O presidente dos
EUA defende valores democráticos, mas privilegia interesses pragmáticos.
Enquanto isso, vê a influência norte-americana minguar
José Antonio Lima
– Carta Capital
Em nenhum outro
aspecto, a administração de Barack Obama é tão fracassada quanto no Oriente
Médio. E em nenhum outro ponto do Oriente Médio a humilhação imposta ao
presidente dos Estados Unidos é tão grande quanto no Egito. O massacre desta
quarta-feira 14, no qual ao menos 568 pessoas morreram, mostrou como a maior
potência mundial é incapaz de exercer influência sobre um Exército assassino,
mesmo bancando os generais que o comandam. E não há perspectivas para o fim da
vergonha.
O apoio dos Estados
Unidos ao Egito data do fim da década de 1970. Ao assinar a paz com Israel em
1979, o ditador da época, Anwar Sadat, tirou seu país da esfera de influência
da União Soviética e o colocou sob as asas norte-americanas. Desde então e até
hoje, duas razões primordiais mantêm a parceria Washington-Cairo. O tratado de
paz é fundamental para a segurança do Oriente Médio, e também de Israel, grande
aliado dos EUA, e o Egito controla o Canal de Suez, mais importante rota
comercial do mundo.
Em troca, os EUA
repassam ao Egito 1,5 bilhão de dólares anuais, sendo que parte do montante vai
diretamente para o bolso dos principais generais. Nos 30 anos do regime de
Hosni Mubarak, o presidente que mais insistiu para o país caminhar rumo à
democratização foi o de George W. Bush. Após o 11 de Setembro, a administração
republicana reconheceu o óbvio: por trás do terrorismo estava a falta de
democracia e não o islã. O ímpeto acabou rápido. Em 2005, a Irmandade
Muçulmana, que por décadas foi ilegal e apresentava candidatos independentes,
ganhou 88 assentos no parlamento egípcio. No ano seguinte, o Hamas, um braço da
Irmandade, venceu as eleições nos Territórios Palestinos Ocupados. A
dificuldade de lidar com aberturas democráticas que inevitavelmente produziriam
governos antiliberais – como são os representantes do islã político pregado
pela Irmandade e outros grupos – acabou com a chamada “promoção da democracia”.
Em 2009, cinco
meses após assumir a Casa Branca, Obama fez um importante discurso no Cairo.
Lembrou os antepassados muçulmanos, citou o Corão e defendeu de forma veemente
valores democráticos. Com o surgimento da chamada “Primavera Árabe”, Obama foi
surpreendido, assim como boa parte do mundo. O presidente dos EUA provavelmente
não esperava que precisasse enfrentar as contradições das ações e discursos
norte-americanos tão rapidamente. Ficou claro que, como costuma ocorrer nas
relações internacionais, os interesses se sobressairiam diante dos valores.
Obama demorou a
condenar a repressão imposta por Mubarak à praça Tahrir. Não fez vale seu peso
para acelerar a transição do governo militar, que cometeu uma série de
atrocidades. Numa tentativa de criar laços com a Irmandade Muçulmana não
condenou de forma veemente os abusos cometidos por este grupo ao chegar ao
poder. No último 3 de julho, não condenou o golpe cívico-militar que derrubou
Mohamed Morsi. O resultado é que os dois lados da fraturada sociedade egípcia –
os adeptos do islã político e os setores cristãos e seculares – são igualmente
hostis aos Estados Unidos.
Tal situação esgotou
o poder de influência norte-americana no Egito. Segundo reportagem da agência Reuters,
emissários da União Europeia teriam conseguido obter um compromisso da
Irmandade Muçulmana para acabar com o impasse surgido após o golpe de 3 de
julho. O recado foi levado ao atual ditador do Egito, o ministro da Defesa
Abdel Fattah al-Sissi, junto com “duras mensagens” do secretário de Defesa dos
EUA, Chuck Hagel. A resposta de Sissi foi dada nas ruas.
As ocupações das
praças Nahda e Rabaa al-Adawiya, mantidas pela Irmandade no Cairo desde o
golpe, foram desfeitas com extrema brutalidade. Relatos da imprensa
internacional apontam o uso de blindados, escavadeiras, atiradores de elite,
munição real e gás lacrimogêneo contra os manifestantes. Pelo menos uma pessoa
morreu queimada na barraca em que estava. Três jornalistas – o cinegrafista
Mick Deane, da britânica Sky News; Ahmed Abdel Gawad, do jornal egípcio Al-Akhbar;
e Mosab El-Shami, fotógrafo do site islamista RNN – foram assassinados. A
violência no Cairo se espalhou pelo país inteiro. Adeptos da Irmandade
Muçulmana e outros grupos religiosos atacaram igrejas cristãs e delegacias. Ao
todo, estão confirmadas pelos ministérios da Saúde e do Interior 525 mortes de
civis e 43 de policiais.
No âmbito político,
surgiram novos indícios de que o regime Mubarak está sendo remontado. Uma das
faces civis mais importantes do novo governo, o Nobel da Paz Mohamed El-Baradei
(que apoiou o golpe) deixou o posto de vice-presidente para assuntos
internacionais. E o Exército confirmou a retomada, por um mês, do estado de
emergência, que vigorou entre 1967 e 2012. A exceção deve abrir espaço para
mais abusos por parte das autoridades.
O secretário de
Estado dos EUA, John Kerry, afirmou que a violência era “deplorável”, mas disse
acreditar que o caminho para a solução política “continua aberto” mesmo após o
massacre. A maior represália cogitada pelos Estados Unidos era o adiamento do
treinamento militar “Estrela Brilhante“, em conjunto com as Forças Armadas
egípcias e programado para setembro. Em pronunciamento na manhã desta
quinta-feira 15, Obama anunciou o cancelamento do treinamento e afirmou que sua
equipe de segurança nacional está analisando "novos passos" a serem
dados.
Seria ingenuidade
pedir para os Estados Unidos cortarem de uma hora para outra a ajuda de 1,5
bilhão que dão ao Egito. Nenhum Estado abre mão de interesses em nome de ideais
e, caso Washington fizesse isso, a Arábia Saudita e outros parceiros do Golfo
Pérsico ficariam contentes em substituir a fonte de dinheiro. Há, no entanto,
até políticos republicanos que apoiam o fim da ajuda, indicando a existência de
espaço político nos EUA para dar um passo arriscado. Tivesse Obama coragem e
interesse, colocaria sua administração para trabalhar em busca de soluções que
não a simples repetição do ciclo de "críticas-mediação-pagamento".
Este tipo de ação serve apenas para minar a influência norte-americana no
Oriente Médio e fazer o país ser visto como cúmplice de massacres como o desta
quarta-feira. Hoje, os militares egípcios estão dedicados a perseguir a
Irmandade Muçulmana de modo a tentar acabar com o grupo. Como afirmou o
cientista político Emad Shahin ao jornal The New York Times, os ditadores
entendem que, no fim, o Ocidente vai apoiar o lado vencedor e, de certa forma, estão
certos.
Foto: Homem observa
uma fileira de corpos de simpatizantes da Irmandade Muçulmana em necrotério
improvisado no Cairo, na quarta-feira 14
Sem comentários:
Enviar um comentário