
descontraído, sem desconfiança ou hesitação. Acena para amigos que encontra
pelo caminho, mas não interrompe a marcha. Deixámos a loja da Movicel e fizemos
logo a primeira esquina em direcção à rotunda da Sistec, e logo ali à esquina
da rotunda, mais à direita, defronte ao Restaurante São João, mais voltada para
a rua da Liga Africana, Pinto anuncia que era ali o lugar, afinal conhecido por
nós. Chamam-no Zap porque as paredes estão agora pintadas de fresco com dizeres
publicitários da televisão por satélite, deduz a equipa.
O ambiente não é
dos melhores. Bem acima do passeio está um contentor de lixo e restos de
resíduos sólidos no chão, desde restos de comida, trapos e latas de
refrigerantes e cerveja, entre outros objectos. O cheiro é nauseabundo, mas
suportável por força do propósito que nos guia. Pinto promete falar depois, a
equipa concorda. Enquanto isso vamos convencendo Milton, rapaz de 15 anos, a
conversar connosco. "Eu não quero falar. Não vou dizer nada. Vocês são
sempre assim. Já 'vieram' aqui muita gente e nos prometeram que iam ajudar e
não ajudaram. Não vou falar mesmo", afirma Milton, intrigado com a nossa presença.
Diante de tal
contrariedade, a equipa torna-se um pouco hesitante. Os rapazes, que estavam
até ali deitados, provavelmente dominados pela força da inalação de diluente,
apercebem-se da nossa presença e instala-se um pequeno caos. Eram pouco menos
de sete até então. Três a quatro dos quais levantam-se aparentemente
desorientados e afastam-se do local por alguns instantes, mas logo a seguir
voltam e abordam-nos com um ar intimidatório. Têm nas mãos um pedaço de trapo
embebido em diluente ao qual chamam de "ngui". Nesse momento, o
ambiente é de alguma contenção nas palavras, pois qualquer mal-entendido
poderia descambar numa situação incontrolável. Mas não. Tudo não passa de uma
situação aparente. Os meninos não parecem dados à violência.
As peripécias na
rua
Meia hora depois já
a equipa mantinha uma conversa cordial com os meninos, ditos
"gasolinas". Não se incomodam em nada com o nome. Passa despercebido
para boa parte deles. Instantes depois. Cada um, de modo pouco assertivo, e
algumas vezes de maneira atabalhoada, conta a sua história de vida. A média das
idades ronda entre os oito e 16 anos, constata a equipa, à medida que um e
outro intervêm. Boa parte das histórias refere-se a maus tractos por parte dos
pais e outras ligadas a acusações de feitiçaria. À medida que ganhávamos em
simpatia e em registo dos testemunhos, foram chegando mais e mais, corno se
alertados da nossa presença. Às tantas já são pouco mais de duas dezenas e
meia, quase três. Agora já todos queriam contar a sua história de vida. E até
deixavam-se fotografar fazendo pose. Milton, que inicialmente não queria dar o
seu testemunho, desabafa: "Há muita gente aqui com talento, mas eles não
nos ajudam. Só falam mas ninguém nos ajuda". Por de trás do desabafo havia
afinal a pretensa revelação de que era um adepto do kuduro. «Ele é
kudurista»,disse-nos Pinto.
Em meio à conversa,
há um testemunho na primeira pessoa de Sérgio, 15 anos, que narra uma história
algo rocambolesca. Em tempos, enquanto dormia num dos passeios ali perto da
escola Nzinga Mbande, um amigo de rua jogou-lhe gasolina e a seguir ateou-lhe
fogo. Sérgio ardia em chamas, quando os amigos o apagaram com os poucos meios
que tinham em posse. Mostra-nos as cicatrizes da queimadura no peito e nas
costas. "Pode mesmo 'vê', mõ kota", indica-nos, levantando a
camisola. O autor de tal acto foi, poucos meses depois, localizado e denunciado
à polícia e, por conseguinte, detido. Sobre o seu paradeiro nada mais se soube
até então.
Agressões e
maus-tratos na calada da noite
Joel tem 16 anos e
mede aproximadamente 1,50 cm. Pedindo a nossa atenção, de sua própria justiça,
ouvimo-lo contar que já esteve na cadeia por duas ocasiões, por furto do
reprodutor de uma viatura. Como Joel, a maior parte dos meninos diz já lá ter
estado também, mas não por conta de furtos ou de um outro tipo de crime que
tenham cometido. André, de 12 anos, é um desses miúdos que esteve dois dias na
cadeia e explica-nos os motivos: "Eu já estava na esquadra do
Pau-de-cobra. Me mandaram lavar carro, limpei sanita e depois me mandaram
entrar mais na cela. Demorei bué de tempo, e esperei quem "vai vir só me
poder tirar" e ninguém apareceu», relata. Pinto, o jovem a quem a equipa
manteve o primeiro contacto e que durante toda a conversa com os meninos se
manteve quase sempre calado, resolve conversar connosco agora. O jovem de 23
anos fala agora em nome de todos e usa o pronome "nós", ao invés de
eles, como fez inicialmente. E logo percebemos tratar-se de mais um elemento do
grupo que ali estava, também vítima das supostas agressões e trabalhos forçados
praticados pela polícia, como denunciou o pequeno André.
