The
Guardian, Londres – Presseurop – imagem AFP
Os dias do império
britânico acabaram e manter territórios outrora estratégicos, como Gibraltar, é
uma relíquia do passado. O florescente sucesso de Gibraltar enquanto paraíso
fiscal tem frustrado o seu vizinho empobrecido e a lutar contra a crise, mas o
seu futuro parece seguro.
Não há nada que
supere uma canhoneira. O HMS Illustrious zarpou de Portsmouth, em 12 de agosto,
e passou pelo HMS Victory e por uma animada multidão de patriotas. Uma semana
depois, estava ao
largo de Gibraltar, à distância de um tiro de canhão disparado de Cabo
Trafalgar. O peito da nação arfa, as lágrimas ardem nos olhos. O espírito dos
deuses está em marcha, pronto a dar problemas ao Rei de Espanha.
Há muito a dizer
sobre o Império Britânico, mas este chegou ao fim – está morto, foi irradiado,
já não existe. A ideia de um navio de guerra britânico supostamente a ameaçar a
Espanha é absurda. Pretenderá bombardear Cádis? Irão as suas armas pôr termo a
um engarrafamento da hora de ponta, numa colónia que boa parte dos britânicos
considera estar cheia de infratores fiscais, traficantes de droga e elementos
de direita que protestam por tudo e por nada? Os gibraltinos têm direitos, mas
o porquê de os contribuintes britânicos deverem enviar navios de guerra para
fazer respeitar esses direitos, mesmo que apenas “num exercício”, é um
mistério.
Qualquer estudo das
atualmente controversas colónias do Reino Unido, Gibraltar e as Malvinas, só
pode chegar a duas conclusões. Uma é que o poder sobre elas reivindicado pelo
Reino Unido é totalmente razoável, em termos de direito internacional; a outra
é que, presentemente, tal reivindicação é uma completa idiotice.
Os Estados-nação do
século XXI não irão continuar a tolerar nem mesmo a leve humilhação de
abrigarem os resquícios de impérios dos séculos XVIII e XIX. A maioria dos
impérios europeus nasceu da realpolitik do poder, sobretudo dos Tratados de
Utrecht (1713) e de Paris (1763). Agora, a mesma realpolitik determina o seu desmantelamento.
Um dos objetivos iniciais das Nações Unidas era atingir essa meta.
Resíduos do Império
Britânico
Evidentemente que
aqueles que vivem nessas colónias têm direito a ser tidos em conta, mas esse
direito nunca prevaleceu sobre a realidade política. Nem o Reino Unido exigiu
que assim fosse, pelo menos quando as circunstâncias o impunham. Os residentes
de Hong-Kong e Diego Garcia não foram consultados, e muito menos lhes foi
concedida “autodeterminação”, quando o Reino Unido quis atirá-los para o
caixote do lixo da História. Hong-Kong foi entregue à China em 1997, quando
terminou o “arrendamento” dos Novos Territórios. Diego Garcia foi reclamada
pelo Pentágono e foi-lhe entregue em 1973. Os britânicos de Hong-Kong não
tiveram direito a passaportes e os habitantes de Diego Garcia foram
sumariamente expulsos e mandados para a Maurícia e para as Seychelles.
A segurança do
Reino Unido não precisa desses locais. Não depende de portos de abastecimento
de carvão no Atlântico. A França sobrevive depois de ter deixado de ser dona do
Senegal e de Pondicherry, e Portugal sobrevive sem São Tomé e Goa. Quando os
indianos invadiram Goa, em 1961, o mundo não levantou objeções. De facto, o
plano argentino de invasão das Malvinas, em 1982, chamava-se Operação Goa, porque
a Argentina partiu do princípio de que a ação seria igualmente encarada como
uma solução pós-imperial.
Atualmente, os
resíduos do Império Britânico sobrevivem, de um modo geral, nos interstícios da
economia global. São os principais ganhadores da sangria fiscal resultante da
globalização financeira. Muitos tornaram-se sinónimos de desonestidade. As
autoridades tributárias norte-americanas falam irritadamente da Bermuda. George
Osborne [o ministro das Finanças britânico] quer expulsar os infratores fiscais
das ilhas Caimão e das Ilhas Virgens Britânicas.
Há muito que a
Espanha se queixa do papel que Gibraltar desempenha no contrabando, na lavagem
de dinheiro e no jogo offshore, que ficam fora do alcance do seu quadro
regulamentar. Essas queixas culminaram num relatório do FMI de 2007 sobre as
deficiências da regulação financeira da colónia. O estatuto de paraíso fiscal
de Gibraltar valeu-lhe um aumento de riqueza, que alimentou a cólera de Espanha
por ver tanto dinheiro circular por aquilo que considera ser seu território,
sem ser tributado.
Colónias não pagam
impostos
Estas colónias
afirmam ser “mais britânicas do que os britânicos”, mas não pagam nenhum
imposto do Reino Unido e funcionam como paraísos fiscais para capitais do país
Estas colónias
afirmam ser “mais britânicas do que os britânicos”, mas não pagam nenhum
imposto do Reino Unido e funcionam como paraísos fiscais para capitais do país.
Gibraltar especializou-se em jogo na Internet. As colónias afirmam ser fiéis à
coroa, mas não ao seu erário público nem à sua polícia financeira. São parques
de atrações Churchillianos, com casinhas de colunas vermelhas, fish and chips e
cerveja morna. Mas querem ter o que é bom, sem aceitar o que é mau. Quando os
vizinhos se zangam, exigem que aqueles cujos impostos os protegem mandem em seu
socorro soldados, diplomatas e advogados.
A argumentação
jurídica trocada entre o Reino Unido e a Espanha é favorável ao primeiro.
