Rui Peralta, Luanda
I - Um dos mitos
urbanos mais espalhados e enraizados na sociedade pós-industrial é o da
existência de um grupo social, jovem, representante das modificações que o
trabalho sofreu na era digital. Este grupo, conhecido em alguns meios por “Geração
Y”, é apresentado como “a nova força de trabalho no mercado global” e segundo o
mito, “com a sua mentalidade digital, fluida e colectiva, afectam a forma como
trabalharemos e produziremos no futuro”. Ganham a vida “fazendo o que gostam” e
estabelecem uma relação entre prazer e trabalho sendo o prazer o factor que
proporciona-lhes o êxito no desempenho profissional.
Fazem parte de uma
nova “economia criativa” onde as relações laborais são definidas pela dinâmica
da conexão de redes. Não se integram em organizações verticais,
hierarquicamente estabelecidas, mas funcionam em sistemas organizativos
horizontais, que permitem melhor fluidez de informação e intercâmbio de
conhecimento. A mobilidade digital, a possibilidade de trabalhar em (e desde)
casa e a flexibilidade de horários fazem com que possam atender ao seu trabalho
em qualquer momento e lugar. Aliás a “flexibilidade é o caminho a seguir” e
este é um pressuposto do capitalismo pós-industrial.
A moral de toda
esta mitologia da Geração Y é simples e hollywoodesca: devemos buscar os nossos
propósitos na vida e torná-los realidade. A vida plena consistiria em “amar o
nosso trabalho e fazer o que gostamos”. Esta é a representação idealizada de um
conjunto de prácticas laborais e de hábitos cognitivos que supostamente (e
superficialmente) identificam a força de trabalho na “sociedade da informação”.
A Geração Y é a base laboral de uma “economia baseada na criação, na reprodução
e no consumo de bens criativos”, caracterizados pelo seu interesse em “participar
nos projectos em curso” e pela “fluidez organizacional”, para além da
utilização intensiva dos meios digitais, que garantem uma extrema mobilidade
temporal e espacial.
A produção do valor
mercantil dos “bens criativos” consiste, assim, na exploração do trabalho
intelectual dos empregados. Para tornar dócil essa mão – de-obra, tal como já
se fizera na escravatura e no assalariado, é necessário um revestimento ético,
que adapte os trabalhadores aos novos hábitos laborais e os faça interiorizar a
nova cultura de trabalho, inserindo-o nas novas estruturas organizacionais e
adaptando-o aos novos processos de reprodução de capital. Ao assumir esta nova
ética, a força laboral actual (tal como os seus antecessores da fase
pré-assalariada e das diversas fases da mão-de-obra assalariada) insere-se na
dinâmica de trabalho baseado na flexibilização das normas laborais.
Se este novo código
ético enaltece o princípio de “faz o que gostas” é porque a superestrutura
cultural já condicionou o “o que gostas”, ou seja, os mecanismos de adaptação
às novas condições, já condicionaram a personalidade, para que o “perfil
profissional” requerido implique uma gama restrita de conteúdos, mas
diversificada de formas. Se aplicarmos os conhecimentos do nosso velho Darwin a
estas “novas realidades” concluiremos que estamos perante um mecanismo de
adaptação, que decidirá quais os que conseguem sobreviver ao sistema e nele
coabitar. Os que não se adaptarem, não absorvem os novos códigos éticos, serão
excluídos e alimentarão as estatísticas dos “desafortunados, sem sucesso,
frustrados” e outros adjetivos aplicados aos inadaptados.
Este “fazer o que
se gosta” não é uma opção salutarmente individualista, mas uma obrigação
contraída pelo individuo para se inserir na flexibilização do trabalho. O
trabalhador nos novos processos pós-industriais é condicionado ao ponto de
assumir os novos valores geradores de consumo, como seus. Não tem Eu - tal como
já não tinham os seus antecessores servos, escravos e assalariados industriais
– e é assumindo os valores éticos predominantes que efectua a sua integração no
mercado de trabalho. Enquanto os seus antecessores sofriam no trabalho a
pressão dos valores dominantes, a suposta Geração Y só entra no mercado laboral
depois destes valores estarem assumidos. É um processo refinado e complexo, que
absorve o sistema educativo e os processos de formação profissional, ao nível
médio e superior.
II - O discurso
criado em torno deste pseudo-fenómeno que é a Geração Y (não mais do que um
discurso académico, pretensamente assente em bases cientificas e nos postulados
epistemológicos das Ciências Sociais) tem como finalidade a justificação da
precarização do trabalho, num momento em que a economia capitalista, já
globalizada, passa por um novo ciclo de centralização financeira, ainda não
definido, caracterizado por dinâmicas de grande amplitude, criadas pelas
fricções entre o actual centro e os candidatos potenciais. Esta deslocação do
centro implica novas e mais sofisticadas formas de trabalho intelectual e
manual.
