Baptista-Bastos –
Diário de Notícias, opinião - hoje
No mesmo dia em que
o Governo retirava o rendimento social a 136 mil pessoas; em que decrescia o
número de alunos no básico, no secundário e nas universidades - nesse mesmo dia
morreu, com um cancro no pâncreas, António Borges, um dos mais ortodoxos
doutrinadores portugueses do neoliberalismo. Um homem implacável na aplicação
das convicções ideológicas e indiferente às consequências que essas aplicações
implicavam. Borges era partidário da redução de salários para equilíbrio da
economia; do corte substancial de funcionários públicos; da diminuição do papel
interventivo do Estado; das privatizações; do aumento das horas de trabalho; da
entrega "faseada" da Educação, da Saúde, da Segurança Social porque
entendia, e dizia-o, verbi gratia, que o sector privado era melhor gestor do
que o público.
Sublinhava a
opinião de que os portugueses viviam acima das possibilidades; de que estavam
habituados a que a Nação suportasse a sua inércia histórica e a colectiva e
tradicional ausência de criatividade e de "empreendedorismo"; e,
enfim, de que precisávamos de mão de ferro para ser governados. De passagem, e
num fórum público, declarou, irado, que os empresários não concordantes com
estas sábias conclusões eram "ignorantes" e irremediavelmente
condenados ao purgatório da História.
Frio nas decisões,
os "objectivos" é que determinavam e, de certo modo, justificavam e
explicavam este homem que não cultivava a pieguice, e em cujo vocabulário as
locuções "compaixão" e "bondade" estavam ausentes. Segundo
António Borges, a democracia existe para se adaptar às exigências da economia,
e nunca o contrário, e a questão dos direitos culturais e sociais constitui um pormenor
insignificante. A preservação das diversidades é uma pretensão, um pouco tola,
de um humanismo serôdio, que se não compadece com as aspirações e as
reclamações dos "novos tempos." E que são esses "novos
tempos"? O todo humano é muito mais do que uma forma definível de contrato
celebrado entre as partes envolventes. E as elites estão sempre no topo de
qualquer definição de relações sociais, determinando o que julgam melhor para
os outros.
O próprio António
Borges exemplificou e personalizou a forma e o conteúdo nefastos, digamos
assim, dos conceitos doutrinais de que era cruel paladino. Acaso mais rígido e
áspero do que Vítor Gaspar, nunca se retractou nem abdicou, como aquele o fez,
dos erros e dos maus compromissos advogados com obstinação e fé, e que tantos
malefícios nos têm causado. Transmitiu esses ideais a Passos Coelho, numa
concepção tão absurda como perigosa do mundo e do capitalismo. Pouco importa
que o trabalho seja deliberadamente desprezado, pois esse "desprezo"
corresponde à separação dos diferentes níveis económico, político, social e
cultural prescritos pela prática do neoliberalismo.
António Borges foi,
até ao fim, António Borges.
Sem comentários:
Enviar um comentário