Apesar de o Reino Unido não pertencer ao espaço Schengen de livre circulação,
em teoria, todos os Estados da UE facilitam a circulação dos seus cidadãos. A
proposta espanhola de 43 libras [50 euros] de taxa de entrada é excessiva.
Seria irónico ver os ministros conservadores defender a sua causa junto dos
odiados tribunais europeus – mas é a instância adequada a que recorrer. O rigor
da lei é melhor do que uma encenação da severidade da guerra.
Dito isto, não cabe
na cabeça de ninguém que um intermediário honesto não consiga resolver esta
disputa com séculos de existência. O Reino Unido procurou, por várias vezes, um
acordo de compromisso sobre a soberania de Gibraltar. Margaret Thatcher iniciou
negociações em 1984, depois de ter resolvido com sucesso as situações da
Rodésia e de Hong-Kong. Os espanhóis propuseram para Gibraltar um estatuto
totalmente descentralizado, semelhante ao dos bascos e dos catalães, com
respeito pela língua e pela cultura e um certo grau de autonomia fiscal. Como
provou o caso de Hong-Kong, a transferência de soberania não significa absorção
política.
O problema foi a
inépcia dos espanhóis ter alimentado a intransigência dos gibraltinos. Os
“assaltos” na fronteira são contraproducentes quando se quer conquistar as
simpatias das pessoas, tal como os desembarques argentinos nas Malvinas foram
um erro. A Espanha exigiu a soberania imediata – apesar de ela própria ter
colónias no Norte de África. O facto encostou à parede os governos britânicos e
tornou-os vulneráveis aos grupos de pressão coloniais, que brandiam a exigência
de autodeterminação. Um referendo realizado em Gibraltar em 2002 mostrou que
98% apoiavam a manutenção do estatuto colonial. E uma votação nas Malvinas deu
um resultado semelhante. O que estava longe de corresponder à disposição de
Thatcher de entregar Hong-Kong e aceitar a “soberania e relocação” de Madrid e
Buenos Aires.
Tribo de
“britânicos” dourados
A verdade é que as
colónias britânicas que são paraísos fiscais se sentem mais seguras do que
nunca, abençoadas pela História com a proteção britânica e livres para passarem
por alto sobre o lado negro da economia global, escapando aos impostos. Esta
situação criou uma tribo de “britânicos” dourados, que vivem num perene mundo
irreal. Quando perguntei a um gibraltino que afirmava ser “150% britânico” por
que motivo não pagava pelo menos 100% dos impostos britânicos, este respondeu:
“Porque haveria eu de pagar para pessoas que estão a milhares de milhas de
distância?”
Enquanto negarem a
lógica da História e da geográfica, nem Gibraltar nem as Malvinas estarão
realmente “a salvo”. Um dia, estes resquícios acabarão por se fundir com as
respetivas regiões interiores e deixar de ser uma pedra no sapato das relações
internacionais. Esse dia chegará mais cedo, se os governos mundiais agirem no
sentido de acabar com os paraísos fiscais.
Entretanto, os
habitantes de Gibraltar podem continuar a votar a favor de “continuarem a ser
britânicos”, durante o tempo que quiserem. Mas, se não aceitarem os impostos e
a disciplina que a maior parte dos europeus aceitam, ao mesmo tempo que sugam
negócios aos centros financeiros da Europa, não podem realmente esperar que um
Estado da UE os proteja de outro. Uma fila com seis horas de espera em La
Línea, uma vez por outra, é um pequeno preço a pagar pela recusa de se juntarem
ao mundo real.
Opinião
“Uma disputa
absurda”
De forma a encerrar
o
contencioso sobre Gibraltar, os primeiros-ministros espanhol, Mariano
Rajoy, e britânico, David Cameron, decidiram pedir
à Comissão Europeia para desempenhar a função de mediadora. Bruxelas deverá
portanto pôr termo a dias de escaladas verbais que “exemplificam na perfeição
tudo o que a diplomacia não deve fazer”, estima o ex-deputado britânico
do partido trabalhista, Denis Macshane, em El País. Para o ex-político, que
renunciou ao cargo depois de terem sido descobertas irregularidades nas suas
despesas parlamentares, as tensões em torno do “rochedo” derivam essencialmente
de fatores internos que envolvem os dois homens políticos:
David Cameron e
Mariano Rajoy são mais parecidos do que querem admitir. São dois dirigentes
nacionais fracos, que não têm nenhum verdadeiro controlo sobre a evolução da
política. Ambos estão fartos da UE. Ambos têm um terrível problema de
desemprego juvenil. Ambos devem fazer frente a regiões-nações – a Escócia e a
Catalunha – que não querem integrar-se completamente nas entidades que
constituem o Reino Unido e a Espanha. Ambos tiveram grandes impérios, sonhos
que não querem desaparecer e que persistem com os símbolos da monarquia. Ambos
têm grandes problemas relacionados com o financiamento do seu partido. Ambos
possuem zonas coloniais especiais, Ceuta e Melilha no caso de Espanha e as
ilhas Malvinas e Gibraltar no caso do Reino Unido. […] Então, qual é o motivo
por trás desta disputa absurda entre dois carecas que lutam por um pente, como
dizia Borges acerca da guerra das Malvinas? […] O que vemos tanto no Reino
Unido como em Espanha é a vontade de manipular os meios de comunicação e de
aparecer em manchetes, em Londres, com o envio de navios de guerra na região, e
em Espanha, com a proposta de formar um eixo comum com a Argentina para travar
o Reino Unido na ONU. Boa sorte!
Na foto: Um
pescador espanhol protesta na baía de Algeciras, do lado oposto do rochedo de
Gibraltar, a 18 de agosto de 2013. – AFP
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