A democracia não
sobreviverá se o seu objectivo for o de “evitar o pior”, não convencerá ninguém
se o medo de voltarmos ao passado for mais forte do que a intensidade dos
sentimentos negativos que hoje todos nutrimos face ao presente.
Marta Loja Neves -
Económico
A geração do 25 de
Abril teve por missão refazer o mundo. Já o desafio da geração seguinte talvez
fosse maior: não deixar que o Mundo se desfaça.
Mas porque tudo era tão perfeito - e o que não era só podia melhorar, a democracia assim se foi vivendo, tida por garantida. Não nos lembrámos que a liberdade se acarinha e que a democracia não é estática. A liberdade preserva-se, ensina-se, pratica-se mas os nossos heróis de 74 ofereceram-na de bandeja às gerações seguintes que com ela lidaram como se se tratasse de mais um ‘bibelot' a desempoeirar uma vez por ano, celebrado num feriado que ainda não nos foi roubado, mas cujo verdadeiro significado deixou de ser tangível.
E assim deixámos que a democracia portuguesa fosse definhando, ao mesmo tempo que assistimos, impassíveis, ao fim do nosso projecto europeu.
Nós, agora cidadãos europeus, tínhamos por missão dar sentido e dinamismo às duas vertentes da democracia europeia - a democracia nos Estados-membros e a democracia ao nível da União. Deixámos que outros o fizessem por nós. E fizemos mal: a nível nacional, a participação democrática foi asfixiada pelos partidos políticos, de esquerda como de direita sem excepção, deixando espaço ao aparecimento de discursos populistas e nacionalistas; ao nível europeu, deixámos que os nossos governos optassem por construir uma União meramente económica, desprezando aquele que era o objectivo principal do projecto europeu: ultrapassar os egoísmos dos Estados Nação, garantindo que nunca mais acontecesse o que aconteceu na primeira metade do século XX.
Em 2013, a questão central do nosso futuro comum volta a ser a de estarmos a arriscar as nossas democracias nacionais, antes mesmo de termos começado a construir a nossa democracia europeia. E a falta de democracia da União Europeia é naturalmente um terreno fértil para nacionalismos e eurocepticismos.
Temos as palavras registadas no papel, temos as assinaturas e ratificações de tratados pelos Estados-membros, temos um Parlamento Europeu que é a única instituição verdadeiramente democrática da União Europeia mas que é a que tem menos poder, temos os discursos onde muito nos foi prometido por responsáveis políticos - que ou não foram eleitos, ou foram por nós mandatados para exercerem cargos a nível nacional (mas não a nível europeu) - e temos intermináveis tropas de eurocratas perdidas nos meandros das centenas de directivas e de regulamentos que gerem o quotidiano administrativo dos nossos Estados. Hoje, temos uma espécie de União Europeia embalsamada, cuja linguagem - e, mais recentemente, o objectivo - ninguém entende.
Para nós, comuns dos mortais, o projecto europeu é (era?) a soma de três promessas: prosperidade partilhada, direitos fundamentaise democracias sustentáveis. Se um descarrila, os outros seguirão. É o que nós já estamos a ver: depois da crise da zona euro, a crise dos direitos fundamentais, do Estado de direito e da representação democrática.
Cerca de um terço dos Estados-membros da União Europeia tem graves e sistémicos problemas de direitos fundamentais, de pluralismo e liberdade de expressão, de igualdade, de tolerância, justiça, solidariedade e de violação dos princípios do Estado de direito. Trata-se de um fenómeno recente, e porque aqueles mesmos representantes dos discursos sobre prosperidade económica e paz só sobrevivem politicamente à custa da sua imagem nacional e recusaram fornecer os instrumentos necessários para construir uma União verdadeiramente democrática, continuamos a ter uma União incapaz de lidar com estes problemas, quando foram precisamente estes problemas que levaram à sua fundação.
Cabe-nos a nós, cidadãos europeus, dar sentido à democracia. E a democracia não é uma abstracção, não é apenas uma palavra no papel. A democracia é feita de símbolos fortes, de programas e de narrativas que competem entre si; é feita de maneiras de eleger e de protestar, de ideias de "como fazer" e de "para onde ir". A democracia não sobreviverá se o seu objectivo for o de "evitar o pior", não convencerá ninguém se o medo de voltarmos ao passado for mais forte do que a intensidade dos sentimentos negativos que hoje todos nutrimos face ao presente. Não resistirá a nada se nos limitarmos à análise dos infindáveis detalhes que nos levarão seguramente à catástrofe se não agirmos. A gestão quotidiana do declínio - e o que é a austeridade se não isso? - nunca será a solução. A visualização do futuro das democracias nacionais e do projecto europeu não tem outra alternativa do que ser mais entusiasmante do que as suas alternativas.
A única solução é levar a sério até - e sobretudo - o que é absurdo, "reconhecer a contradição entre a insensatez do mundo e a razão humana" e recusá-la em permanência. É um trabalho sem fim, tal como o de Sísifo. Mas, como dizia Camus, a verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo no presente.
Mas porque tudo era tão perfeito - e o que não era só podia melhorar, a democracia assim se foi vivendo, tida por garantida. Não nos lembrámos que a liberdade se acarinha e que a democracia não é estática. A liberdade preserva-se, ensina-se, pratica-se mas os nossos heróis de 74 ofereceram-na de bandeja às gerações seguintes que com ela lidaram como se se tratasse de mais um ‘bibelot' a desempoeirar uma vez por ano, celebrado num feriado que ainda não nos foi roubado, mas cujo verdadeiro significado deixou de ser tangível.