Em simultâneo o
discurso prepara as camadas mais jovens, prestes a ingressar no mercado de
trabalho a assimilar as novas culturas organizacionais e a nova cultura de
trabalho, ou seja a considerar naturais (o fatal “é assim”) as imposições de um
mercado laboral caracterizado pela precarização. Nas universidades actuais os
futuros actores (que vão assumir o papel de trabalhador intelectual) produtivos
aprendem e absorvem os princípios teóricos que os alienam. Esses princípios
teóricos, pretensamente técnicos e científicos (a falsa premissa da
neutralidade do discurso técnico-científico) inculcam nas mentes dos futuros
servos assalariados, tecnicamente especializados, que as transformações das
condições de trabalho respondem às alterações das dinâmicas organizacionais.
A flexibilidade
laboral é, assim, assumida como nova cultura de trabalho, tornando a
precarização do trabalho, a insegurança, a contração das condições de vida,
como um destino, um fado, uma fatalidade. A lógica da “racionalização de custos” implica
a rentabilização dos contratos laborais, transformados em mercadoria e
colocados á disposição da oferta e da procura, gerando valores adicionais. Ou
seja já não é apenas a mão-de-obra que é uma mercadoria (conforme aconteceu com
o processo da primeira revolução industrial), mas também a sua contratação.
O trabalhador
tornou-se um elemento periférico no actual processo produtivo. A
descentralização e externalização de serviços, a subcontratação, são factores
de rentabilização da contratação da mão-de-obra. Contratada a baixo preço e
revendida a outras empresas ou a empresas-clientes, como “mão-de-obra altamente
qualificada e experiente” o trabalho é vendido e revendido, duplamente
rentabilizado. Rentabilizado durante a produção da mercadoria e posteriormente,
durante o processo de comercialização.
Recrutar
mão-de-obra, produz dinheiro directo e despedir é rentável. Desta forma o
trabalhador é um factor de rentabilidade: pela sua contratação e pelo seu
despedimento. E isto porque a sua importância no processo produtivo foi
perdida, ou seja deixou de ocupar um lugar central na produção. A emergência de
novas regras de emprego é impulsionada pelas novas infraestruturas tecnológicas
que permitem o intercâmbio de informação a baixo custo e que torna obsoletos os
modos organizacionais criados durante as fases anteriores. Mas não são apenas
as transformações tecnológicas que permitem a alteração da estrutura
organizacional. São, também, as transformações em grande escala dos padrões económicos
de produção de bens e serviços, incubados no último terço do século XX. A
transformação do trabalho encontra-se marcada pelas alterações que
progressivamente se institucionalizaram nos países do Centro.
A chamada “economia
da informação” é uma fase da economia capitalista (sistema de relações de
mercado em que o capital é o elemento preponderante, asfixiando todas as outras
formas de relação do mercado), orientada para a criação de capital a partir da
produção e do consumo de bens intangíveis. Esta forma é abarcada em todos os
aspectos da vida social. Aspectos aparentemente sem interconexão, afins e não
afins, como o endurecimento da protecção da propriedade industrial, a expansão
dos padrões financeiros, a flexibilização do direito laboral, a campanha contra
os fumadores (feita em nome da saúde dos próprio e dos que os rodeiam,
revelador da despersonalização a que a sociedade pós-industrial sujeita o
individuo), as operações policiais massivas encobertas (operações de transito,
ou de verificação de estrangeiros, etc.) são fenómenos que destapam o véu da
nova ordem implementada, mas ainda não cimentada.
III - Sendo a
estabilidade laboral um vestígio de um modelo económico e jurídico superado e
sendo o novo modelo baseado na diversificação da oferta e no incremento de
consumo das novas mercadorias, cujo valor é criado em maior medida pelo
conhecimento (em comparação aos modelos convencionais), torna-se necessário um
novo discurso legitimador. Uma vez aceite a precarização do trabalho como
norma, constituída como parte integral dos processos orgânicos da sociedade,
estará cumprida a fase de legitimação.
Por isso o discurso
a favor da flexibilização laboral, independentemente dos fundamentos técnicos
que o suportem e da sua necessidade, é antes do mais, um discurso político.
Hoje, como nos tempos da primeira revolução industrial, a forma de inserir e de
usar as massas trabalhadoras atomizadas e sem consciência, é um factor
essencial. Apenas com uma diferença: na primeira revolução industrial o
trabalhador era uma figura central no processo, hoje é um factor periférico.
