“Se ser ‘Ceará
Moleque’ é vaiar médicos estrangeiros, afasto-me por inteiro de sua valia como
modo de expressão, porque isto me cheira a fascismo
Rosemberg Cariry* –
Outras Palavras, em Blog da Redação
(Este texto é
dedicado ao Dr. Luiz Teixeira Neto e à memória do Dr. Caetano Ximenes de Aragão, dois médicos-poetas e humanistas, que muito me ensinaram da vida e da solidariedade).
Um choque profundo,
uma sensação de mal-estar, uma vontade de vomitar… Algo me atingiu em cheio,
acho que não no corpo, mas no espírito. Não posso precisar o que senti naquele
momento, em que vi, pela TV, o constrangimento que alguns médicos cearenses
infligiram aos aqui aportados médicos estrangeiros, em franca ação de
hostilidade. Esses senhores, vestidos de branco, em nome dos seus interesses
corporativos e econômicos fizeram um espécie de “corredor polonês”, por onde os
médicos estrangeiros, que vieram para trabalhar pela saúde da população, nos
mais distantes e miseráveis rincões do país, foram obrigados a passar, entre
vaias e xingamentos. Talvez o melhor termo para traduzir o que senti seja a
palavra VERGONHA. Acreditem, fui acometido de uma profunda vergonha, ao ver um
ato de tamanha hostilização e incivilidade acontecer na minha terra, sob a
tutela do Sindicato dos Médicos do Ceará. Pensei comigo: chegamos ao fundo do
poço!
Posso compreender
toda a mística que se faz em torno do “Ceará Moleque” e do sentido cultural do
uso da vaia, ao longo de toda a nossa história. Porém, se ser “Ceará Moleque” é
vaiar médicos estrangeiros, afasto-me por inteiro de sua valia como modo de
expressão, porque isto me cheira muito mais a xenofobia e a fascismo. Quanto ao
significado deste ato, como ação política, podem os senhores sindicalistas ter
a certeza de que atraíram para si o desprezo de milhões de cearenses e de
brasileiros. Em todo canto deste imenso Brasil, nos últimos dias, não se
comenta outra coisa, a não ser esta atitude vergonhosa.
Eu sou de um tempo
em que os médicos eram conhecidos pela civilidade, pela erudição, pelo
humanismo, pelo saber profundo que nascia de uma vocação, do ser e do
construir-se na vida dentro de uma comunidade de destinos. A maioria destes
médicos de boa cepa, pois, além de grandes profissionais, eram ainda homens que
cultivavam as artes, que sabiam filosofia, que refletiam sobre a vida e o
destino da humanidade, colocando a ética como um bem supremo.
Eram homens sábios,
homens de tal grandeza, dos quais as comunidades se orgulhavam, chegando a
nomear ruas e praças para que as futuras gerações deles se lembrassem, quando
eles deixavam o nosso convívio. Quem na vida não conheceu um desses médicos,
também escritores, poetas ou filósofos, com os seus ensinamento de caráter
iniciático na vida e nas artes? Quem poderia imaginar um médico desta
envergadura espiritual vaiando um colega estrangeiro, em um ato cheio de ódio e
xenofobia? Impossível imaginar!
Mas o que acontece
hoje? No Ceará, alguns médicos hostilizam, de forma escandalosa, estrangeiros
com ameaças e xingamentos. É bem possível, que as universidades, sobretudo as
universidade e faculdades particulares, fábricas de lucro e de técnicos
destituídos de cultura e de humanismo, estejam produzindo estes “monstrinhos
vestidos de branco”, analfabetos de qualquer humanismo, incapazes de ler a
dimensão humana de um romance de Dostoievsky ou a metafísica de um conto de
Guimarães Rosa. Falar em Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, Gilberto Freire,
Graciliano Ramos ou Euclides da Cunha, perto deles, é falar em javanês. Pobres
médicos-tecnocratas, jogados a um convívio viciado e naturalizado com a
indústria farmacêutica, quantas vezes submetidos aos grandes laboratórios que,
em nome do lucro e da ganância capitalista, erguem o seu reinado da morte,
travestidos de tecnologias arrojadas e mascarados de patentes.