"A nossa
polícia trabalha mal. Quando nos encontram a dormir, se nos encontrarem num
sono profundo, pegam pedras e atiram. Outros nos pisam na cabeça, e quando nos
levantamos nos dão bofetadas e nos levam nas esquadras. E não nos levam nas
esquadras aqui próximas. Nos levam no Ramiro. Não sei se já ouviste falar do
Ramiro! E nos deixam lá. Do Ramiro, você próprio é que vai sair de lá até
Luanda a pé, porque Ramiro já é província, já não é Luanda", declara o
jovem Pinto.
Nandinho, agora com
16 anos, é o rapaz que mais tempo ficou numa esquadra de polícia, segundo seu
testemunho. Duas semanas foi o tempo que esteve numa das esquadras da Boavista.
No entanto, Pinto tenta lembrar-se, sem êxito, da última grande recolha feita
pela polícia, em que alguns foram levados para as esquadras do Cacuaco. A
equipa apressa-se a questionar se o destino eram os centros de acolhimento, ao
que o jovem Pinto respondeu logo: "Não é no centro de acolhimento, é nas
esquadras onde nos levam para trabalhar. Para lavar carro, limpar chão dos
corredores, escadas, aquelas panelas grandes e sanitas. Eles só dizem que esse
é menino de rua, e mesmo que você lhe deixar ele vai sair novamente para ir
roubar. Quer dizer, eles desvalorizam os meninos de rua. Vêem os meninos de rua
como lixo. Não é pessoa. Eles tratam os meninos de rua como cão", explica
o jovem.
Pinto afirma,
contudo, à nossa reportagem que em cada esquadra de polícia onde são levados
são sobejamente conhecidos os rostos e os nomes dos comandantes que mais
promovem as agressões contra os meninos. "Já conhecemos os chefes que
batem mais. Por exemplo, o comandante da 20 Esquadra, se ele nos encontra aqui,
'nem tipo' é mais velho. Ele ofende tipo criança: (...) "vocês são cães,
têm que vos matar". Se nos encontra a cozinhar 'bica' as panelas. Se te
encontra com a comida deita fora. Não tem caridade. É conforme fazem os
adjuntos dele, porque os adjuntos só cumprem a lei do chefe", diz.
Polícia reage e promete
averiguar acusações
O Novo Jornal
procurou, entretanto, o porta-voz da Policia Nacional, Aristófanes dos Santos,
a quem deu a ouvir o registo com as acusações contra os alegados oficiais da
polícia que promovem violência contra esses meninos. O responsável considerou
as acusações como "extremamente graves", prometendo que faria chegar
de imediato ao conhecimento do comandante geral da Policia Nacional e do
comandante provincial para averiguar os factos. "E se se verificar
responsabilidades por parte de efectivos da PN, naturalmente, haverá as
respectivas sanções", prometeu.
Aristófanes dos
Santos lembrou que na Policia Nacional, além de responderem num fórum criminal,
subsidiariamente também respondem no fórum disciplinar. "No nosso
regulamento de disciplina, as sanções vão desde a simples repreensão à demissão
compulsiva, mediante a matéria probatória que se constitui da instrução dos
processos. Ao ser verdade é uma situação muito grave. Até ao momento em que
falamos, não tínhamos tido qualquer informação dessa natureza, mas há relatos
vivos de menores de idade que dão conta desses maus-tratos", esclareceu.
O porta-voz da
Policia Nacional explicou, no entanto, que a retirada dessas crianças da via
pública é uma acção que deve ser concertada entre as várias estruturas que
intervêm nos problemas da criança, nomeadamente o INAC, o Julgado de Menores, a
Policia Nacional e o Governo Provincial, à luz do que consta da Lei n.º 25/12,
de 22 de Agosto, sobre os "11 Compromissos" da criança. Para aquele
responsável, deve haver uma acção concertada e bem planificada, pois, referiu,
quando se retira as crianças da rua tem que haver um lugar onde as colocar.
"Não podemos retirar por retirar porque existe o direito de liberdade de
circulação. E estar na rua não constitui um crime. Pode ser porque não têm para
onde ir e o facto de dormir na rua não constitui uma incivilidade",
asseverou.
Quanto ao facto de
os meninos ficarem em plena via pública a inalar diluente, Aristófanes dos
Santos disse que "é preciso saber o que é que estas crianças inalam, para
verificarmos se estamos no âmbito das drogas ou não". O diluente,
assegurou ao Novo Jornal, é uma substância nociva à saúde, mas por si não pode
ser considerada uma droga, uma vez que é vendido em vários locais. "A
questão que é fundamental, e aqui todos temos a responsabilidade e a
co-responsabilidade, é criar premissas para que essas crianças voltem ao
convívio dos seus pais. Não está aqui em causa o cometimento do crime.
Naturalmente, se essas crianças continuarem na rua e não se fizer nada, o facto
de estarem vivendo ao relento, de passarem por vicissitudes, elas são propensas
a delinquir e são pró-delinquentes e futuramente são provavelmente
criminosos", concluiu.
Novo Jornal, 16 de
agosto de 2013 – Diário Angolano
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