Tão periférico que muitas das vezes não é assalariado, sendo-lhe inculcada a
ilusão de que é dono do seu próprio destino, livre para vender a sua força de
trabalho e para aplicar no sistema produtivo o seu conhecimento. Desta forma o
trabalhador abandona o regime salarial e abraça um misto de servo-assalariado. Não
deixa de ser curioso esta contradição: a “nova economia” baseada no “conhecimento”
e que coloca em causa os modelos anteriores, “arcaicos e caducos” recorre a uma
forma de contratação provinda de um “modelo anterior” extinto pela primeira
revolução industrial.
A resposta dada
pelo sistema aos desequilíbrios criados consiste na recriação da “concertação
social”, institucionalizando a figura do “parceiro social”. Mas esta não é
resposta alguma, se considerarmos que a flexibilização coloca os “parceiros
sociais” sob pressão e sob tensão, uma vez que tanto os sectores empresariais
provenientes do “modelo anterior” como as associações sindicais e profissionais
(também elas provenientes do mesmo modelo) vêem-se confrontadas com as
contradições internas e externas criadas pelo novo modelo que não contempla a
manutenção das suas estruturas organizacionais e prevê a sua caducidade num
horizonte temporal próximo.
Desta forma os “parceiros
sociais” são convidados a absorver as novas regras e obrigados ao seu
cumprimento, para manterem o seu papel como “parceiros” sendo as suas decisões
contempladas apenas ao nível da consulta de opinião, o que permitirá criar
formas de os incluir no novo processo produtivo. Com essa inclusão (que para
muitos será a exclusão definitiva do processo de produção de bens e serviços)
termina o seu papel como “parceiros” e inicia-se um novo ciclo, baseado numa
brutal exploração do trabalho (sempre precarizado) acentuando-se cada vez mais
o papel periférico do trabalhador.
Mão-de-obra
especializada e não especializada são desta forma niveladas em termos de
custos, sendo a diferenciação efectuada pela “bonificação” (em serviços de
saúde, privados, em Planos de Poupança e Reforma e outros produtos similares)
que os especializados poderão usufruir. Para que estes produtos que colmatarão
o baixo rendimento do trabalhador sejam a custos aceitáveis e eles próprios
rentáveis, os sistemas de segurança social serão considerados inviabilizados e
extintos.
No Reino Unido
companhias como a McDonald´s contratam cerca de 90% dos seus trabalhadores num
regime que permite ao empregador não estipular horas de trabalho, exigindo
disponibilidade em função da carga laboral. As semanas de trabalho (seis dias)
podem consistir em 72 horas, máximo, a 48 horas, mínimo. No sector publico
existem trabalhadores, como os prestadores de serviços sociais da Administração
Local de Londres, cuja carga horária pode variar entre 70 a 8 horas por semana.
Neste país mais de
um milhão e duzentos mil trabalhadores encontram-se contratados neste regime de
flexibilidade horária e destes cerca de 500 mil estão ainda sujeitos á
flexibilidade de funções compatíveis e cerca de 300 mil sujeitos a regime de
flexibilidade espacial, tendo que se movimentar para áreas distantes da sua
zona de residência, em 80% dos casos mais de três vezes, durante a vigência do
contracto. O sector público abarca cerca de 83% destes contratos, pertencendo
24% dos contratos aos Serviço nacional de Saúde, enquanto o sector privado
abarca cerca de 17%.
Esta tendência na
contratação começou a fazer-se sentir em 2005, ano que fechou com um total de
50 mil contratos precários, subindo no ano seguinte para 134 mil. E os números
foram subindo ano após ano.
Os 90% de
contratados nestas condições pela McDonald`s no Reino Unido representam um
total de 82 mil e duzentos trabalhadores e apenas mil e duzentos trabalhadores
estão com contratos normalizados. A Sports Direct conta com 20 mil
trabalhadores nas mesmas condições precárias, assim como grandes grupos
empresariais como a Boots e a Subway. Esta realidade torna-se norma em todas as
economias do Centro e é apresentada como uma inevitabilidade, sendo mesmo
propagandeada como uma forma de combate ao desemprego. Mas também nas economias
periféricas estas práticas existem e a flexibilidade nestas economias
(principalmente nas africanas) assumirá formas completamente desreguladas,
devido aos incipientes (quando existem) mecanismos fiscalizadores.
É um mundo novo.
Abominável e ruinosamente velho…
Fontes
Beck, U. La
sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Paidós. España:1986
Castells, M. La
galaxia internet. Areté. España: 2001
Howe, N. y Strauss,
W. Millennials Rising: The Next Great Generation. Knopf Doubleday Publishing
Group. 2000
Centro Nacional de
Desarrollo e Investigación en Tecnologías Libres – CENDITEL – República Bolivariana
de Venezuela.
The Guardian,
August, 11, 2013
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