Em nenhum lugar, e
apesar das carências, é justo e legítimo deixar os excluídos ao Deus dará
Wálter
Maierovitch – Carta Capital, opinião
Fico a imaginar o
que pensariam os médicos que integram a organização humanitária Médicos sem
Fronteira sobre a postura dos seus colegas brasileiros e dos órgãos de classe
acerca da resistência ao programa denominado Mais Médicos. Ou seja, acerca da
presença, em território nacional, de médicos estrangeiros e a fim de atender,
sem concorrência com médicos brasileiros e com regras estabelecidas em
compromissos escritos, em localidades carentes de assistência sanitária. Mais
ainda, o convite a médicos estrangeiros restou antecedido de consulta a
profissionais brasileiros, convocados e que declinaram apesar da remuneração
digna de 10 mil reais mensais.
Como conheço o
trabalho do Emergency (organização não governamental sem finalidade lucrativa),
também imagino um pronunciamento, sobre esse tema de Mais Médicos, de Gino
Strada, cirurgião de guerra, humanista, médico italiano e pacifista já indicado
para o prêmio Nobel.
Fundada em 2005, o
Emergency mantém postos médicos para atender feridos em regiões de conflitos e
tudo sem indagar ideologia ou qual o lado do combatente. Quando uma assistente
social de uma ONG humanitária foi sequestrada no Afeganistão pelos talebans foi
Gino Strada, pelo respeito conquistado, que conseguiu a sua liberação. No
Afeganistão, a Emergency atende feridos e carentes, ainda que considerados,
pelas forças internacionais de ocupação, terroristas.
O Emergency de Gino
Strada e da esposa e médica Teresa Sarti atende no Afeganistão, Iraque,
República Centro-Africana, Serra Leoa e Sudão. O Emergency está presente e os
seus médicos e corpo de enfermeiros recebem, graciosamente, a população
carente, como em Angola e no Camboja. Quando da guerra no Kosovo, foram abertos
e funcionaram postos do Emergency e civis, de qualquer religião, receberam
assistência e tratamento.
Para muitos médicos
brasileiros, os locais oferecidos pelo governo federal e para prestação de
serviço remunerado não possuíam condições para atendimento à população carente.
Aliás, como sucede em vários hospitais públicos de grandes centros urbanos e
onde existe permanente quadro de desespero e desumanidade. O certo é que em
nenhum lugar e apesar das carências é justo e legítimo deixar os excluídos ao
Deus dará.
Só para lembrar, os
voluntários do Emergency atendem com bombas a explodir em locais próximos dos
seus centros. E os voluntários socorrem, com frequência, depois do despejo de
explosivos por drones.
É lógico que os
médicos brasileiros podiam ou não aceitar a oferta do governo. Mas são
inaceitáveis, sob o aspecto humanitário, resistência corporativa, vaias a
médicos cubanos contratados e recomendação de não atendimento aos pacientes que
anteriormente passaram por mãos de médicos estrangeiros do programa Mais
Médicos e precisam de socorro.
Por outro lado, a
mal chamada “terceirização” com protestos por Cuba reter parte da remuneração
dos médicos exportados ganhou componentes surreais. Cuba, com embargo econômico
e dificuldades de caixa, precisa continuar a ofertar ensino gratuito, saúde aos
nacionais e, ainda, formar médicos para, graciosamente, atender a gente cubana.
Isso de forma semelhante ao bonus pater familiae que emprega a sua renda na
formação do filho e espera, na velhice e caso necessite, ter uma compensação. E
o que dizer da mais nova mania-nacional, ou seja, a criação de “bancos de
talentos”, por entidades privadas e com finalidade lucrativa.
De se frisar que
ex-atletas cubanos (ao tempo da Guerra Fria, o ditador Castro, como instrumento
de propaganda, investia na formação de atletas olímpicos) são contratados como
técnicos no Brasil e pelo mundo, da mesma maneira que o programa Mais Médicos. Na
Venezuela e no governo de Chávez, a parte destinada ao governo cubano era
quitada em petróleo, pois insuficientes as extrações cubanas em Motembo,
Jarahueca, Cristales, Jatibonico e Santa Cruz do Norte.
Desde a queda do
muro de Berlim e, logo depois, da extinção da União Soviética, a ditadura
cubana, por falta de recursos, deixou de “exportar” o seu modelo
revolucionário. No particular, pura paranoia ou ignorância dos que pensam que,
entre médicos, existam guerrilheiros ou agentes incumbidos de fazer proselitismo
do regime. A denominada Guerra Fria ficou para trás e, modernamente, os
conflitos mais agudos derivam de um autoritarismo de matriz religiosa e
sectária.
Com efeito, parece
ter chegado o momento para uma melhor reflexão, de cunho humanitário, sem diversionismos
ou corporativismos doentios. E não dá para estabelecer, como pré-condição para
legitimar um programa de governo, a exigência de o Brasil possuir uma estrutura
médico-sanitária ideal. Pelo que se sabe, os 400 médicos contratados já
começaram a participar de um curso preparatório (120 horas de carga) com aulas
sobre saúde pública brasileira e língua portuguesa. Apenas os aprovados nesta
etapa partirão para os municípios carentes, necessitados.
Não se deve
olvidar, nessa quadra, não poder o governo federal contar com uma eficiente e
competente Advocacia Geral da União (o ministro titular, Luís Adams, já contou
com assessoria de vendedor de pareceres). Por isso, questões constitucionais e
legais deixaram de ser verificadas no momento apropriado. A questão
remuneratória decorrente da intermediação de um organismo internacional e a da
garantia de repasse não inferior ao salário mínimo, são fundamentais e a
resposta do governo ainda é esperada: a intervenção de Adams, no particular,
foi catastrófica, típica do que pisa em terreno movediço.
Pelo que nota, no
entanto, não existem indicativos de afronta à Constituição ou às leis em vigor.
Tanto que o Ministério Público do Trabalho não flagrou nada de irregular e
declarou que irá se debruçar na matéria.
Essa falta de
cuidado do governo abriu brecha para fascistas de plantão afirmarem “trabalho
escravo”. Só que trabalho escravo não se caracteriza quando há atividade livre
e remunerada.
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