Quando vi estes
jovens médicos, feito moleques incultos e incivilizados, vaiando e xingando os
seus colegas estrangeiros de profissão, pensei comigo mesmo: esperem, mas não
somos todos netos de estrangeiros? Não vivemos em um país que nasceu de um
grande encontro de povos e culturas? Não é esta a grande característica do
nosso país? Não é a generosidade e a hospitalidade o nosso maior tesouro? A
cena brutal e humilhante imposta aos médicos estrangeiros, fez-me imaginar os
nossos avós estrangeiros sendo vaiados, forçados a passar pela humilhação do
xingamentos e do preconceito, nos corredores poloneses armados pelos
“reacionários nacionalistas” da época (filhos também de estrangeiros).
Não devíamos
receber estes irmãos cubanos, espanhóis, portugueses, ucranianos, venezuelanos,
mexicanos e de tantos outros países, com água de coco e maracatu? Não devíamos
recebê-los ao som de violas e rodas de coco? Não deveríamos aplaudir aqueles
que quisessem ficar e ajudar na construção da grande nação, da mesma forma que
fizeram os nossos avós, que aqui chegando, casaram-se com gente de todas as
raças e nos fizeram mestiços e multiculturais? Não somos nós os herdeiros de
mil e um povos e de mil uma culturas?
O que aconteceu no
Ceará neste triste episódio ficará registrado nos anais da nossa história como
o Dia da Vergonha, o dia em que o fascismo triunfou sobre a solidariedade e a
universalidade que tem marcado, por definição cultural, o espírito do povo
cearense e brasileiro.
Acredito que os
médicos cearenses, humanistas e éticos, farão uma “Carta de Desagravo”, pedindo
desculpas aos colegas estrangeiros que aqui chegaram. Da minha parte, como
cidadão cearense, torno público que não compartilho com esta vileza e, em meu
próprio nome, peço desculpas aos médicos estrangeiros hostilizados, acreditando
que este pedido de desculpas é o pedido de milhões de cearenses e de
brasileiros que padecem nos mais profundos sertões, praias, florestas e
montanhas, sem médicos e solidariedade nenhuma por parte daqueles que deviam
ter como missão o sagrado dever do amor e da solidariedade, acima da sede do
lucro e da ascensão social.
Para concluir este
meu simples ato de indignação, cito um fato cotidiano. Discutia o grave
acontecimento com um motorista de táxi e dizia a ele que iria escrever sobre o
assunto. Do alto da sua sabedoria, o motorista de táxi, aconselhou-me: “Escreva
não. Um dia o senhor pode chegar em um hospital, cair nas mãos de um deles e
eles podem desligar os aparelhos”. Eu que preparava-me para fazer duras
acusações contra os “vândalos vestidos de branco”, terminei defendendo-os,
quando de pronto respondi: “Nisto eu não posso acreditar! Sei sim, que estes
médicos que hostilizaram os médicos estrangeiros, com vaias e xingamentos, agem
como moleques, como xenófobos pequeno-burgueses e corporativistas, mas não
acredito que as faculdades de medicina do meu país estejam também forjando
potenciais assassinos”. Acreditar nisto seria descrer não apenas da medicina,
mas da sua deontologia, como princípio e garantia de regulação ética das normas
que regulam esta profissão, cunhada, desde os seus primórdios, para proteger e
salvar a vida humana.
De qualquer forma,
cito o fato, para que estes equivocados “médicos-moleques” saibam qual o
conceito que terminaram por cravar no coração das pessoas, com tal espetáculo
público de despreparo profissional.
*Rosemberg Cariry é cineasta
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