E assim deixámos que a democracia portuguesa fosse definhando, ao mesmo tempo que assistimos, impassíveis, ao fim do nosso projecto europeu.
Nós, agora cidadãos europeus, tínhamos por missão dar sentido e dinamismo às duas vertentes da democracia europeia - a democracia nos Estados-membros e a democracia ao nível da União. Deixámos que outros o fizessem por nós. E fizemos mal: a nível nacional, a participação democrática foi asfixiada pelos partidos políticos, de esquerda como de direita sem excepção, deixando espaço ao aparecimento de discursos populistas e nacionalistas; ao nível europeu, deixámos que os nossos governos optassem por construir uma União meramente económica, desprezando aquele que era o objectivo principal do projecto europeu: ultrapassar os egoísmos dos Estados Nação, garantindo que nunca mais acontecesse o que aconteceu na primeira metade do século XX.
Em 2013, a questão central do nosso futuro comum volta a ser a de estarmos a arriscar as nossas democracias nacionais, antes mesmo de termos começado a construir a nossa democracia europeia. E a falta de democracia da União Europeia é naturalmente um terreno fértil para nacionalismos e eurocepticismos.
Temos as palavras registadas no papel, temos as assinaturas e ratificações de tratados pelos Estados-membros, temos um Parlamento Europeu que é a única instituição verdadeiramente democrática da União Europeia mas que é a que tem menos poder, temos os discursos onde muito nos foi prometido por responsáveis políticos - que ou não foram eleitos, ou foram por nós mandatados para exercerem cargos a nível nacional (mas não a nível europeu) - e temos intermináveis tropas de eurocratas perdidas nos meandros das centenas de directivas e de regulamentos que gerem o quotidiano administrativo dos nossos Estados. Hoje, temos uma espécie de União Europeia embalsamada, cuja linguagem - e, mais recentemente, o objectivo - ninguém entende.
Para nós, comuns dos mortais, o projecto europeu é (era?) a soma de três promessas: prosperidade partilhada, direitos fundamentaise democracias sustentáveis. Se um descarrila, os outros seguirão. É o que nós já estamos a ver: depois da crise da zona euro, a crise dos direitos fundamentais, do Estado de direito e da representação democrática.
Cerca de um terço dos Estados-membros da União Europeia tem graves e sistémicos problemas de direitos fundamentais, de pluralismo e liberdade de expressão, de igualdade, de tolerância, justiça, solidariedade e de violação dos princípios do Estado de direito. Trata-se de um fenómeno recente, e porque aqueles mesmos representantes dos discursos sobre prosperidade económica e paz só sobrevivem politicamente à custa da sua imagem nacional e recusaram fornecer os instrumentos necessários para construir uma União verdadeiramente democrática, continuamos a ter uma União incapaz de lidar com estes problemas, quando foram precisamente estes problemas que levaram à sua fundação.
Cabe-nos a nós, cidadãos europeus, dar sentido à democracia. E a democracia não é uma abstracção, não é apenas uma palavra no papel. A democracia é feita de símbolos fortes, de programas e de narrativas que competem entre si; é feita de maneiras de eleger e de protestar, de ideias de "como fazer" e de "para onde ir". A democracia não sobreviverá se o seu objectivo for o de "evitar o pior", não convencerá ninguém se o medo de voltarmos ao passado for mais forte do que a intensidade dos sentimentos negativos que hoje todos nutrimos face ao presente. Não resistirá a nada se nos limitarmos à análise dos infindáveis detalhes que nos levarão seguramente à catástrofe se não agirmos. A gestão quotidiana do declínio - e o que é a austeridade se não isso? - nunca será a solução. A visualização do futuro das democracias nacionais e do projecto europeu não tem outra alternativa do que ser mais entusiasmante do que as suas alternativas.
A única solução é levar a sério até - e sobretudo - o que é absurdo, "reconhecer a contradição entre a insensatez do mundo e a razão humana" e recusá-la em permanência. É um trabalho sem fim, tal como o de Sísifo. Mas, como dizia Camus, a verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo no presente.
*Marta Loja Neves - Licenciada
em Ciências Políticas e Ajuda Humanitária na Bélgica, onde vive há 13 anos.
Colaborou com Xanana Gusmão e José Ramos Horta em 1999, na altura do processo
de autodeterminação de Timor Lorosae. Trabalha desde 2006 no Parlamento
Europeu, na área dos direitos humanos e das liberdades civis.
Nota: O mito de
Sísifo é um ensaio filosófico escrito por Albert
Camus, em 1941. No ensaio, Camus
introduz sua filosofia do absurdo: o do homem fútil em busca de sentido,
unidade e clareza no rosto de um mundo ininteligível desprovido de Deus e
eternidade. Será que a realização do absurdo exige o suicídio?
Camus responde: "Não. Exige revolta". Ele então descreve várias
abordagens do absurdo na vida. O último capítulo compara o absurdo da vida do
homem com a situação de Sísifo, uma personagem da mitologia
grega, condenado a repetir sempre a mesma tarefa de empurrar uma pedra de
uma montanha até o topo, sendo que, toda vez que estava quase alcançando o
topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio
de uma força irresistível. (Wikipédia)
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